Quaisquer que sejam as circunstâncias, a realidade é que, quando a ONUMOZ partiu, o GdM tinha uma força de polícia que era mais um corpo partidário do que uma instituição modernizada, possuindo excesso de pessoal que tinha recebido treino militar em vez de policial, pouca consideração ou conhecimentos em relação aos direitos humanos e procedimentos aceites internacionalmente, incapaz de acabar com o crime e uma força policial que a população considerava mais como inimiga do que amiga estava inundada por corrupção e operava com impunidade. Apesar disto, a transferência de pessoal militar para a polícia continuou – embora não houvesse novos recrutamentos entre 1994 e 1998, os efectivos subiram de 18.047 para 21.666.18 Esta transferência significou que os problemas no seio das forças policiais, tais como baixos níveis de educação e treino inadequado, estavam a ser aumentados em vez de resolvidos.
Uma outra consequência da transferência de pessoal militar para a polícia é o facto do orçamento ser gasto em salários para oficiais que possivelmente nunca quiseram ser polícias, desviando assim fundos que podiam ter sido destinados para a compra de equipamento e modernização da força policial.
Também significou que não podia haver novo recrutamento de pessoal pois não havia orçamento para pagar mais salários.
Contudo, desde 1997, a PRM tem vindo a ser incluída em vários projectos de assistência bilateral, o que tem tido um impacto visível, como salientado por vários dos entrevistados. No entanto, nem todos os problemas do passado são solúveis com assistência; eles requerem antes vontade política traduzida em medidas práticas. A PRM começou a recrutar novos oficiais em 2003, o que é um bom sinal. Estes novos recrutas serão treinados na Academia da Polícia, estabelecida em 1999, com fundos provenientes de doadores. 19 A PRM tem, presentemente, um efectivo de cerca de 20.000 membros o que dá uma proporção de um polícia por cada 1.089 habitantes, um valor baixo se considerarmos as dimensões do país (o excesso de pessoal nas forças da polícia está relacionado não tanto com o seu número mas mais com a sua composição) 20 Contudo, o recrutamento em si não será suficiente e terá que ser associado à reestruturação de recursos, incluindo equipamento e pessoal.
Em termos de equipamento, a PRM parece ter falta de muitas das coisas que a poderiam tornar numa instituição em bom funcionamento; os laboratórios criminais têm uma produtividade menor do que tinham em 1980; não há laboratórios suficientes; das 321 viaturas da PRM a nível nacional, apenas 20 estão operacionais.21 Em termos de armamento não foi possível obter o número de armas existentes mas o Plano Estratégico da PRM afirma: “A PRM tem armamento suficiente para os efectivos de que dispõe presentemente, contudo, as suas características não são adequadas para a missão de manutenção da lei e da ordem.”22 O documento informa ainda que a PRM tem falta de equipamento tradicionalmente utilizado pela polícia, incluindo casse-têtes ou bastões, algemas e apitos. Isto parece querer dizer que, apesar do apoio de doadores, o equipamento de que a PRM dispõe é mais de natureza militar do que policial. Cada estação de polícia deve ter um registo de armas, incluindo o equipamento da estação e as armas que são propriedade privada mas, tal registo, é feito num livro onde as entradas são escritas à mão. Estes dados deviam ser enviados periodicamente ao Comando Central em Maputo, mas, nenhum entrevistado pode especificar com exactidão, qual a frequência desta ocorrência. A PRM e o Ministério do Interior são os principais actores no controle de SALW – eles emitem as licenças de porte de armas e são responsáveis pela inspecção e actualização dos registos. Não é claro até que ponto isto pode acontecer, tendo em conta a falta de recursos existente. 23
Legislação Nacional sobre Armas de Fogo
Regulamentação nacional sobre SALW é importante uma vez que a maior parte das armas ilegais foi desviada de fontes legais. Sendo assim, as leis nacionais regulando a posse, manufactura e utilização de armas de fogo deve fazer parte de qualquer estratégia com o objectivo de reduzir a disponibilidade de armas num país. A lei Moçambicana sobre o licenciamento de armas de fogo é anterior à independência e foi escrita para uma outra época: é vaga, desactualizada e burocrática na sua aplicação.
A legislação regulando a propriedade de armas de fogo – Lei 1/73, publicada em Janeiro de 1973, cobre armas de fogo e munições. É um decreto detalhado e complicado que inclui cláusulas respeitantes a facas, punhais e outros artefactos. A lei especifica a classificação de diferentes tipos de armas. Esta inclui:
• defesa pessoal
• caça
• desporto
• ornamentação
• outras armas não de fogo (facas, punhais, armas tradicionais) e
• equipamento de guerra.
