Pedro Pires, em Grande Entrevista, fala de África e da força de Cabo Verde como exemplo de estabilidade.
O antigo presidente de Cabo Verde foi orador na conferência da juventude africana organizada, recentemente, em Maputo, pelo Parlamento Juvenil. “O País” e a Stv entrevistaram-no, numa longa e incisiva viagem às convulsões na Guiné-Bissau, passando pelo papel da CPLP e da força da União Africana no sistema internacional. É a voz de quem dirigiu um Estado-exemplo, onde a corrupção, a contestação eleitoral e a pobreza são quase nulas.
Cabo Verde é um exemplo de democracia e estabilidade política. Quais são os fundamentos que sustentam o país?
Isso é, simplesmente, uma indicação e devemos ter em conta como tal. Cabo Verde está dotado de um Estado de Direito, cujas instituições funcionam normalmente e cujo objectivo é fazer com que essas instituições se aperfeiçoem. Vejo tudo isto numa abordagem gradualista, em que nós começámos num dado momento, numa dada situação e fomos aperfeiçoando as nossas instituições e o seu funcionamento. As instituições cabo-verdianas funcionam normalmente, embora tenham necessidade de aperfeiçoamento. Temos um clima de liberdade, onde as pessoas podem exprimir, livremente, as suas preocupações. Para além disso, no dia-a-dia, há um debate, um intercâmbio precisamente para melhorar o funcionamento do regime democrático cabo-verdiano. Nesta matéria não há receitas e nós não temos lições especiais a dar a ninguém, porque é uma acção desenvolvida de acordo com a realidade na qual estamos inseridos. Cada caso é um caso, vamos apreciar um e outro para vermos o que é possível fazer para que o sistema político instalado funcione, é o que tem vindo a acontecer em Cabo Verde.
Qual é o nível de alternância política em Cabo Verde?
Cabo Verde teve uma segunda alternância e em 2016 terão lugar outras eleições. Há sempre alternância, quer a nível do poder central, quer a nível dos poderes locais. No entanto, a alternância não é uma fatalidade, entendo que aí são as forças políticas que estão presentes e competem, determinando se há alternância política ou não.
Como é monitorado o processo eleitoral em Cabo Verde?
Não há nada de especial nisso tudo. Chamo atenção em relação às comparações. Somos países diferentes, não há democracias perfeitas, o processo eleitoral é construído e aperfeiçoado progressivamente. Isto depende muito dos actores políticos e do contexto nacional. No processo eleitoral em Cabo Verde procura-se que o recenseamento seja o mais abrangente possível, depois divulgam-se as listas eleitorais dos actores, dos concorrentes. O que facilita o sistema eleitoral de Cabo Verde neste momento é a introdução da informatização quer do recenseamento, quer do próprio acto eleitoral. Isto tem uma vantagem de facilitar e, ao mesmo tempo, agilizar o processo, o que permite ver os resultados em curto espaço de tempo.
Qual é o prazo para a divulgação dos resultados?
Não lhe posso dizer, neste momento, porque isto depende da Lei Eleitoral. A lei limita, mas em Cabo Verde os resultados preliminares são dados a conhecer entre 24 e 48 horas. As eleições devem ser depois sancionadas pelo Tribunal Constitucional ou por outro órgão decisório. Portanto, não basta dar o resultado, é preciso que este seja conferido e consolidado pelo órgão competente, que geralmente é o Tribunal Constitucional ou um outro de segunda instância.
ELEIÇÕES EM ÁFRICA
Como é que olha para os processos eleitorais em África, quase sempre contestados pelos partidos derrotados?
Não tenho pretensão de conhecer tudo o que se passa em África. Não posso tirar conclusões através de constatações ou através de informação divulgada pelos media. Por exemplo, temos, neste momento, eleições no Gana e dentro em breve teremos os resultados. Tivemos eleições no Senegal em que todas as partes aceitaram os resultados. Muitas vezes quem reclama não consegue provar. É importante que se faça um bom recenseamento e durante o acto eleitoral é necessário que haja a liberdade do eleitor para fazer a sua escolha e, por fim, haver um órgão superior que decide sobre as eleições. É importante que esses órgãos funcionem normalmente durante o processo. Nisto tudo, os partidos políticos devem-se preparar, devem dispor de meios para fazer uma boa campanha ou terão que trabalhar durante o ano todo e não esperar aparecer apenas no dia das eleições.
