Saturday, December 1, 2012

Mia Couto e a Memória

Mia Couto e a Memória *


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O texto que vocês vão ler saiu a fórceps. Primeiro porque existe, ou deveria haver, uma solidariedade natural entre escritores, que vem como um encontro de pacientes em uma sociedade oculta: é natural que nos protejamos do meio externo que não é bem acolhedor para a poesia e a escrita, essas coisas nada práticas. Segundo porque há mesmo uma solidariedade mais nobre entre literatos, ou um sentimento que nos faz sair da própria pele e caminhar além dos interesses mais particulares, mesquinhos: os companheiros de jornada expressam e vivem o que acreditamos estar entre os valores mais altos do homem - o enfrentamento, o gozo e a verdade da literatura. Se possível, na ordem inversa.


Agora vocês vão saber a razão do parágrafo anterior, que os manuais de redação dos jornais chamariam de “nariz de cera”. Quando Mia Couto veio a Pernambuco, pela primeira vez em 24 de outubro, fui a sua palestra na UFPE com muitas e grandes esperanças. Eu e mais leitores iríamos ganhar o prazer de um espetáculo melhor que o teatro ou o cinema, que vinha a ser a palestra de um escritor de reconhecimento universal. Ótimo, e passei a adiantar as tarefas do dia, pela manhã, para chegar a tempo. Mas já na saída de casa, o editor do Vermelho, o jornalista e escritor José Reinaldo, me sugeriu por email que eu poderia fazer uma entrevista com o grande moçambicano. Já estava ali, não era? Ao que lhe respondi: “eu imaginava que fosse me distrair, mas tudo bem, a gente descansa carregando pedra”. E assim fui, ledo e tarefado para ver Mia Couto e entrevistá-lo, se possível nessa ordem.


Apresentou-se no auditório lotado um escritor simpático, a falar baixo, no efetivo exercício de um ator experimentado com o seu papel. Ele, diante das inumeráveis manifestações de apreço, aplausos, sussurros irreprimíveis do público feminino, numa predisposição geral para aprovar o que ele houvesse de falar, me lembrava o tempo todo da frase de Borges, que assim falou ao receber saudações entusiasmadas nas ruas de Buenos Aires: “eles acenam para uma pessoa que pensam que sou eu”. Então anoto um rascunho enquanto o escritor fala, entre o tumulto e a unânime aprovação.


Mia Couto ao falar, como escritor, conta histórias, narra casos, em vez de organizar ideias abstratas. O que é do gênero de narradores, observo hoje, no texto presente. Mas criadores, bem sei também, são homens plenos, não são aleijões refratários a juízos que transcendam o enredo de pessoas e personagens. Pelo contrário, nos seus escritos se dá a iluminação de um pensamento que fortalece e dá substância eterna ao fato narrado, que seria um fato ultrapassável na crônica do tempo. Por isso agora me pergunto, ao refletir sobre a sua palestra: não seriam esses casos engraçados, jocosos, anedóticos, não seriam tais estímulos ao sorriso uma corte ao público? Voltemos então ao que anotei em 24 de outubro: Mia Couto conquista o auditório com o seu bom humor e ares de se dar pouca importância a si mesmo. O que é ótimo para a veste própria do escritor bom camarada. Pois o que ele escreve deve ser agradável como a sua pessoa, um ser a que chegamos sem as pompas e a gravidade que dizem merecer os autores de textos fundamentais. Não é? Um Camões com a camisa do Sport Clube do Recife. Um Saramago simpático chocarreiro. Pois. Então Mia Couto, entre a simpatia e a leveza, fala e constrói uma intervenção mais grave, que, apesar da aparência de convívio para a paz, me abala como um soco no estômago. Ele diz:


- Vi que anunciaram que eu falaria aqui sobre Literatura, Identidade e Memória. Mas não me preparei, não tive tempo de me preparar. Ou me enganei, ao pensar que me esperava um tema contrário. Penso que seria melhor eu falar sobre Esquecimento. Nisso eu me apoio nos recentes acontecimentos da história do povo moçambicano. Em Moçambique, achou-se melhor o esquecimento dos traumas da guerra. Isso foi uma estratégia para a paz. Para continuarmos a nossa caminhada sem mais guerra.


