Trouxe comigo para 2015 um problema. Antes de 2014 terminar fiz aquilo que muitos fazem e revelei a minha admiração por certos compatriotas. Fiquei contente com a recepção positiva que isso teve. No entanto, uma coisa deixou-me perplexo. Indiquei duas figuras do ano, mas só uma delas mereceu rasgados elogios duma boa parte de quem comentou o texto. Refiro-me a Carlos Serra Júnior. Ele merece, sobretudo pela importância de que se revestem os seus esforços em prol da responsabilidade cívica. O nosso país precisa de mais Carlos Serras. Deixou-me perplexo que Dário de Sousa tivesse recebido menos elogios ou referências. Suspeito que tenha a ver com o facto de a sua associação defender uma forma de estar no mundo minoritária e extremamente controversa. Não me interessa discutir os méritos das práticas que consubstanciam essa maneira de estar, embora tenha decidido que apesar de pessoalmente me sentir incomodado por ela não tenho outro remédio senão aceitá-la. Não posso exigir sua proibição porque nenhum dos argumentos que tenho para a rejeitar é suficientemente forte para constituir a base de tamanha ingerência nas opções pessoais de quem a ela se entrega. Optei, portanto, pela tolerância. A tolerância só faz sentido nestes casos, isto é quando apesar de estarmos contra algo aceitamos o seu direito de existência. Ao fazer isso, estou também a respeitar o espírito do sistema político que estamos a construir no país. E é justamente neste contexto que as reticências que alguns têm em relação a este assunto me parecem muito problemáticas. Porque ela está a lutar por direitos cívicos a Lambda bate-se por algo que diz respeito a todos nós. Defender a Lambda não é (só) defender os homossexuais. É defender a nossa cidadania. Por isso, não acredito em quem diz ser democrata ao mesmo tempo que fica indiferente à sorte desta minoria. É uma contradição gritante.
Só que é uma contradição que não me surpreende. É típica. Há alguns anos, quando ainda entretinha um blogue (www.ideiascriticas.blogspot.com), criei uma rubrica com o nome “o fenómeno da bicha”. “Bicha”, para os amigos não moçambicanos, é a “fila”. O fenómeno da bicha é aquela atitude de muitos de nós de pensarem que a bicha (a fila) são os outros, não nós. Juntamo-nos simplesmente à ela, não se constitui pelo nosso acto de nos colocarmos atrás dos outros. Usei essa rubrica para reflectir sobre a tendência de muitos de nós de nunca se considerarem parte do problema, mas sim apenas comentadores interessados e curiosos dos problemas criados por outros. Acho que há muito fenómeno da bicha nesta questão dos nossos direitos cívicos. Mas não só. Há muito fenómeno da bicha em quase tudo que é do pelouro público. É por isso que gostaria de usar a minha perplexidade em relação à indiferença no que diz respeito ao direito que uma minoria tem de se articular politicamente para iniciar uma reflexão sobre o fenómeno da bicha. Essa reflexão impõe-se sobretudo agora que o país vai iniciar mais um ciclo político com um novo presidente que representa uma nova geração. Acho que um dos maiores desafios políticos que enfrentamos, sobretudo ao nível do debate na esfera pública, é de identificar os valores que procuramos defender, proteger ou promover com os actos políticos. Tenho em mim que quanto maior clareza houver em torno disso, maior será a probabilidade de consolidarmos a democracia. Não me parece que esta clareza exista, razão pela qual muito debate “político” é pobre e degenera quase sempre em insulto, intransigência ou mesmo irrelevância. Dito doutro modo, há muito “analista” por aí que é extremamente adepto na defesa de certos posicionamentos (ou na crítica de outros), sem, contudo, uma ideia clara dos valores que essa defesa (ou crítica) protege ou promove (ou rejeita, claro). Falam por falar.