As eleições dependem muito do trabalho feito antes e durante o processo. Os actores políticos devem fazer conhecer os seus argumentos e não pensar que eleições só tem aquele debate que decorre durante os 30 dias antes da votação.
Qual é o nível de debate de ideias em Cabo Verde?
Não acredito que os governos procurem travar o debate. Se há uma vontade de o fazer, o debate é feito. Temos que perguntar a nós mesmos o que é que estamos a fazer para que haja o debate e não ficarmos à espera que alguém crie condições.
Está claro que as autoridades não devem impedir o debate, antes pelo contrário, o diálogo político é fundamental na actual situação. Outra coisa é que aqueles que vão provocar o debate, os analistas, os fazedores da opinião, os estudiosos, devem participar no debate e isto não depende da vontade do governo. O problema é que há uma tendência para se encontrar o culpado para as nossas insuficiências. Os cidadãos têm que saber se estão a agir num bom sentido: se nós somos responsáveis, se nós propomos debates, se nós nos preparamos, portanto, os intervenientes são os cidadãos.
Deixou a presidência no ano passado. Qual é o legado que deixa para o continente, em particular para Cabo Verde?
O legado deixado, talvez o mais importante, consiste na confiança no país, confiança em nós mesmos diante das dificuldades. Esse engajamento pessoal fez com que pudéssemos ultrapassar as grandes dificuldades. Isso é que marcou a minha vida política.
Mas também o que marcou a minha vida política é a dedicação a uma causa, essa causa chama-se Cabo Verde. Agora, caberá aos cabo-verdianos analisar tudo isto e saber que lições vão tirar daquilo que fiz.
Cabo Verde é um país de imigrantes. Esta tendência traz ao país conhecimento e técnicas diversificadas...
Há muitos cabo-verdianos que vivem fora. Há muitos quadros superiores e artistas que escolheram viver fora. E quando há um grande número de população que vive fora, ela gera ao país de origem ideias e técnicas diferentes. Procuro ver esta situação com realismo, acho que pode trazer vantagens, mas depende das relações que se estabelecem entre aqueles que vivem fora e o país.
O fundamental é manter relações cordiais entre os cabo-verdianos que vivem no país e aqueles que vivem na diáspora. Os cabo-verdianos mantêm uma relação bastante forte com o seu país de origem. Há muitos investimentos daqueles que vivem fora e esta contribuição é muito importante para o desenvolvimento sócio-económico do país. Neste momento, no Parlamento cabo-verdiano há seis deputados eleitos na diáspora. Esta é uma forma de integrar o esforço conjunto nacional. Hoje, com a evolução das tecnologias de comunicação, podemos estabelecer relações de cooperação com os técnicos cabo-verdianos altamente qualificados que vivem fora. Portanto, a diáspora é uma parte de Cabo Verde, é o prolongamento da nossa unidade nacional. Temos que fazer esforço para que a emigração seja um factor de desenvolvimento. Para mim, a emigração não traz desvantagem nenhumas, para Cabo Verde a questão não se coloca como é colocada para África no geral. A fuga de cérebros é uma realidade para o continente africano. Em Cabo Verde, temos casos de intelectuais que depois de um tempo regressaram à sua terra-mãe. Mesmo em África, no geral, com o desenvolvimento tecnológico, é possível aproveitar os intelectuais na diáspora para o desenvolvimento dos países de origem. As universidades e os centros de investigação africanos devem organizar-se no sentido de se aproveitar os nossos compatriotas, onde quer que estejam.
Quais são os desafios colocados à juventude cabo-verdiana, esta que deve manter a estabilidade?
