Escrito por Miguel Bruno Duarte
«Não poderia ter sido mais acabado o êxito de Salazar, nem mais completo o seu triunfo político. Com o seu agudo sentido da história, a sua capacidade de distinguir o duradouro do efémero, o seu dom de joeirar o fundamental do acessório, a sua visão das forças constantes e dos interesses permanentes, a sua lucidez fria e a sua serenidade acima dos acontecimentos, Oliveira Salazar compreendeu antes de qualquer outro o carácter real do conflito espanhol. Na efectividade das coisas, bateram-se no solo da Espanha forças da Europa: logo de início, era internacional a luta».
Franco Nogueira («Salazar», III).
Académicos, ensaístas de ficção e opinantes afins dificilmente atendem às razões que levaram Portugal a se precaver perante o estranho intento de uma Federação das Repúblicas Soviéticas Ibéricas. Logo, não por acaso constituíra Oliveira Salazar um paradigma providencial dessa precaução a avaliar pela sua política aquando da Guerra Civil de Espanha. Nesse contexto, quis sobretudo prevenir uma influência oriental na Península Ibérica, neste caso a russa, cuja intervenção nos assuntos espanhóis implicara conselheiros militares, material de guerra desembarcado nos portos do Mediterrâneo, bem como aviões baseados em Cartagena. Por sua vez, Hitler e Mussolini também despachavam para Espanha, em quantidades substanciais, armas e munições, assim como contingentes militares classificados de voluntários.
No ínterim, a Inglaterra acusava a sua incompreensão, porquanto habituada a fazer-se valer da tradicional moleza e subserviência da política portuguesa em prol dos interesses britânicos. Ora, Salazar pusera termo a tal coisa para surpresa e espanto do Governo de Sua Majestade, já que os interesses vitais de Portugal não poderiam doravante ser sacrificados a quaisquer considerações de ordem alheia (1). Assim se explica, pois, que Salazar jamais tivesse determinado a política portuguesa com base em razões puramente ideológicas, nem mesmo por uma qualquer afinidade de regimes.
Franco Nogueira («Salazar», III).
Académicos, ensaístas de ficção e opinantes afins dificilmente atendem às razões que levaram Portugal a se precaver perante o estranho intento de uma Federação das Repúblicas Soviéticas Ibéricas. Logo, não por acaso constituíra Oliveira Salazar um paradigma providencial dessa precaução a avaliar pela sua política aquando da Guerra Civil de Espanha. Nesse contexto, quis sobretudo prevenir uma influência oriental na Península Ibérica, neste caso a russa, cuja intervenção nos assuntos espanhóis implicara conselheiros militares, material de guerra desembarcado nos portos do Mediterrâneo, bem como aviões baseados em Cartagena. Por sua vez, Hitler e Mussolini também despachavam para Espanha, em quantidades substanciais, armas e munições, assim como contingentes militares classificados de voluntários.
No ínterim, a Inglaterra acusava a sua incompreensão, porquanto habituada a fazer-se valer da tradicional moleza e subserviência da política portuguesa em prol dos interesses britânicos. Ora, Salazar pusera termo a tal coisa para surpresa e espanto do Governo de Sua Majestade, já que os interesses vitais de Portugal não poderiam doravante ser sacrificados a quaisquer considerações de ordem alheia (1). Assim se explica, pois, que Salazar jamais tivesse determinado a política portuguesa com base em razões puramente ideológicas, nem mesmo por uma qualquer afinidade de regimes.
Na imagem: o Generalíssimo Franco
O conflito em solo espanhol era, portanto, um conflito internacional, ou, se quisermos, um choque brutal de civilizações que não só implicava, da parte de Salazar, uma atenção permanente quanto à conturbada história da Europa permeada de situações velhas de séculos, como sobretudo à salvaguarda dos interesses portugueses na Península e nos territórios de além-mar. Ora, neste particular, sabemos perfeitamente que Hitler já então projectava um maior interesse no conjunto da Península Ibérica do que propriamente em Espanha, até porque Portugal, no âmbito da sua multissecular aliança com a Inglaterra, representava uma inevitável brecha aberta no Sul da Europa. E, além do mais, Portugal detinha ainda o Arquipélago dos Açores, cujo valor estratégico seria acima de tudo do maior interesse para os Estados Unidos no caso de entrarem num conflito mundial que se avizinhava a passos largos. Por conseguinte, uma vez deflagrado o conflito, Hitler arquitectou um plano para atrair Portugal para a sua órbita com base em três possibilidades:
1. Aproveitar, por mediação de Franco, uma alegada proximidade dos dois regimes ibéricos (2) contra os interesses geoestratégicos da Grã-Bretanha.