Ou como registrariam os jornais do outro dia:


“Bem-humorado, o escritor contou que pensava que o tema da palestra tratava de Literatura e Esquecimento, ao invés de Identidade e Memória. ‘Cheguei a certo ponto de minha vida que penso ser melhor esquecer que lembrar’, declarou ele, citando como o processo de esquecimento havia sido importante para que Moçambique superasse a Guerra Civil que assombrou o país durante 16 anos, no sentido de não se manter antigas rivalidades. Ao dizer que o passado era uma construção do que as pessoas inventavam para si próprias, Mia destacou o esquecimento como um caminho para a formação de identidades, deixando claro que cada indivíduo possui identidades plurais”.


Uma frase tão dura, esta de esquecer para alcançar a paz, era mais que um soco, eram balas contra um coração essencial. Por um lado, ela bem mostrava que Mia Couto não era só o bom anunciador de um novo tempo. Por outro, pior, a frase vinha contra o poder de criação da identidade da literatura, no mesmo passo em que introduzia a pacificação entre ofensores e ofendidos, depois da guerra. Se é que o fogo lento entre brasas ocultas não continuasse a velha guerra, entre minas a explodir. Daí que ao ser franqueada a palavra ao público, que se esperava ser tão só de admiradores, pedi o microfone. E com um tom sem pontuações e desorganizado, vi-me obrigado a romper o clima de confraternização do encontro na universidade. E nervoso, falei mais ou menos o que se segue:


- Mia, você afirmou que no processo de reconstrução de Moçambique se adotou o esquecimento como estratégia para a paz. Você, como escritor, deve escrever melhor do que fala. A sua frase, de esquecer para a paz, é muito perigosa neste momento do Brasil. Aqui estamos em pleno instante da Comissão da Memória e da Verdade. Nós não podemos esquecer, Mia. Note que mesmo o esquecimento, qualquer esquecimento, não é absoluto. Como poderemos esquecer os crimes da ditadura? Pelo que você fala, não teria havido o Tribunal de Nuremberg, nem mais caça aos criminosos nazistas, porque estariam todos esquecidos. Talvez você tenha querido dizer outra coisa, e não foi feliz. É isso.


E voltei ao meu lugar, sob um pesado silêncio e consternação do público. Lembro que o escritor, em resposta, reconsiderou na hora o que ele havia dito, que não havia feito um juízo de valor sobre o processo de Moçambique, apenas contara o que houve e mais nada. E passou para outra intervenção dos fãs, que eram em número absoluto. Mas não esqueceu a divergência, porque na consideração seguinte brincou:


- Eu tenho que ter muito cuidado com o que falo.


A mesa, a condução da mesa, sorriu e riu alto, por mais uma tirada espirituosa do brilhante escritor. Que foi para assuntos mais “humanos” e amenos, enquanto eu me guardava na obscuridade de onde não deveria ter saído, pelo clima do auditório e da mesa. Mas eu tinha que cumprir a tarefa de José Reinaldo, o editor do Vermelho. E fui e consegui a entrevista, num esforço máximo.


O problema é que a entrevista com Mia Couto depois não se fez sem um certo embaraço. Pior para mim. Vocês sabem aquela situação em que uma pessoa comete uma falta, e a vergonha maior é nossa? Então entendem que eu me sentia sem forças de escrever e publicar a breve entrevista que ele me deu, em meio à tietagem e ruídos e fotos de todos os lados. O que ele me disse ali, depois da palestra, no pátio da Escola de Educação, se tornou irrelevante, absurdo, diante do fato maior, do esquecimento que deveria haver para se conseguir uma paz duradoura. Voltei à pergunta que lhe fiz no auditório, e ele, cordato, admitiu que havia sido infeliz, e falamos de coisas menos definitivas e definidoras. Entre outras, eu lhe perguntei sobre escritores brasileiros que mais o influenciaram, a que ele deu a resposta “João Cabral de Melo Neto”. Estávamos em Pernambuco.


E o texto até aqui, até hoje engasgado sem sair. Eu seria falso, mentiroso, se escrevesse e publicasse as suas palavras sem o incidente da palestra. Eu seria esquecido, digamos. Por outro lado, o escritor é tão camarada, tão pacífico, tão .... indefeso, que seria uma injustiça tremenda revelar, relevar uma frase errada, numa hora errada, num contexto errado. Frase que era uma coisa menor, uma contradição no seu ofício. Por que destacar o tropeço? Ele caiu e se levantou. Um acidente superado, eu pensava. Mas o conflito não se resolvia: publicar esquecendo? Publicar ocultando?