Os desafios para Cabo Verde são semelhantes àqueles que são colocados para África e o mundo fora. Cabo Verde é um arquipélago, um país pequeno, uma economia pequena, pelo que as suas exigências advêm dessa situação actual. É importante que se lute para que o país seja atractivo, seja competitivo e para que tenha a produção necessária. O risco que vejo é o do consumismo. Queremos consumir coisas sem saber se esse consumo é prioritário ou não. Não sabemos se estamos em condições de consumir sem provocar problemas no nosso orçamento ou não. Devemos estabelecer bem as nossas prioridades. Uma prioridade deve ser exequível e a sua execução deve permitir a criação de condições para a realização da prioridade seguinte para não se confundir o imediatismo com as ideias de médio e longo prazos, que afinal são as bases para o desenvolvimento. Somos chamados a ser realistas, porque somos um país pequeno e não temos por onde fugir. Hoje em dia, o conhecimento é fundamental para garantir o desenvolvimento e a nossa autonomia em relação aos outros. Precisamos de trabalhar porque ninguém vai aparecer a nos oferecer coisas. Penso que essa devia ser a visão estratégica do nosso futuro.
Quando começámos a luta pela libertação nacional, éramos jovens. Cada tempo tem o seu chamamento e o seu desafio. Naquela altura, o chamamento era pela libertação, independência e pela construção de um Estado soberano e isso resultou em muito sacrifício e muita dor. Agora não se pode ficar à espera que as coisas aconteçam. Alguns têm lamentado que a juventude africana conhece mal a sua história. A primeira necessidade é o conhecimento da nossa história, de onde saímos, o que fizemos e onde estamos agora. É preciso questionar o que teria acontecido para cairmos na dominação. A história serve para reflectir e traçarmos o futuro. A história não é uma ideia de vingança, mas sim a verificação de factos. Só assim podemos traçar um futuro melhor.
A outra questão é a educação. Hoje ela constitui uma prioridade. Mas nada na vida é fruto do acaso. Os jovens devem ser actores comprometidos com o desenvolvimento e a consolidação da nossa autonomia como Estados. A questão que se coloca é sobre que relações devem existir entre os jovens de diversos países. Está claro que devem ser relações de complementaridade, de solidariedade, de cooperação, sabermos que juntos podemos ser mais fortes.
CPLP
A CPLP satisfaz às expectativas dos seus povos?
Temos que questionar se a CPLP é o actor principal do nosso desenvolvimento ou apenas um espaço de cooperação. Entendo que a CPLP é um espaço de cooperação para o nosso desenvolvimento, que podemos usar a cooperação, a solidariedade e o intercâmbio de ideias entre os países. Não cabe à CPLP ser o actor principal do nosso desenvolvimento, este papel cabe a cada país. Portanto, a CPLP é um espaço suplementar para o desenvolvimento e não um espaço principal.
É preciso entender que na CPLP as obrigações são menos rígidas que noutros blocos regionais. Não vejo a CPLP como um bloco, mas como um grupo de países que se podem ajudar em caso de dificuldades.
GUINÉ-BISSAU
O que levou Cabo Verde a romper as relações com a Guiné-Bissau?
É uma velha história que não podemos voltar a visitar, porque os factos quando se tornam história é para serem tratados por historiadores e não por políticos. Eu era político e não historiador. Mas o que provocou a ruptura foi ter havido na Guiné-Bissau um golpe de Estado. Na minha análise, o golpe de Estado abre caminho a um outro golpe e passa a ser cíclico. Os problemas políticos não devem ser resolvidos através de golpes de Estados, devem ser resolvidos politicamente através dos órgãos políticos que gerem os países. Portanto, este foi um dos factores.
A sua tese de que os golpes geram golpes é fundamentada pela situação na Guiné-Bissau.
Não seria tão contundente com a Guiné-Bissau. Na verdade houve acontecimentos inaceitáveis e há necessidade de repor o país no caminho certo, mas qualquer analista verifica que dentro disto há uma constante que são as forças armadas da Guiné. É fundamental encontrarem-se formas de se reformar profundamente as forças armadas, para que elas passem a ser republicanas, fazendo o seu trabalho de defesa e protecção da soberania nacional. O estado da Guiné é refém das suas forças armadas. Há necessidade de se pôr fim à ideologia ou a atitudes de libertação nacional. Naquele momento, o movimento de libertação nacional era tudo, incluindo política. Agora as forças armadas têm que ser só forças armadas. A solução passa por uma reforma profunda das forças armadas para que o sistema político seja civil.
Por onde iniciar as reformas na Guiné-Bissau?