Há um valor, por exemplo, supremo na nossa cultura política: a justiça social. Às vezes damos este valor por adquirido pelo simples facto de ele ter sido introduzido no nosso vocabulário político pela retórica marxista da Frelimo gloriosa. Infelizmente, muitos nem disso têm consciência, o que os leva, por exemplo, a não contemplarem a possibilidade de ser possível defender a justiça social mesmo fora do quadro marxista. Ou a misturarem registos políticos. Gostaria de testar a nossa coerência reflectindo sobre este valor, muito em especial no que diz respeito à questão da educação. Como todos sabemos, o nosso sistema educacional podia ser melhor. Um dos maiores problemas que o afecta é o de contribuir para a reprodução da desigualdade social. Somos muito poucos com acesso ao ensino superior. Quem tem diploma tem maiores possibilidades de conseguir um emprego bem remunerado (pelo menos até há bem pouco tempo) e passar a quadro do aparelho do estado com todas aquelas regalias que conhecemos. Isso, por sua vez, coloca essa pessoa na posição de proporcionar aos seus filhos melhores condições de formação (por exemplo, através das escolas privadas, mas também através dum ambiente culto e ocidentalizado que confere vantagem educacional aos seus filhos em relação à esmagadora maioria do povo moçambicano).
Gostaria de citar dois estudos interessantes feitos na Alemanha e na Grã-Bretanha. Um grupo de pesquisa de sociólogos liderados por Michael Hartmann da Universidade de Darmstadt na Alemanha fez um inquérito às 1000 pessoas mais importantes do país (deputados, secretários permamentes, governantes, PCAs, etc.) e descobriu coisas interessantes. Descobriu, por exemplo, que uma percentagem significativa dessas pessoas vem de famílias das classes médias e superiores (com vantagem para esta última), o que segundo o estudo tem a ver com as facilidades relacionadas com a educação para essas camadas. E não só. Percentagens significativas desse grupo consideram que o sistema social alemão é justo, não precisa de nenhuma reforma e que isto é ainda mais vincado da parte daqueles que beneficiaram dum contexto familiar estruturalmente privilegiado. Na Grã-Bretanha cito o trabalho de Adam Swift e de Harry Brickhouse, curiosamente dois filósofos, que estudaram a forma como as escolas privadas naquele país contribuem para reforçar as desigualdades sociais. Eles terminam com uma recomendação radical, nomeadamente não só de abolição das escolas privadas, mas também de limitação do que pais afluentes podem oferecer aos seus filhos para que isso não contribua para a reprodução da desigualdade. Dito doutro modo, eles, sobretudo Adam Swift, defendem que a obrigação moral de um pai ou mãe sustentarem os seus filhos deve ser limitada pela preocupação de garantir que todos tenham as mesmas oportunidades. Quem pode mandar os seus filhos à piscina, de férias no exterior, dar acesso internet, etc. não está apenas a cuidar dos seus filhos. Está também a participar na criação duma sociedade injusta se esses privilégios não forem extensivos a todos.
Há muita gente na esfera pública que gosta de falar do que anda mal no nosso país sem prestar nenhuma atenção à contribuição que ela própria faz para que as coisas andem mal. A questão da educação é uma delas. Muitos documentam o seu lado social com ataques ritualizados contra a injustiça social ou com a eleição bombástica dos “utentes do ‘my love”, das “vítimas das enxurradas”, dos “consumidores dos derivados de frango”, das “crianças da rua”, etc. como suas figuras do ano. Sempre fica bem na foto da fogueira das vaidades. Mas essa moral bombástica tem os seus limites quando toca com os nossos próprios privilégios. E é com essa questão que quero terminar esta reflexão lançando um desafio a todos:
Porque não lançar uma iniciativa de recolha de assinaturas para exigir que o novo presidente proíba o ensino privado em Moçambique, ou, falhando isso (já que vai ser difícil reunir consensos...), que essas instituições sejam obrigadas a pagar taxas elevadas ao Estado para que este use esse dinheiro para proporcionar ensino com a mesma qualidade a todas às crianças moçambicanas, incluindo férias no exterior, acesso à internet e desporto?
Vou considerar hipócrita e incoerente todo o indivíduo que se opõe a estas medidas, mas reclama da injustiça social e não diz porque estes privilégios não são um atentado à igualdade social. Esse tipo de indignação sem consequências pessoais é uma manifestação típica do fenómeno da bicha.
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