De acordo com a legislação, armas de fogo com características diferentes das definidas no decreto devem ser classificadas segundo o critério do Comando Geral da Polícia. Para além disto, a lei define:
• regras para a importação e exportação de armas de fogo por parte de indivíduos;
• procedimentos para o estabelecimento e operação de estabelecimentos comerciais de armas de fogo;
• Limites anuais de munições vendidas a indivíduos;
• limites de propriedade para cidadãos individuais (até 3 armas de fogo: uma para defesa própria e duas pertencentes a outras categorias (caça, desporto) com as munições respectivas para um ano);
• regras para registar e controlar as armas de fogo na posse de cidadãos individuais e de comerciantes legais;
• que o Presidente, o Primeiro Ministro, Ministros, Secretários e Subsecretários de Estado, Directores Gerais e Sub-directores em Ministérios, Inspectores Superiores, membros do Parlamento, Secretários Gerais e Provinciais, magistrados jurídicos ou do Procurador Geral, governadores distritais, oficiais do exército ainda no activo, reservistas ou reformados e pessoal do Directorado Geral de Segurança, quando em serviço, podem ser proprietários (e usar) o tipo de arma de fogo que desejarem, sem a registar ou requerer a respectiva licença (Capítulo IV; Secção I; Artigo 55);
• dois tipos de licenças – uma exclusivamente para posse e uma para posse, utilização e transporte de armas de fogo assim como os procedimentos a seguir para requerer tais licenças;
• regras para a construção e manutenção de armazéns de armas de fogo e munições, bem como as quantidades permitidas para armazenamento;
• regras para o estabelecimento de oficinas de munições;
• regras para o transporte de armas de fogo e munições;
• como os departamentos governamentais devem exercer o controle;
• sanções para o não cumprimento;
• quantias a serem pagas por cada tipo de licença; e
• responsabilidades da polícia quanto à manutenção de registos e ao
controle da aplicação e cumprimento da lei.
O decreto também inclui modelos dos vários tipos de impressos necessários e das licenças a serem emitidas.
No caso de um requerimento para compra de uma arma ter sido autorizado, o proprietário autorizado tem que se apresentar, todos os anos, na estação de polícia da sua área de residência, a fim de confirmar ou actualizar o seu endereço. Todas as licenças têm que ser renovadas de dois em dois anos. Em caso de morte do proprietário autorizado, os descendentes têm que informar a estação de polícia da área de residência sobre a sua morte e entregar a arma à PRM. Os respectivos registos têm que ser actualizados para cada um destes procedimentos.
A equipa de pesquisa foi informada em várias ocasiões que armas de fogo tinham sido entregues a membros do parlamento e a membros do governo sem o respectivo pedido ter sido feito; no entanto, esta percepção foi refutada por um funcionário do Ministério do Interior, o qual afirmou que “Membros do Parlamento ou do Governo também tem que requerer a posse de armas de fogo.”24 E alguma vez recusaram fazer tais requerimentos? “ Até agora não, mas nem todos os que têm direito a arma de fogo fizeram o respectivo requerimento.”25 E um outro funcionário, presente durante a entrevista, acrescentou:
“Oiçam, tentamos convencer estas pessoas de que não necessitam de uma arma de fogo. De facto, tentamos convencer seja quem for que requeira uma arma de fogo de que tal não é necessário. Não gostamos da ideia de ter armas de fogo espalhadas. No fim de contas, nós somos os directamente atingidos quando crimes que envolvem armas acabam mal. É no nosso próprio interesse sabermos o que está espalhado por aí e nas mãos de quem está.” 26
Pedidos de licenças para armas de fogo são analisados caso a caso, motivações são questionadas e os funcionários do Ministério do Interior eram visivelmente relutantes em emitir licenças, como eles próprios admitiram à equipa de pesquisa.. Presentemente, o Ministério do Interior tem cerca de 7.000 pessoas registadas como proprietárias de armas de fogo. 27
Os funcionários entrevistados no Ministério do Interior e nas forças de polícia pareceram estar muito conscientes das dificuldades nos seus trabalhos. São funcionários empenhados em fazer o seu melhor nas condições existentes, estão bem ao corrente dos passos que é necessário dar e das medidas que deviam ser adoptadas. Sentiram algum embaraço quando falaram sobre as insuficiências nos seus departamentos, o que demonstra um alto grau de devoção e desencorajaram qualquer interferência política nos seus trabalhos.