2. Estimular os falangistas no sentido de conquistar o extremo ocidente da Península Ibérica.
3. Atravessar a Espanha, tal como já o fizera Napoleão, para se apoderar directamente de Portugal.
Todavia, Franco entregar-se-ia ao entendimento com Salazar, não obstante ter sido entretanto confiada ao ministro do Interior, Serrano Suñer, a missão de se encontrar com Hitler, Mussolini e Ciano (3) com vista à entrada de Espanha na guerra. Esta entrada seria, com efeito, enquadrada na «Operação Félix» (4) planeada pelos nazis para atacar Gibraltar, e cujas contrapartidas naturalmente exigidas implicariam Marrocos, Orão, a ampliação do território guineense e, porventura, a anexação da Catalunha francesa a Espanha. Os nazis, como é óbvio, recusaram tais contrapartidas devido aos seus interesses em pelo menos uma das Ilhas Canárias, assim como na África Central e sobretudo em Marrocos para a implementação das suas bases militares.
Seja como for, o certo é que a solução encontrada por Salazar passou por conter ora a hegemonia da Alemanha ora a da França (5) em Espanha. Para isso jogou, por um lado, com a intervenção das forças da Europa Central para se defender das pressões inglesas – esperando, aliás, para o efeito o momento propício para firmar o Pacto Peninsular com Franco -, e, por outro lado, desencadeou uma acção contrária no sentido de evitar e travar as influentes pressões da Itália e da Alemanha ao mesmo tempo que ajudava Franco a não se lançar na órbita de tais potências. Além disso, e precisamente com base nesta dialéctica dos contrários, desarma no plano interno quer as manobras comunistas, quer a acção revolucionária de nacionais-sindicalistas exaltados.
O conflito em solo espanhol era, portanto, um conflito internacional, ou, se quisermos, um choque brutal de civilizações que não só implicava, da parte de Salazar, uma atenção permanente quanto à conturbada história da Europa permeada de situações velhas de séculos, como sobretudo à salvaguarda dos interesses portugueses na Península e nos territórios de além-mar. Ora, neste particular, sabemos perfeitamente que Hitler já então projectava um maior interesse no conjunto da Península Ibérica do que propriamente em Espanha, até porque Portugal, no âmbito da sua multissecular aliança com a Inglaterra, representava uma inevitável brecha aberta no Sul da Europa. E, além do mais, Portugal detinha ainda o Arquipélago dos Açores, cujo valor estratégico seria acima de tudo do maior interesse para os Estados Unidos no caso de entrarem num conflito mundial que se avizinhava a passos largos. Por conseguinte, uma vez deflagrado o conflito, Hitler arquitectou um plano para atrair Portugal para a sua órbita com base em três possibilidades:
1. Aproveitar, por mediação de Franco, uma alegada proximidade dos dois regimes ibéricos (2) contra os interesses geoestratégicos da Grã-Bretanha.
2. Estimular os falangistas no sentido de conquistar o extremo ocidente da Península Ibérica.
3. Atravessar a Espanha, tal como já o fizera Napoleão, para se apoderar directamente de Portugal.
Todavia, Franco entregar-se-ia ao entendimento com Salazar, não obstante ter sido entretanto confiada ao ministro do Interior, Serrano Suñer, a missão de se encontrar com Hitler, Mussolini e Ciano (3) com vista à entrada de Espanha na guerra. Esta entrada seria, com efeito, enquadrada na «Operação Félix» (4) planeada pelos nazis para atacar Gibraltar, e cujas contrapartidas naturalmente exigidas implicariam Marrocos, Orão, a ampliação do território guineense e, porventura, a anexação da Catalunha francesa a Espanha. Os nazis, como é óbvio, recusaram tais contrapartidas devido aos seus interesses em pelo menos uma das Ilhas Canárias, assim como na África Central e sobretudo em Marrocos para a implementação das suas bases militares.
