quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

REFORMA DO SECTOR DA SEGURANÇA

 

 Seja qual for o número de iniciativas de desarmamento criativas que venham a ser desenvolvidas, nenhuma será bem sucedida se não for simultaneamente desenvolvida uma cultura institucional na mesma base e guiada por uma visão comum nacional dentro do sector da segurança. O conceito de sector de segurança utilizado nesta monografia é baseado na definição dada por Nicole Ball, que identifica os actores principais no sector da segurança como:

• “Estruturas de defesa e informação: forças armadas; forças paramilitares; guarda costeira; milícias e serviços de informação;

• Organizações de justiça criminal: polícia, serviços judiciários e serviços correccionais;

• Gestão do sector da segurança e estruturas de supervisão: Legislaturas e comités legislativos; ministérios da defesa, interior, justiça, negócios estrangeiros; gabinete do presidente; e estruturas de gestão financeira (ministérios das finanças, escritórios para o orçamento, escritórios do Tribunal de Contas); outras estruturas de supervisão tais como mediadores para os direitos humanos, comissões de polícia;

• Instituições não fundamentalmente de segurança: alfândegas e outras estruturas uniformizadas”1

A história violenta de Moçambique criou uma cultura de violência, agressão e impunidade no seio do sector da segurança, a qual ainda hoje impregna as instituições de segurança e necessita de ser eliminada. O colonialismo veio para Moçambique com os contornos da ditadura fascista do colonizador, Portugal, e o sector da segurança foi utilizado para consolidar o regime e destruir qualquer espécie de oposição que eventualmente existisse. A polícia, por exemplo, estava habituada a impôr a ordem quaisquer que fossem os meios julgados necessários. Assim, as forças de segurança tornaram-se na face pública de um regime opressivo.

As linhas de separação entre o exército,a polícia e os serviços secretos prevalecente entre os oficiais das forças armadas de Moçambique (FADM).3

Mas este ressentimento contra a ONUMOZ pode ser parcialmente mal dirigido. As próprias forças armadas e o governo nessa altura contribuiram igualmente para a situação em que os militares se encontram presentemente. De facto, em vez de contribuir para a efectiva desmobilização das forças armadas e da sua reforma, o governo simplesmente transferiu um grande número de soldados para a polícia (fora do mandato da ONUMOZ) e deixou as forças armadas definhar, uma vez que eram então consideradas menos viáveis como resultado da incorporação de membros da Renamo, que estava em curso.

Mas os militares, por não terem conseguido arrumar a sua própria casa, também são responsáveis de estabelecerem a inacção. A altura pode não ter sido a mais adequada para a reforma do sector da segurança , uma vez que os militares de ambos os lados representavam a maior ameaça ao processo de paz. Os oficiais da Frelimo tinham tudo a perder. Salomons dá-nos um quadro exacto da situação no seio das forças armadas:

“... Enquanto a chefia de ambos os partidos estava empenhada em conseguir a paz, nem todos os seus discípulos o estavam. Os grandes vencidos no processo, em ambos os lados, eram os militares. Eles não tinham desempenhado um papel importante nas negociações de paz; de facto, pode argumentar-se que a direcção civil da Frelimo, ao definir o alcance do acordo de paz, tinha conseguido não apenas eliminar a ameaça da Renamo mas também o fardo esmagador dos seus próprios militares... Isto era o fim de uma indústria lucrativa. O Governo entregava todos os anos aos militares, de uma só vez, cerca de 240 milhões de dólares americanos, e os militares não eram responsáveis perante ninguém pela forma como este dinheiro era gasto. Quando vimos os quartéis delapidados, o equipamento a enferrujar à chuva, a falta de preparação das tropas, perguntamo-nos para onde teria ido este dinheiro – certamente não para qualquer infraestrutura militar. Quando ouvimos as queixas dos soldados acerca dos muitos meses em que não tinham sido pagos, também concluimos que o dinheiro não tinha sido gasto em salários. O Ministério das Finanças confirmou que o Exército nunca tinha apresentado uma lista dos salários, e que as estimativas sobre o número de soldados no activo nunca tinha sido verificado. … Claramente, a desmilitarização de Moçambique iria limitar o campo de acção de alguns dos chefes militares....”4