Eis que ele volta a Pernambuco para a Fliporto em novembro. No dia 17 ele esteve em um encontro e palestrou ao lado do escritor Agualusa. O auditório mais uma vez lotado. Assisto à sua palestra em um telão exterior. E sem aviso, eis que Mia Couto volta ao tema da memória, aquela que esquece para obter a paz. Ou como o traduziu o portal G1:


“Durante a conversa, respondendo a diversas perguntas da plateia, o único ponto em que houve discordância foi a respeito da memória. Para Mia, há a possibilidade de ela ser esquecida para evitar erros do passado. Para Agualusa, ela precisa ser encarada de frente.

Mia se justifica lembrando da Guerra Civil de Moçambique, que durou 16 anos e deixou 1 milhão de pessoas mortas. ‘Depois, nunca mais se falou no assunto, como uma esponja que tirou isso da memória. [...] As pessoas decidiram colocar a tampa, para os demônios não regressarem. Isso é um desejo maior, que era o desejo da paz’, comentou. ‘Não faço apologia do esquecimento, mas no caso de Moçambique foi a solução encontrada. A literatura resgata esse tempo e pode fazer essa visita sem apontar dedos ou culpas”, completou.

Na hora de 17 de novembro faço anotações no papel. Escrevo:


“A memória é mulher. Ela não esquece. Mia assume a deslembrança de Moçambique. Mia faz relativismo quando fala que a memória recorda também mentiras. Tese cara à mídia reacionária. ‘A lembrança da África é fundada sobre estereótipos vitimistas..’, ele fala, como se fosse um português envergonhado do passado colonial. Mia confirma a palestra da UFPE também, quando faz declarações com frases de efeito, dignas de um artista do entretenimento. ‘A ditadura da realidade é a pior ditadura que podemos ter’, ele diz. A fantasia do distinto público vai ao delírio”.


E aqui chego ao fim, ou melhor, faço uma pausa à maneira de terminar. Creio que o leitor deve compreender a esta altura a razão de não ter publicado antes a entrevista. Atravessada, há mais de dois meses. Somente espero não ter me tornado também, nestas linhas, um esquecido.





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13 comentários
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EMILIAMMM
Palavras um tanto ambíguas de Mia Couto sobre a guerra e o esquecimento (entre o sábio e o falso):
"Os moçambicanos escolheram o esquecimento. Quem hoje viaja pelo país não sente sinal nenhum dessa guerra. Esse esquecimento é uma sabedoria, uma percepção de que os demônios do passado ainda não foram enterrados. Mas é um falso esquecimento, como quase sempre sucede com os lapsos de memória".
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2306200913.htm

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Jair Fonseca
É preciso esquecer, para lembrar. Mia Couto está certo.






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Maria Christina Cantrucci
Eu gostaria de saber se alguém sabe como é que foi trabalhada a questao do "esquecimento" no caso dos países do Leste Europeu e no caso de Cuba, pois nao vemos muita informacao sobre as manifestacoes dos familiares das pessoas que morreram como opositores ao governo. Eu sei que morreu muita gente na Sibéria e em Cuba há muita gente que desapareceu . Será que houve alguma Comissão da Memória e da Verdade nesses países ou também escolheram o caminho do "esquecimento" para conseguir uma paz duradoura, permitindo assim a governabilidade e a convivência da sociedade como um todo.

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Nara Rúbia Ribiro
Publicamos o seu artigo na página destinada a Mia Couto no facebook. Caso queira, acompanha conosco as ponderações dos leitores.
Abraço,