Seja como for, o certo é que a solução encontrada por Salazar passou por conter ora a hegemonia da Alemanha ora a da França (5) em Espanha. Para isso jogou, por um lado, com a intervenção das forças da Europa Central para se defender das pressões inglesas – esperando, aliás, para o efeito o momento propício para firmar o Pacto Peninsular com Franco -, e, por outro lado, desencadeou uma acção contrária no sentido de evitar e travar as influentes pressões da Itália e da Alemanha ao mesmo tempo que ajudava Franco a não se lançar na órbita de tais potências. Além disso, e precisamente com base nesta dialéctica dos contrários, desarma no plano interno quer as manobras comunistas, quer a acção revolucionária de nacionais-sindicalistas exaltados.
Se, apoiado pela Rússia, vingasse um regime de extrema-esquerda em Espanha, seria inevitável a sua extensão a Portugal. Por conseguinte, ficaria a Península Ibérica desligada da Europa, bem como impedido o acesso ao Mediterrâneo. Mais: as ilhas do Atlântico, tal como largas áreas da África Austral ficariam igualmente subordinadas às directrizes ideológicas da Rússia cuja presença estratégica no Atlântico impediria, por sua vez, o acesso ao Índico.
Perante a ameaça do comunismo na Península Ibérica, Salazar destaca-se nos meandros da alta política europeia. Primeiro, porque dá azo a que as demais potências sejam alertadas para o perigo de uma subversão social na Península, já de si preparadora não só de novas conquistas por parte do bolchevismo destruidor, mas também e, sobretudo, de um novo conflito à escala mundial. Depois, por não procurar fazer de Portugal uma potência mediadora (6) na guerra de Espanha, sob pena de o mesmo vir a ser posteriormente aniquilado por uma guerra civil instigada e perpetrada pelo comunismo invasor (7).
Aliás, fora desde logo o Governo francês, confrontado com o carácter internacional da guerra de Espanha, quem propusera um acordo de não-intervenção pautado por medidas comuns de neutralidade. Nessa altura, o Governo português, precavendo-se de qualquer compromisso intempestivo, solicitara ser esclarecido nalguns pontos, entre eles a neutralidade da zona de Tânger, as medidas de fiscalização sobre o envio de material de guerra, o alistamento de voluntários e todos os demais pontos tendentes ao não-cumprimento do acordo. Deste modo, se o Governo português não recusava a adesão de princípio a um acordo de não-intervenção na guerra civil de Espanha, a verdade é que reivindicava, por seu turno, a liberdade de avaliar as circunstâncias que o levassem a impor e a garantir a paz interna, a integridade e a independência de Portugal.
Consequentemente, rebenta uma campanha internacional (8) pelo facto de Portugal não aderir a uma fórmula abstracta e geral (9) que, ao fim e ao cabo, acabaria por lhe tolher a liberdade de acção política em proveito de interesses e ideologias alheias. No entanto, apesar de vários países - como a Alemanha, a Itália, Portugal e até a União Soviética - haverem publicado legislação interditando qualquer auxílio às forças em conflito na Espanha, os acontecimentos não deixariam de se precipitar ainda mais, conforme testemunha Franco Nogueira:
«Depois de existência efémera, não tem viabilidade política o governo de Martinez Barrio, e este demite-se; e Azãna chama ao poder a José Giral. Na efectividade das coisas, inicia-se uma revolução social na zona republicana. Todo o território está afectado por greves; e dezenas de milhar de armas são distribuídas aos revolucionários, ou por estes tomadas em Madrid, Barcelona, Málaga, e outras cidades. Instala-se um terror de massa; oficiais, falangistas, elementos da classe média, são abatidos na via pública. Realizam-se prisões aos milhares, decididas por comissões de vigilância ou de defesa, e de madrugada as vítimas são procuradas nas suas residências por grupos armados; e patrões, pequenos comerciantes, homens políticos, sacerdotes, burgueses havidos por reaccionários, são fuzilados de pronto. Contra a Igreja Católica é desencadeada uma campanha; são incendiados templos, assassinadas freiras, perseguidas ordens religiosas. Organizam-se em poder autónomo e paralelo as comissões de trabalhadores, as de empresa, as de vilas e aldeias; consoante as suas funções, designam-se de populares, de guerra, de defesa, de salvação pública; ou são revolucionárias, executivas, antifascistas; e atribuem-se competência soberana nos planos legislativo, executivo e judicial. Na sua composição, procuram reflectir a dosagem de várias facções. Substituindo-se gradualmente ao Estado, desintegram-no e reduzem-no à impotência; e criam um novo Estado. Com rapidez atingem os seus objectivos: em alguns dias, é destruída a base económica do poder eclesiástico; nos campos é colectivizada a propriedade rural; e presos, fuzilados, ou postos em fuga os empresários e os chefes e gestores, as fábricas e indústrias são tomadas pelas comissões. Com estas medidas, aplicadas no caos e no arbítrio, vem a estagnação económica, e depois é a baixa de produtividade, a expatriação de capitais, a crise de subsistências. Giral demite-se. E é substituído por Largo Caballero, chefe socialista, com Alvarez del Vayo nos Assuntos Exteriores. Perante o quadro de violência sente-se a Europa estupefacta e emocionada, e perplexa sobretudo» (10).