Companhias Privadas de Segurança
A posição acima descrita foi particularmente óbvia quando a equipa tentou discutir o controle do armamento na posse de companhias de segurança privadas. Como um oficial da polícia nos disse: “ Não me perguntem nada sobre companhias privadas de segurança porque eu não quero entrar nesse assunto. Demasiada gente importante está envolvida”28
A lei sobre companhias privadas de segurança foi aprovada em 1990, na altura em que a criminalidade urbana estava a aumentar e, com a guerra ainda a decorrer, as forças de segurança nao conseguiam enfrentar a situação. Existem presentemente 31 empresas privadas de segurança registadas em Moçambique.
A lei, em si, é muito simples, apesar de dar bastante espaço para interpretação. Essencialmente, define os passos burocráticos a seguir para o estabelecimento de uma empresa e estabelece as condiçoes mínimas para a contratação de pessoal e fiscalização por parte do Ministério do Interior.
Exclui as empresas privadas de segurança de qualquer investigação criminal e do uso de métodos ou sistemas potencialmente perigosos para os cidadãos. O decreto permite às empresas privadas de segurança proteger propriedades e indivíduos e exercer actividades de vigilância. Empresas privadas de segurança podem também “manufacturar e comercializar equipamento e outras mercadorias relacionadas com a segurança privada, de acordo com o Ministério da Indústria, Energia e Comércio e após consulta ao Ministério do Interior.”29 A lei também define as formas de segurança (guarda, guarnição e patrulha) e estabelece as regras para a obtenção de licenças e os documentos que o requerente tem que reunir, dando a liberdade ao Ministério do Interior e / ou aos governadores provinciais de requererem informações adicionais.
Define os prazos para aprovação e estabelece as quantias mínimas para garantias financeiras. Também estabelece que as licenças não podem ser vendidas ou passadas a terceiros e estabelece multas para os que não forem licenciados.
Em termos de quem pode ser contratado como guarda, a lei especifica que tem que ser:
• cidadão nacional com direitos políticos totais;
• ter mais de 25 anos de idade;
• apto fisicamente e aprovado por uma equipa de médicos;
• não ter cadastro criminal ou policial;
• e ter completado pelo menos o sétimo ano, ou educação equivalente (não especificada).
Empresas contratando pessoal sem estes requerimentos estão sujeitas a uma multa entre 200.000 e 600.000 meticais (equivalente a entre 10 e 30 dólares americanos), mas não especifica se esta multa é apenas uma vez ou se o pessoal que não cumpra os requerimentos tenha que ser expulso. Este é um ponto importante pois, dos guardas de segurança inquiridos pela equipa de pesquisa, a maior parte eram soldados desmobilizados e nenhum tinha completado o sétimo ano.30 Em relação ao treino de guardas de segurança, a lei estipula que é da responsabilidade das empresas de segurança treinarem os seus guardas como melhor entenderem. Outros artigos estabelecem os deveres e obrigações das empresas privadas de segurança e as respectivas multas por não cumprimento. A lei também define o equipamento que guardas privados de segurança podem utilizar, incluindo armas de fogo, cães, veículos, uniformes e etiquetas de identificação.
Em relação a armas de fogo permitidas na posse de guardas privados de segurança a lei estipula:31
“1. Guardas privados de segurança só podem estar na posse de armas de defesa quando em serviço como guarda costas, protegendo bancos ou dinheiro em trânsito.
2. Nos termos desta regulamentação, armas de defesa são:
a)pistolas semi-automáticas de calibre até 7,65mm, cujo cano não tenha mais de 7,5 cm;
b)revólveres de calibre inferior a 9mm cujo cano não tenha mais de 10cm;
c)espingardas semi-automáticas de calibra até 7,65mm.”32
Este artigo é ambíguo na sua referência a armas automáticas pois elas não estão especificamente excluídas. Por outro lado, guardas de segurança privada foram vistos com metralhadoras e na posse de armas em ocasiões não mencionadas anteriormente.
O Artigo 33 da lei estipula que a polícia devia verificar e inspeccionar as actividades das companhias de segurança privadas e aquelas que não cumprirem com o estipulado podem ser multadas. As armas utilizadas pelos guardas de segurança privada são controladas pela companhia que os contratou. Cada empresa é sujeita a uma inspecção mensal dos seus armamentos efectuada por dois oficiais da PRM.
Alguns dos oficiais entrevistados explicaram quais são, no seu entender, as principais falhas que a PRM reconhece na presente legislação. Segundo eles, a lei devia ser muito mais específica sobre o critério a seguir para o estabelecimento de uma empresa de segurança e também para a contratação de pessoal. A lei devia estabelecer um salário mínimo para guardas de segurança armados. O salário mensal médio de guardas de segurança armados é aproximadamente de 800.000 Meticais (33 Dólares americanos), o que os torna vulneráveis ao suborno ou envolvimento criminal. A lei devia também estabelecer o número de horas de serviço para guardas de segurança armados.