Por onde começar não sei, porque muitas instituições das Nações Unidas e da CEDAO tentaram desbloquear o impasse. Se queremos estabilidade na Guiné, se queremos um Estado de Direito estável e sólido temos de ver esse elemento perturbador que são as forças armadas.
Quem deve resolver a crise na Guiné-Bissau? não há necessidade de mão externa dura?
A maior responsabilidade cabe aos guinenses. No entanto, é necessário o apoio da comunidade internacional, como é o caso da CEDEAO, Nações Unidas e CPLP.
A instabilidade em África não se resume apenas a Guine-Bissau. A RDC é assolada por uma guerra civil dilacerante.
Não gostaria de entrar por um caminho que desconheço perfeitamente. Também não posso falar na base daquilo que leio na comunicação social. Entendo que há que encontrar uma solução. É preciso estabelecer relações de cooperação entre os países que estão implicados no conflito. Porque se conseguirmos construir projectos de interesses comuns, esses países poderão cooperar ao invés de fomentar rebeliões. Veja como a Europa resolveu o problema das guerras, juntou primeiro o aço, depois o carvão e assim em diante.
Quem ganha com o caos na RDC? Há a ideia da existência de uma mão externa, interessada nos recursos naturais?
Ninguém ganha com o caos no Congo. Quando Patrice Lumumba foi assassinado, eu estava em Portugal. Nós decidimos usar gravatas pretas e fizemos isso até à nossa saída de Portugal. A RDC está independente há mais de 60 anos, portanto, não conseguiram a estabilização do país. Uma das grandes fraquezas está na natureza do Estado. É preciso um Estado forte, cuja autoridade chega a todo o território nacional. A ausência da autoridade do Estado enfraquece os laços de integração e de solidariedade nacional. Todos perdemos com o caos na RDC porque não queremos uma imagem dum continente com tanta falta de consenso.
O apego ao poder é um dos principais factores de instabilidade em África, mesmo quando o âmbito de governação é limitado pela Constituição.
Olha você quer pôr-me em guerra com muita gente. As Constituições são feitas para serem respeitadas e devemos respeitá-las devido à questão da previsibilidade. Se queremos fazer avançar os nossos países, devemos comportar-nos de tal forma que haja previsibilidade dos nossos actos. Estou de acordo que deve haver limite de mandatos, mas não discuto o número de mandatos. Entre mudar o número de mandatos e alterar o tempo de mandatos talvez optasse pela alteração do tempo de mandato. Entendo que a construção dum país não se faz num mandato nem em dois, sobretudo quando temos países que saem de guerras e outras crises. Esses países exigem projectos de longo prazo. Não condeno, isso cabe aos analistas. Se tivermos necessidade de mudar de regime, façamos um grande debate nacional e elaboremos uma constituição diferente daquela que temos, mas enquanto tivermos uma constituição, devemos cumpri-la.
O ex-presidente do Brasil, Lula da Silva, é considerado um exemplo da distribuição da riqueza. Apostou na educação e no combate à pobreza...
Aquilo que Lula fez no Brasil, fez num país relativamente rico. O Brasil não é um país pobre, é sim um país injusto. A riqueza está mal distribuída. Brasil é um país suficientemente desenvolvido, quer do ponto de vista de produção, quer do ponto de vista de tecnologia. Portanto, não vamos comparar Brasil nem com Cabo Verde e nem com Moçambique. Eu acho que deve haver políticas específicas para a erradicação da pobreza. Acho que são poucos Estados africanos que poderiam autodenominar-se Estados-providência ou Estados sociais, porque para tal é preciso desenvolvimento e acumulação. Devemos ser suficientementes sociais para que os nossos Estados cumpram certas funções: saúde, educação e construção de infra-estruturas. Temos de ter políticas de desenvolvimento de longo prazo que dêem muita atenção ao conhecimento e à ciência.
A intervenção da Nato na Líbia e a consequente morte de Kadafi quebraram a autoridade da União Africana. A União Africana ainda não responde ao velho ditado de soluções africanas para problemas africanos?
A forma como o problema líbio foi resolvido foi altamente prejudicial para o prestígio e autoridade da União Africana. É fundamental que a União Africana faça alguma coisa para restaurar o seu prestígio e imagem junto das várias instituições e entidades internacionais.
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