Perante a ineficácia do acordo de não-intervenção, viria a terreiro uma nova iniciativa decorrente dos Governos francês e inglês quanto ao estabelecimento de um comité de controle que administrasse e fiscalizasse o cumprimento daquele acordo. O Governo de Lisboa, firme e explicitamente, considerara então que um tal comité, destituído de fundamento jurídico e de garantias de imparcialidade, não havia delimitado com rigor as suas funções e competências, nem sequer os meios de as exercer com toda a isenção requerida. Por outras palavras, Salazar sabia perfeitamente que o organismo em causa se destinava a violar o acordo de não-intervenção para favorecer os republicanos em detrimento dos nacionalistas.
Rebenta assim nova campanha antiportuguesa, sobretudo instigada por círculos comunistas e socialistas em Londres e Paris. A Inglaterra, por intermédio dos seus representantes diplomáticos, insiste, por pressão francesa, na participação de Portugal no comité cujas reuniões já decorriam em Londres com praticamente todos os países europeus. Nesse momento, o Governo português tomava conhecimento de que a França pretendia organizar um bloqueio às costas de toda a Península Ibérica, confirmando-se, desse modo, o verdadeiro motivo que mobilizava o esquerdismo europeu: a instauração do plano ibérico do comunismo (11).
Notas:
(1) «(…) a aliança não é toda a nossa política externa e (…) não é à Inglaterra que compete defender antes de nós ou mesmo contra nós todos os nossos interesses» (in Oliveira Salazar, «Portugal, a Aliança inglesa e a Guerra de Espanha», Discursos e Notas Políticas, II, 1935-1937, Coimbra Editora, 1945, p. 313).
(2) A este respeito, corrige Franco Nogueira: «Criou-se posteriormente a ideia de que o Pacto Peninsular resultara de afinidade ideológica entre os regimes de Portugal e Espanha, e representaria como que um conluio pessoal entre Franco e Salazar. Nada há de menor fundamento. A iniciativa pertenceu a Franco, e da parte de Salazar foi um frio acto político, que praticou quando julgou conveniente para os interesses portugueses» (ob. cit., p. 587).
(3) Ministro dos Negócios Estrangeiros de Itália, e genro de Mussolini.
(4) A «Operação Félix» tinha por objectivo a conquista alemã da Península Ibérica, visando assim afastar os ingleses do Mediterrâneo Ocidental. Para esse efeito, a conquista de Gibraltar constituía um factor estratégico incontornável. Na sequência, viria ainda a ocupação das Ilhas de Cabo Verde, da Madeira e dos Açores.
(5) «Em França, a Frente Popular não esconde a sua simpatia pela causa republicana; não obstante os avisos de Londres, Léon Blum e Pierre Cot permitem o envio de substanciais partidas de material de guerra para as forças governamentais; e os meios conservadores franceses, em especial da Action Française, desencadeiam contra o seu governo uma campanha cerrada, acusando-o de pôr em perigo, pela sua atitude intervencionista, a paz da Europa» (in F. Nogueira, ob. cit., p. 16).