Finalmente, a lei devia estipular que deviam ser apresentadas provas de que os guardas sabem como operar as armas que utilizam. Isto foi identificado como uma brecha na legislação em vigor não só no que respeita ao licenciamento de indivíduos como também às empresas de segurança privada. Recentemente foram abertas nos arredores de Maputo carreiras de tiro com pombos de barro. Estas instalações funcionam sem regulamentação, pois não existe legislação Moçambicana respeitante a este tipo de actividade. A polícia Moçambicana não está contra a existência de tais instalações e pelo contrário parece concordar que elas podem ser úteis como centros de treino, uma vez que a lei fosse actualizada. Contudo afirma-se preocupada com a lacuna legal em que operam presentemente.
A aplicação eficaz da lei necessita de mais do que uma bem estruturada força de polícia - também precisa de um sistema judiciário capaz de complementar as actividades de polícia e de fazer aplicar as leis e as sanções. Este não é presentemente o caso em Moçambique, onde o sistema judicário tem falta de recursos humanos competentes, sobrevive em infraestruturas degradantes e é vulnerável à corrupção. Apesar das grandes melhorias realizadas no judiciário e do apoio corrente por parte de doadores, muito tem ainda que ser feito.
Notas
1. N Bale, “Reforma do sector de segurança e boa governação em países em desenvolvimento”, http://payson.tulane.edu/
2. Entrevista pessoal, Setembro de 2003.
3. FADM – Forças Armadas de Defesa de Moçambique são o exército do pós-AGP, incorporando combatentes de ambos os lados da guerra civil.
4. Salomons, ONUMOZ: As Nações Unidas em Moçambique, 2000, http://www.intlmgt.com/
5. Maringue e Inhaminga foram baluartes da Renamo na Província de Sofala no Norte de Moçambique.
6. Isto também pode ser atribuído ao facto de a maior parte dos entrevistados terem sido recrutados com idade inferior. Entrevista pessoal, Setembro de 2003.
7,8. Relatório da AIM No. 143, Setembro de 1998, http://www.poptel.org.uk/
9. Serviço de Notícias Diário da Agência de Notícias Panafricana, 8 de Abril de 2003, “ Jovens Moçambicanos fogem ao serviço militar”.
10. Entrevista pessoal em Novembro de 2002.
11. Entrevista pessoal em Outubro de 2003.
12. AIM, Outubro de 2003, exposto em http://allafrica.com/stories/
13. Durante o workshop esta era a constante preocupação expressa pelos membros das forças armadas presentes. Mencionaram especificamente este incidente na Beira, em Novembro de 2002. A descrição de uma testemunha ocular deste incidente pode ser encontrado no Internet sob o endereço: http://www.decaturdaily.com/
14. J L Woods, Moçambique: A Operação CIVPOL , http://www.ndu.edu/inss/books/
15. M Chachiua, Segurança interna em Moçambique:Preocupações contra políticas , African Security Review 9 (1), 2000, http://www.iss.co.za/Pubs/ASR/
16. J L Woods, op.cit.
17. M Chachiua, ibid.
18. M Chachiua, ibid.
19. Ministério do Interior, Plano Estratégico da Polícia da República de Moçambique – PEPRM, Maio de 2003.
20. Ibid. A relação “normal “ seria de 1/350 a 1/450 habitantes.
21. Ibid.
22. Op cit., parágrafo 5.2.1.4.
23.A equipa de pesquisa passou uma tarde num departamento da polícia criminal, onde 3 funcionários compartilhavam uma caneta, depois de terem concordado em usá-la por turnos. Esta não lhes pareceu uma situação anormal.
24.Entrevista pessoal em Setembro de 2003.
25. Entrevista pessoal em Setembro de 2003.
26. Entrevista pessoal em Setembro de 2003.
27. Entrevista pessoal em Setembro de 2003.
28. Entrevista pessoal em Agosto de 2003 reconfirmada por outro funcionário em Setembro de 2003.
29. Capítulo 1, Artigo 2, parágrafo 2.
30. Durante o trabalho no terreno, de Abril a Setembro de 2003, a equipa de pesquisa perguntaria a cada guarda de segurança que encontrasse qual era a sua idade, se tinha sido desmobilizado e se tinha completado o sétimo ano.
31.Tradução feita pela própria autora.
32.Decreto no. 26/90, Capítulo VII, Artigo 20.
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