Por seu lado, os oficiais da Renamo, em geral com baixos níveis de instrução e pouca competência para além da respeitante à guerra, receavam a vida civil e sentiam-se inseguros sobre o seu papel nas novas forças armadas. A sua posição durante a guerra tinha sido alta e as suas posições e opiniões tinham sido respeitadas, mesmo que o fossem apenas por medo. A sua sobrevivência e a sobrevivência das suas famílias estavam garantidas enquanto a regra do ‘poder está certo’ prevalecesse. Suspeita-se que muitos estavam fortemente ligados a rotas de contrabando e a traficantes e que, assim, controlavam negócios que lhes davam rendimentos adicionais. O Acordo Geral de Paz (AGP) trouxe o fim a esta situação cómoda e fê-los enfrentar a possibilidade de um futuro duvidoso na vida civil. Para ambas, Renamo e Frelimo, a ONUMOZ representou uma grande oportunidade para truncar o poder de um sector que consideravam demasiado poderoso. Para o Governo de Moçambique (GdM), o exército era, há muito, um pesado encargo financeiro; para a Renamo, a transição de movimento armado para partido político significava que mais poder devia ser conferido ao seu braço político. A ONUMOZ oferecia a ambos os partidos uma oportunidade para desmantelar os seus sectores militares sem grande agitação e o bónus adicional de transferir tal responsabilidade para instituições estrangeiras.

A Desmobilização e as Novas Forças Armadas

Apesar desta transição politico-militar, a desconfiança entre os dois partidos em conflito ainda era demasiado recente para permitir uma desmobilização completa em ambos os lados e, naturalmente queriam manter alguma forma de poder militar. A Frelimo podia contar com as milícias que tinha criado durante a guerra e também com os soldados que haviam sido transferidos para a polícia; A Renamo excluiu do processo de desmobilização alguns batalhões e tinha-os estacionados em zonas remotas. Suspeita-se, ainda hoje, que tais batalhões ainda existem – há muitos boatos sobre a existência de soldados da Renamo na área de Maringue; durante o inquérito feito no Chimoio, foi muitas vezes dito à equipa de pesquisa que havia dois batalhões de mulheres estavam ainda estacionados em redor de Inhaminga..5

O resultado criou muitos dos problemas que o sector da segurança ainda hoje enfrenta – forças armadas descontentes, com pouca capacidade para proteger o território, apesar de armadas em excesso, e uma força policial com pessoal em excesso constituido por homens sem treino para o serviço policial.

O AGP , no Protocolo IV, previa a formação de novas forças armadas nacionais com um efectivo de 30.000 soldados provenientes de ambos os lados (24.000 para o exército, 4.000 para a força aérea e 2.000 para a marinha). Este objectivo nunca foi alcançado apesar da nova lei militar que inclui o serviço militar obrigatório para todos os Moçambicanos a partir dos 18 anos.

Chefes militares entrevistados durante o trabalho no terreno queixam-se de que os benefícios dados pela ONUMOZ aos soldados que eram desmobilizados eram melhores do que aquilo que o exército podia oferecer e, portanto, muitos soldados preferiram ser desmobilizados a entrarem para o novo exército. A pesquisa realizada para esta monografia sobre a desmobilização em Moçambique sugere também outras razões, como por exemplo, a imagem negativa das forças armadas no seio das populações e ainda o facto de ter sido dada a possibilidade de escolha de se associarem às novas FADM a muito poucos.

DURANTE ENTREVISTAS COM SOLDADOS DESMOBILIZADOS, MUITOS AFIRMARAM QUE TINHAM SIDO OS SEUS CHEFES QUE TINHAM SELECCIONADO AQUELES QUE DEVIAM SER INTEGRADOS NO NOVO EXÉRCITO;6 APENAS ALGUNS PUDERAM ESCOLHER E NA AMOSTRA UTILIZADA DE INQUIRIDOS, TODOS OS QUE PUDERAM ESCOLHER RECUSARAM A OFERTA.

Nenhum exprimiu o desejo de voltar para o serviço militar e a sua maior parte expressou o mesmo desejo em relação aos seus filhos, afirmando que não gostariam de ver os seus filhos a cumprir o serviço militar.Muitos consideram o periodo que passaram na tropa como uma disrupção nas suas vidas normais. Também admitem que, se estivessem hoje com as forças armadas, as suas vidas seriam mais fáceis do ponto de vista económico, mas esta vantagem não parece suficientemente forte para justificar a sua entrada para as forças armadas.