(6) «Se (…), como se insinua, se deseja oferecer a mediação às duas partes para terminar o conflito por meio de acto eleitoral, oferece-se com a melhor das intenções um serviço justificável, se se reduz o problema de Espanha à luta armada de dois partidos políticos pela posse do Poder, incompreensível se, como supomos, ali se assiste à luta de duas civilizações ou de uma civilização contra a barbárie. A cessação da luta por qualquer forma que não seja a vitória iniludível e indiscutível de algum dos contendores, seguida daquele Governo forte mas generoso de que a Espanha carece, é aliviá-la de um flagelo, sem dúvida grande, para a deixar esmagar dentro de pouco tempo por outro maior e sem remédio. Com tal táctica não pode concordar o Governo português, e sente que as ideias neste sentido postas a correr, aliás sem justificação conhecida, são já em si um perigo para a civilização ocidental» (Oliveira Salazar, «Projecto anglo-francês de não-intervenção e de mediação na Guerra de Espanha», in ob. cit., pp. 237-38).
(7) «Nós temos na península interesses muito especiais e corremos riscos que outros não correm. Consideramos que a opinião pública de alguns países, e designadamente da França e da Inglaterra, está mal formada em relação ao verdadeiro problema espanhol e à natureza dos acontecimentos ali desenrolados. Alguns não acreditam no perigo comunista; nós, ao contrário, vemo-lo, sentimo-lo, tememos se instale em Espanha com a ajuda estrangeira e, finalmente, se frustre o intento de deixar aos espanhóis a escolha do seu regime futuro – pois não haveria liberdade nacional nem independência onde várias internacionais talhassem a seu contento os povos e os governos. Daqui vem a nossa atitude desde a primeira hora; daqui vem a nossa oposição a que a não-intervenção funcione em detrimento do nacionalismo espanhol, barreira entre Portugal e o comunismo ibérico; daqui vem o ódio de que somos objecto, e devo dizê-lo em plena consciência que o merecemos inteiramente (Oliveira Salazar, «Portugal, a Aliança inglesa e a Guerra de Espanha», in ob. cit., pp. 313-314).
(8) Abordando inclusivamente a questão do comité de controle proposto pela França, de que falaremos mais adiante, replica Salazar: «Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, se nos põe a alternativa de seguirmos determinado caminho ou ficarmos com a responsabilidade de desabar o mundo. Nós não acreditamos que em geral as coisas pudessem passar-se com tanta simplicidade e tão grande perigo, mas não queremos opor-nos aos bons entendimentos, sempre que não temos de respeitar um alto princípio moral ou de atender a interesses vitais do País: estes não podemos sacrificá-los a nenhuma consideração, mesmo porque passa a ser naturalmente bastante secundária para nós a desgraça do mundo, se nós já não existirmos para senti-la.
Ora os que têm seguido sem paixão o drama peninsular, os que não esqueceram a história de há décadas, de há anos e de há dias, os que se lembram das ambições alguma vez manifestadas do plano ibérico do comunismo, da clareza, aliás de agradecer, com que tem sido muitas vezes defendido na imprensa o direito de intervenção em Portugal, fazem-nos justiça de crer que não são românticos os receios nem levantamos por capricho dificuldades a ninguém; simplesmente não desistimos de que seja respeitada a nossa tranquilidade nem podemos transigir no necessário à defesa da vida e liberdade do nosso povo» («Os acontecimentos de Espanha e a não-intervenção», ob. cit., pp. 204-205).
Perante a ameaça do comunismo na Península Ibérica, Salazar destaca-se nos meandros da alta política europeia. Primeiro, porque dá azo a que as demais potências sejam alertadas para o perigo de uma subversão social na Península, já de si preparadora não só de novas conquistas por parte do bolchevismo destruidor, mas também e, sobretudo, de um novo conflito à escala mundial. Depois, por não procurar fazer de Portugal uma potência mediadora (6) na guerra de Espanha, sob pena de o mesmo vir a ser posteriormente aniquilado por uma guerra civil instigada e perpetrada pelo comunismo invasor (7).