Nara
http://www.facebook.com/pages/Mia-Couto/298257536887970

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Ana maria Robalo
Faz tempo que deixei de acreditar no completamente certo ou completamente errado. Do totalmento bom ou totalmente mau. Creio que numa opinião como a que deu o Mia, poderia até passar despercebido o valor do termo esquecimento... Esquecer que um dia algo se passou, no sentido de que justamente seria preciso esquecer a crueza da guerra para sentir mais uma vez, nem que por algum tempo, o que é a paz. Acho que só quem viveu a guerra pode entender e compreender e a opinião dele deve ser respeitada. Assim como a do jornalista. Cada um entende e sente de uma forma. Não creio que houve agresssão por parte dele, tanto é que a resposta do Mia veio com um misto de explicação e desculpa por haver também entendido o sentir do outro.
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EMILIAMMM
TRADIÇÃO E INOVAÇÃO CULTURAL NA OPINIÃO DE MIA COUTO
UM BARULHO MUITO SILENCIOSO
SÁBADO, 31 JULHO 2010
MIA COUTO
“O ‘rap’ que os jovens cantam nas cidades não é menos moçambicano que o ‘tufo’ das praias do Norte. A escrita poética, carregada de surrealismo, de Luís Carlos Patraquim não é menos moçambicana que a oralidade de um camponês da Zambézia”
Cultura é um conceito tão vasto que pode ser vazado de sentido. O que quer dizer que a cultura se arrisca a ser apenas uma simples palavra. E as palavras, amputadas dos conceitos, são a bagagem mais certa do discurso vazio. A cultura é assunto demasiado sério para ser entregue aos que querem converter a cultura numa palavra oca ou numa prática decorativa. Uma espécie de
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Madeleine
Com todo o respeito ao autor do texto, ele quis fazer sua tese de doutorado sobre a visão de Mia Couto do esquecimento, com uma frase dita pelo autor em uma palestra de 15 minutos?
E esse complexo de inferioridade ficou explícito na maneira de abordagem feita ao escritor.
"Você, como escritor, deve escrever melhor do que fala."
Pra que ser agressivo em sua pergunta? Pela vontade de querer impactar com o pouco espaço de tempo para se manifestar? Para aparecer mais do que o palestrante?
Não vou julgar o jornalista, mas me pareceu que quis aproveitar aquele curto espaço de tempo para se destacar na multidão.
Não acredito que seja fácil para ninguém que não conhece a realidade moçambicana querer discutir esse tema com um moçambicano, mas falando em tese e comparando com
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Luiz Seixas

A gente tenta esquecer o que não consegue enfrentar, enquanto não consegue. Chega o dia em que não conseguimos mais conviver com o esquecimento. Chegou para nós, chegará para a África.

LS




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Anarquista Lúcida
Sem entrar no tema exatamente, recomendo a todos verem o filme "E se todos vivêssemos juntos?", que é em parte sobre isso, mas nao na esfera pública, e sim na particular. Vale muito a pena ver, o filme é muito bonito.





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OOOOOOooo
Gabriel García Márquez perdeu a memória e não voltará a escrever
07/07/2012 - 14:04

Autor não tem sido visto em público nos últimos anos FOTO: ELIANA APONTE/REUTERS
O escritor colombiano Gabriel García Márquez não vai voltar a escrever, depois de ter sido diagnosticado com demência. O anúncio foi feito pelo irmão do escritor, Jaime García Márquez, numa conferência em Cartagena das Índias, Colômbia. Visivelmente emocionado contou que o Nobel da Literatura está bem em termos físicos, mas que perdeu a memória.
Nos últimos tempos, muito se tem especulado sobre o estado de saúde do escritor, que tem 85 anos. Em Junho, um amigo tinha contado à imprensa que Gabriel se andava a esquecer de muitas coisas e até já nem conhecia
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Busque por "anuário do spin"




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Paulo F.
Mencione-se o também portugues António Lobo Antunes, que a exemplo de Couto se envereda pelos labirintos da psique humana, outro forjado em África.





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EMILIAMMM
Não estive no debate da UFPE mas na Fliporto onde as divergências relativas à memória entre Mia Couto e J. E. Agualusa foram abordadas superficialmente; nos limites daquele tempo-espaço, diante de um público tão diversificado, não poderia ter sido diferente. Tentando menos julgar e mais compreender o que os separa, nessa polêmica questão, arrisco uma opinião. As posições dos 2 escritores divergem, talvez, porque diversas foram as tragédias políticas em seus respectivos países. Em Angola, a guerra civil, iniciada em 1975, com breves períodos de paz, se estendeu até 2002 e deixou um saldo de 500.000 mortos. Em Moçambique, o saldo de mortos foi o dobro (cerca de 1.000.000), para um período bem menor de guerra civil, 1976-1992. A violência na África lusófona do lado do Í
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Lalia Reiff
Como leitora de Mia Couto é uma decepção sabê-lo tão esquecido...






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