Quaisquer que sejam as razões, a realidade é que, quando a ONUMOZ partiu, o que antes fora um exército poderoso na região, estava reduzido a cerca de 9.000 sargentos e oficiais e cerca de 3.000 soldados apeados, muitos dos quais demasiado idosos para a vida militar; quartéis e armazéns delapidados; frotas de aviões e barcos incapazes de serem movidos dos locais onde se encontravam; reservas enormes de armas de pequeno porte e armas ligeiras (SALW) com mecanismos de controle ineficazes. Estas condições materiais eram complementadas com a percepção de corrupção largamente disseminada nas fileiras e uma imagem pública que instilava o medo na população. Sem qualquer apoio significativo a este sector por parte de doadores e incapaz de atrair jovens para as forças militares, o GdM decidiu que não tinha outra escolha senão a de reintroduzir o serviço militar obrigatório.

Recrutamento

O recrutamento obrigatório, contudo, não é o melhor meio de profissionalizar forças armadas. Calcula-se que anualmente 15 por cento dos recrutas seleccionados não se apresentam para o serviço militar e que aproximadamente 90 por cento dos que se apresentam deixam as forças armadas ao fim dos dois anos de serviço obrigatório. Os que decidemcontinuar nem sempre são os mais competentes.7

A maior parte dos chefes militares entrevistados pela equipa de pesquisa, lamentaram esta situação - sabem que o recrutamento resulta da necessidade de admitir pessoal para um ‘exército de generais’ e meter soldados em quartéis quase abandonados em vez de fazer parte de uma estratégia de reforma.

O recurso ao recrutamento obrigatório tem sido controverso – a oposição no Parlamento questionou a racionalidade de tal exercício considerando os escassos meios financeiros do estado de Moçambique. Os jovens Moçambicanos, também não satisfeitos com esta medida, parece terem encontrado formas de a evadir. De acordo com a lei, todo o cidadão Moçambicano tem que se registar para o serviço militar no ano em que atinge os 18 anosde idade. O exército, então, depois dos necessários testes médicos, selecciona os mais aptos e treina-os durante dois anos. No entanto, a maior parte dos Moçambicanos, ao atingirem os dezoito anos, simplesmente não se registam e não há mecanismo legal que os obrigue a fazê-lo – sanções legais foram apenas previstas para os que se registam e não se apresentam quando chamados para as FADM.

O registo militar começou com um ‘período extraordinário’ de dois meses (Agosto e Setembro) em 1998. Contava-se que mais de um milhão de Moçambicanos se registasse mas, uma semana antes da data final, apenas 51.634 tinham sido registados; no final do exercício apenas 140 mil do milhão de recrutas que se esperava, tinham sido registados. O governo tinha previsto a inclusão de 3.000 recrutas mas acabou recrutando apenas 1.000, todos do sexo masculino.8

Este padrão tem sido repetido todos os anos. Em 2003, dos cerca de 424.000 Moçambicanos que se esperava fazerem 18 anos, apenas 21.000 jovens foram registados.9

Os líderes militares estão conscientes das contribuições importantes que as forças de segurança podem fazer para a edificação da coesão e identidade nacionais. “A estrutura militar, com os seus princípios igualitários, é ideal para a reconciliação entre combatentes”, afirmou um antigo general da Renamo, presentemente ao serviço das FADM.10

Eles vêem o exército como uma instituição capaz de estruturar, de alguma forma, uma sociedade cuja estrutura foi desfeita pela guerra civil; como uma instituição com o potencial para dar capacidade e integrar jovens que, de outra forma, terão poucas ou nenhumas oportunidades de treino / educação; como uma instituição merecedora de respeito e não de desprezo. E eles estão certos na sua avaliação daquilo que as FADM representam e podem vir a ser.

Presentemente as FADM têm aproximadamente 15.000 homens e mulheres, 9.000 dos quais são oficiais.11 Para assistir na alimentação destas tropas, as FADM iniciaram recentemente um programa agrícola em certas áreas. Este programa também tem como objectivo aumentar a capacidade dos soldados.

Membros das forças armadas passarão 40% do seu tempo na agricultura e pecuária e os restantes 60% em actividades militares.12 As FADM procuram o apoio de doadores para estas actividades. Apesar de invulgares, tais intenções são dignas de louvor e mostram a grande vontade, no seio das FADM, de ultrapassar as dificuldades que encontram presentemente. Esta iniciativa criou algumas preocupações na sociedade civil em relação à legitimidade da utilização de soldados como fonte de trabalho e pode não encontrar simpatia no seio da comunidade internacional pelas mesmas razões mas tem que ser reconhecida pela forma como aborda a questão.