Aliás, fora desde logo o Governo francês, confrontado com o carácter internacional da guerra de Espanha, quem propusera um acordo de não-intervenção pautado por medidas comuns de neutralidade. Nessa altura, o Governo português, precavendo-se de qualquer compromisso intempestivo, solicitara ser esclarecido nalguns pontos, entre eles a neutralidade da zona de Tânger, as medidas de fiscalização sobre o envio de material de guerra, o alistamento de voluntários e todos os demais pontos tendentes ao não-cumprimento do acordo. Deste modo, se o Governo português não recusava a adesão de princípio a um acordo de não-intervenção na guerra civil de Espanha, a verdade é que reivindicava, por seu turno, a liberdade de avaliar as circunstâncias que o levassem a impor e a garantir a paz interna, a integridade e a independência de Portugal.
Consequentemente, rebenta uma campanha internacional (8) pelo facto de Portugal não aderir a uma fórmula abstracta e geral (9) que, ao fim e ao cabo, acabaria por lhe tolher a liberdade de acção política em proveito de interesses e ideologias alheias. No entanto, apesar de vários países - como a Alemanha, a Itália, Portugal e até a União Soviética - haverem publicado legislação interditando qualquer auxílio às forças em conflito na Espanha, os acontecimentos não deixariam de se precipitar ainda mais, conforme testemunha Franco Nogueira:
«Depois de existência efémera, não tem viabilidade política o governo de Martinez Barrio, e este demite-se; e Azãna chama ao poder a José Giral. Na efectividade das coisas, inicia-se uma revolução social na zona republicana. Todo o território está afectado por greves; e dezenas de milhar de armas são distribuídas aos revolucionários, ou por estes tomadas em Madrid, Barcelona, Málaga, e outras cidades. Instala-se um terror de massa; oficiais, falangistas, elementos da classe média, são abatidos na via pública. Realizam-se prisões aos milhares, decididas por comissões de vigilância ou de defesa, e de madrugada as vítimas são procuradas nas suas residências por grupos armados; e patrões, pequenos comerciantes, homens políticos, sacerdotes, burgueses havidos por reaccionários, são fuzilados de pronto. Contra a Igreja Católica é desencadeada uma campanha; são incendiados templos, assassinadas freiras, perseguidas ordens religiosas. Organizam-se em poder autónomo e paralelo as comissões de trabalhadores, as de empresa, as de vilas e aldeias; consoante as suas funções, designam-se de populares, de guerra, de defesa, de salvação pública; ou são revolucionárias, executivas, antifascistas; e atribuem-se competência soberana nos planos legislativo, executivo e judicial. Na sua composição, procuram reflectir a dosagem de várias facções. Substituindo-se gradualmente ao Estado, desintegram-no e reduzem-no à impotência; e criam um novo Estado. Com rapidez atingem os seus objectivos: em alguns dias, é destruída a base económica do poder eclesiástico; nos campos é colectivizada a propriedade rural; e presos, fuzilados, ou postos em fuga os empresários e os chefes e gestores, as fábricas e indústrias são tomadas pelas comissões. Com estas medidas, aplicadas no caos e no arbítrio, vem a estagnação económica, e depois é a baixa de produtividade, a expatriação de capitais, a crise de subsistências. Giral demite-se. E é substituído por Largo Caballero, chefe socialista, com Alvarez del Vayo nos Assuntos Exteriores. Perante o quadro de violência sente-se a Europa estupefacta e emocionada, e perplexa sobretudo» (10).
Perante a ineficácia do acordo de não-intervenção, viria a terreiro uma nova iniciativa decorrente dos Governos francês e inglês quanto ao estabelecimento de um comité de controle que administrasse e fiscalizasse o cumprimento daquele acordo. O Governo de Lisboa, firme e explicitamente, considerara então que um tal comité, destituído de fundamento jurídico e de garantias de imparcialidade, não havia delimitado com rigor as suas funções e competências, nem sequer os meios de as exercer com toda a isenção requerida. Por outras palavras, Salazar sabia perfeitamente que o organismo em causa se destinava a violar o acordo de não-intervenção para favorecer os republicanos em detrimento dos nacionalistas.