Os quartéis e paióis delapidados são uma procupação constante, como justifica a explosão de um paiol de munições na Beira que foi atingido por um raio.13 Estas facilidades que anteriormente estavam isoladas, estão agora envolvidas por populações e representam um risco não previsto na sua concepção. Mas estes quartéis e armazéns também representam bens imóveis que podem ser utilizados para outros fins e gerarem alguma receita – podem, por exemplo, ser vendidos ou alugados a outras instituições ou ao sector privado. A quantidade de infraestruturas de que as FADM precisam depende da sua própria natureza e, como tal, decisões sobre esta questão – quantas, que tipo e onde – deviam fazer parte de qualquer estratégia para a reforma do sector da segurança.

Reservas de Armamento

No que respeita a armamentos, não foi possível obter o número exacto de armas controlado pelas FADM. No entanto, a questão central não devia ser sobre o número de armas mas antes, como é que o equipamento é registado, armazenado e controlado. Os entrevistados pareceram estar de acordo sobre o facto de as FADM estarem armadas em excesso, no sentido em que as armas de fogo entregues pela ONUMOZ apenas, podem armar 10 vezes cada soldado, mas ninguém sabe ao certo até que ponto as FADM estão armadas em excesso. Quer dizer, em termos quantitativos, os números são elevados mas não foi feita a avaliação da qualidade do equipamento sob a supervisão das forças armadas presentemente. Há um sistema de registo para cada arma ou peça de equipamento na posse das FADM mas é um sistema manual de simples entradas num livro de registo, considerado como ineficaz e duvidoso. Durante o encontro realizado aquando do trabalho no terreno, participantes das FADM reconheceram a necessidade de ser feito um inventário dos armamentos e das instalações de armazenamento, reconhecendo também que tais inventários são parte integrante da mais vasta estratégia para a reforma.

A Polícia

Se as forças armadas apresentam um quadro sombrio, as forças de polícia, apesar de receberem mais apoio, quer do governo quer de doadores, parecem sofrer de uma imagem igualmente danificada ao mesmo tempo que se debatem com os legados do processo de paz. Apesar do AGP requerer um novo exército constituído por homens de ambos os lados, tal cláusula não foi incluída para a polícia. Para além disso, o AGP também estipulou que ambos os exércitos deviam ser desarmados e desmobilizados mas as actividades policiais deviam continuar sob a esfera de acção da PRM- Polícia da Republica de Moçambique.

A Missão da CIVPOL

A polícia representava assim o instrumento ideal para a Frelimo manter uma espécie de poderio militar, uma vez que não podia mais contar com o apoio de um exército da Frelimo. Muito tem sido escrito sobre as dificuldades que envolveram a missão da Polícia Civil das Nações Unidas (UNCIVPOL) em Moçambique, cujo mandato era “... observar o comportamento da força de polícia indígena durante este delicado período na história de Moçambique“.14 Tanto as NU como a Renamo queriam uma forte presença policial das NU para garantir a segurança pública enquanto a Frelimo viu tal presença como uma incursão na soberania nacional – sendo a segurança pública da competência do governo nacional. A Frelimo pode ter estado certa neste ponto, mas havia uma outra razão para limitar a CIVPOL – a transferência de pessoal militar para a polícia nacional tinha começado em 1990, com as negociações de paz,15 e continuaria ainda durante o período da missão da CIVPOL em Moçambique. Segundo Woods:

“Com a passagem to tempo, tornou-se cada vez mais claro aos oficiais da CIVPOL que tropas do governo e equipamento estavam a ser transferidos para a polícia, especialmente para a Guarda Presidencial… aos oficiais da CIVPOL era por vezes negado o acesso ao local onde pessoal e equipamento militar era suspeito de estar a ser convertido para uso pela polícia. Num caso, a uma delegação visitante do Conselho de Segurança foi mostrado inadvertidamente um campo de treino da polícia que não tinha sido declarado, onde recrutas da polícia estavam a ser treinados no uso de metralhadoras. Mais tarde, foi negado o acesso dos oficiais da CIVPOL ao campo de treino quando estes pediram para verificar o relatório.”16

O governo da época, talvez mais motivado sobrevivência política do que por preocupações com a segurança pública, retardou tanto quanto possível o destacamento da polícia civil das NU, cujos primeiros membros só chegaram em Setembro de 1993. Dada a falta de cooperação no seio da PRM e a pouca capacidade de muitos membros do contingente da CIVPOL, quando a CIVPOL partiu, em 1994, pouco tinha sido feito para melhorar a capacidade da PRM ou para melhorar a situação da criminalidade. Como Martinho Chachiua afirma “ ... apesar do ambiente da segurança interna, caracterizado por violência criminal, a necessidade da sobrevivência política manteve as políticas de segurança separadas das necessidades de segurança.”17

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