Rebenta assim nova campanha antiportuguesa, sobretudo instigada por círculos comunistas e socialistas em Londres e Paris. A Inglaterra, por intermédio dos seus representantes diplomáticos, insiste, por pressão francesa, na participação de Portugal no comité cujas reuniões já decorriam em Londres com praticamente todos os países europeus. Nesse momento, o Governo português tomava conhecimento de que a França pretendia organizar um bloqueio às costas de toda a Península Ibérica, confirmando-se, desse modo, o verdadeiro motivo que mobilizava o esquerdismo europeu: a instauração do plano ibérico do comunismo (11).
Notas:
(1) «(…) a aliança não é toda a nossa política externa e (…) não é à Inglaterra que compete defender antes de nós ou mesmo contra nós todos os nossos interesses» (in Oliveira Salazar, «Portugal, a Aliança inglesa e a Guerra de Espanha», Discursos e Notas Políticas, II, 1935-1937, Coimbra Editora, 1945, p. 313).
(2) A este respeito, corrige Franco Nogueira: «Criou-se posteriormente a ideia de que o Pacto Peninsular resultara de afinidade ideológica entre os regimes de Portugal e Espanha, e representaria como que um conluio pessoal entre Franco e Salazar. Nada há de menor fundamento. A iniciativa pertenceu a Franco, e da parte de Salazar foi um frio acto político, que praticou quando julgou conveniente para os interesses portugueses» (ob. cit., p. 587).
(3) Ministro dos Negócios Estrangeiros de Itália, e genro de Mussolini.
(4) A «Operação Félix» tinha por objectivo a conquista alemã da Península Ibérica, visando assim afastar os ingleses do Mediterrâneo Ocidental. Para esse efeito, a conquista de Gibraltar constituía um factor estratégico incontornável. Na sequência, viria ainda a ocupação das Ilhas de Cabo Verde, da Madeira e dos Açores.
(5) «Em França, a Frente Popular não esconde a sua simpatia pela causa republicana; não obstante os avisos de Londres, Léon Blum e Pierre Cot permitem o envio de substanciais partidas de material de guerra para as forças governamentais; e os meios conservadores franceses, em especial da Action Française, desencadeiam contra o seu governo uma campanha cerrada, acusando-o de pôr em perigo, pela sua atitude intervencionista, a paz da Europa» (in F. Nogueira, ob. cit., p. 16).
(6) «Se (…), como se insinua, se deseja oferecer a mediação às duas partes para terminar o conflito por meio de acto eleitoral, oferece-se com a melhor das intenções um serviço justificável, se se reduz o problema de Espanha à luta armada de dois partidos políticos pela posse do Poder, incompreensível se, como supomos, ali se assiste à luta de duas civilizações ou de uma civilização contra a barbárie. A cessação da luta por qualquer forma que não seja a vitória iniludível e indiscutível de algum dos contendores, seguida daquele Governo forte mas generoso de que a Espanha carece, é aliviá-la de um flagelo, sem dúvida grande, para a deixar esmagar dentro de pouco tempo por outro maior e sem remédio. Com tal táctica não pode concordar o Governo português, e sente que as ideias neste sentido postas a correr, aliás sem justificação conhecida, são já em si um perigo para a civilização ocidental» (Oliveira Salazar, «Projecto anglo-francês de não-intervenção e de mediação na Guerra de Espanha», in ob. cit., pp. 237-38).
(7) «Nós temos na península interesses muito especiais e corremos riscos que outros não correm. Consideramos que a opinião pública de alguns países, e designadamente da França e da Inglaterra, está mal formada em relação ao verdadeiro problema espanhol e à natureza dos acontecimentos ali desenrolados. Alguns não acreditam no perigo comunista; nós, ao contrário, vemo-lo, sentimo-lo, tememos se instale em Espanha com a ajuda estrangeira e, finalmente, se frustre o intento de deixar aos espanhóis a escolha do seu regime futuro – pois não haveria liberdade nacional nem independência onde várias internacionais talhassem a seu contento os povos e os governos. Daqui vem a nossa atitude desde a primeira hora; daqui vem a nossa oposição a que a não-intervenção funcione em detrimento do nacionalismo espanhol, barreira entre Portugal e o comunismo ibérico; daqui vem o ódio de que somos objecto, e devo dizê-lo em plena consciência que o merecemos inteiramente (Oliveira Salazar, «Portugal, a Aliança inglesa e a Guerra de Espanha», in ob. cit., pp. 313-314).
(8) Abordando inclusivamente a questão do comité de controle proposto pela França, de que falaremos mais adiante, replica Salazar: «Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, se nos põe a alternativa de seguirmos determinado caminho ou ficarmos com a responsabilidade de desabar o mundo. Nós não acreditamos que em geral as coisas pudessem passar-se com tanta simplicidade e tão grande perigo, mas não queremos opor-nos aos bons entendimentos, sempre que não temos de respeitar um alto princípio moral ou de atender a interesses vitais do País: estes não podemos sacrificá-los a nenhuma consideração, mesmo porque passa a ser naturalmente bastante secundária para nós a desgraça do mundo, se nós já não existirmos para senti-la.
Ora os que têm seguido sem paixão o drama peninsular, os que não esqueceram a história de há décadas, de há anos e de há dias, os que se lembram das ambições alguma vez manifestadas do plano ibérico do comunismo, da clareza, aliás de agradecer, com que tem sido muitas vezes defendido na imprensa o direito de intervenção em Portugal, fazem-nos justiça de crer que não são românticos os receios nem levantamos por capricho dificuldades a ninguém; simplesmente não desistimos de que seja respeitada a nossa tranquilidade nem podemos transigir no necessário à defesa da vida e liberdade do nosso povo» («Os acontecimentos de Espanha e a não-intervenção», ob. cit., pp. 204-205).
(9) «Temos procurado que os princípios políticos e morais que seguimos e a que estamos ligados se distingam por uma vez corajosamente das fórmulas vazias, hipócritas, a ameaçarem converter a vida internacional em farisaísmo intolerável, em sábio processualismo inútil, já sem poder sequer salvar as aparências. A esses altos princípios da vida social, entre os indivíduos e entre os povos, entendemos que tudo o que lhes é inferior se deve sacrificar; mas o que por vezes se sacrifica são realidades tangíveis a concepções abstractas sem alicerces na razão nem na vida no espírito dos homens» (Oliveira Salazar, «A Guerra de Espanha e a suspensão de relações diplomáticas», in ob. cit., p. 223).
(10) Franco Nogueira, Salazar, III, Livraria Civilização Editora, 1983, pp. 26-27.
(11) «Quando forem levadas a bom termo, como esperamos, estas incruentas batalhas diplomáticas, todos os países de ordem poderão ver com seriedade que no fundo só em duas coisas interessa deter a atenção. A primeira é: o comunismo está a travar na Península uma formidável batalha de cujo êxito dependerá em grande parte a sorte da Europa, razão por que por ela se interessam e nela tentarão intervir, na medida permitida em cada Estado, todas as ideologias afins. A segunda é: mais valioso para o comunismo ibérico do que um carregamento de armas e munições seria a transformação política operada em Portugal que tornasse vulnerável a retaguarda de todo o exército espanhol. E foge-me a pena para uma pergunta indiscreta: também nesse caso interessaria tanto como agora que aderíssemos ao compromisso de não-intervenção?» (Oliveira Salazar, «Os acontecimentos de Espanha e a não-intervenção», ob. cit., p. 203).
Continua
(10) Franco Nogueira, Salazar, III, Livraria Civilização Editora, 1983, pp. 26-27.
(11) «Quando forem levadas a bom termo, como esperamos, estas incruentas batalhas diplomáticas, todos os países de ordem poderão ver com seriedade que no fundo só em duas coisas interessa deter a atenção. A primeira é: o comunismo está a travar na Península uma formidável batalha de cujo êxito dependerá em grande parte a sorte da Europa, razão por que por ela se interessam e nela tentarão intervir, na medida permitida em cada Estado, todas as ideologias afins. A segunda é: mais valioso para o comunismo ibérico do que um carregamento de armas e munições seria a transformação política operada em Portugal que tornasse vulnerável a retaguarda de todo o exército espanhol. E foge-me a pena para uma pergunta indiscreta: também nesse caso interessaria tanto como agora que aderíssemos ao compromisso de não-intervenção?» (Oliveira Salazar, «Os acontecimentos de Espanha e a não-intervenção», ob. cit., p. 203).
Continua
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