Político e estadista: 1889 - 1970
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QUANDO TUDO
ACONTECEU...
1889:
Nasce em Vimieiro, Santa Comba Dão.
- 1914: Em Coimbra, conclui o curso de Direito. - 1918: Lente de
Ciência Económica. - 1926: Após o golpe de 28 de Maio é convidado para
Ministro das Finanças; ao fim de 13 dias renuncia ao cargo. - 1928: É
novamente convidado para Ministro das Finanças; nunca mais abandonará o poder.-
1930: Presidente do Conselho de Ministros; cria a União Nacional. -
1933: Faz ratificar a nova Constituição (corporativa); cria a PVDE,
polícia política; proíbe as oposições, impõe o partido único, regime
totalitário. - 1936: Na Guerra Civil de Espanha apoia Franco; cria a
Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa; abre as colónias penais do Tarrafal e
de Peniche - 1937: Escapa a um atentado dos anarquistas.- 1939:
Iniciada a Segunda Guerra Mundial, Salazar conseguirá manter a neutralidade
do país. - 1940: Exposição do Mundo Português. - 1943: Cede aos
Aliados uma base militar nos Açores. - 1945: A PIDE substitui a PVDE. -
1949: Contra Norton de Matos, Carmona é reeleito Presidente da República;
Portugal é admitido como membro da NATO. - 1951: Contra Quintão Meireles,
Craveiro Lopes é eleito Presidente da República. - 1958: Contra Humberto
Delgado, Américo Tomás é eleito Presidente da República; o Bispo do Porto
critica a política salazarista - 1961: 22/01, assalto ao Sta.
Maria; 04/02, assalto às prisões de Luanda; 11/03, tentativa de
golpe de Botelho Moniz; 21/04, resolução da ONU condenando a política
africana de Portugal; 19/12, a União Indiana invade Goa, Damão e Diu;
31/12/61 para 01/01/62, revolta de Beja. - 1963: O PAIGC abre nova
frente de batalha na Guiné. - 1964:A FRELIMO inicia a luta pela
independência, em Moçambique. - 1965: Crise académica; a PIDE assassina
Delgado. - 1966: Salazar inaugura a ponte sobre o Tejo. - 1968:
Salazar cai de uma cadeira e fica mentalmente diminuído. - 1970: Morte de
Salazar.
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POBRE, FILHO DE POBRES |
Esta cadeira está desengonçada mas arrisco-me. Gosto muito de
estar sentado aqui ao sol, no terraço do Forte de Santo António do Estoril, a
contemplar a foz do Tejo e o oceano. É o meu único luxo, sou pobre, filho de
pobres.
No exílio, uma vez a rainha D. Amélia disse que, se pudesse, de mim
faria o rei de Portugal. Enganou-se. Eu gostava era de ter sido primeiro
ministro de um rei absoluto. Só consigo estar no Governo porque nunca saio da
rotina. Como conseguiria aguentar estes anos todos a concorrer a eleições, a ir
ao Parlamento responder a perguntas, a correr a inaugurar coisas? Não, rei não
quis, nem quero ser; sou pobre, filho de pobres.
Tenho aversão a espalhafatos. Admirei o Mussolini, depois fartei-me
dele. Cheguei a ter o seu retrato em cima da minha secretária, foi homem que fez
obra. Mas irritou-me a forma aparatosa de estar na vida. Por motivo idêntico
também não gostei do António Ferro, nem do Duarte Pacheco, nem do Henrique
Galvão e nem do Humberto Delgado. Despeitados, os dois últimos acabaram por me
trair. Ao Duarte Pacheco, que também fez obra, Deus mandou que morresse num
desastre de viação. Mas ao António Ferro, fui eu que o deixei cair em 1949, os
tempos eram outros e já me incomodava o estrondo da sua propaganda. Tanto, que
depois privatizei a política da acção cultural. Sem encargos para o Estado,
Azeredo Perdigão, o mecenas vermelhusco, com a sua Fundação Gulbenkian é que
passou a ser o meu Ministro da Cultura. Mas disto ele não sabe, nem sequer
suspeita. Contudo o Ferro, às vezes, até descobria coisas com interesse. Foi ele
quem achou a minha imagem nos painéis de S. Vicente. Num lado o Infante de
Sagres e eu no outro. Dois homens de gabinete. Um, a mandar as caravelas à
descoberta do mundo. Outro, que é pobre, filho de pobres, a mandar Portugal
seguir em frente.
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MULHER, FAMÍLIA,
FILHOS?
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Os povos antigos, ou são tristes ou são cínicos; a nós,
portugueses, coube ser tristes. É frase lapidar e assim descarto o cinismo que
me assacam. Somos povo sorumbático mas, espicaçados, em heróis nos convertemos.
Somos povo fincado à terra mas, espicaçados, metemo-nos a caminho e damos novos
mundos ao mundo. Amália Rodrigues anda lá por fora a promover a tristeza que
será nossa. Não gosto de fados mas a tristeza dá-me jeito. Sejam tristes, não me
aborreçam, eu é que sei o que é bom para todos, eu é que sei quando devo
espicaçar.
Aos fins de semana as minhas afilhadas chegam a meter em S. Bento uma
dúzia de amigas e colegas. É um bando de raparigas a palrar de manhã até à
noite. Isto, realmente, não é tristeza, mas algazarra que eu suporto, aliás a
única. Verdes meninas a chilrear, deleite meu...
As minhas afilhadas... Nas férias mandei a mais velha visitar a mãe. E
ela foi, mas não correu bem o reencontro, quem me contou foi a Maria. A rapariga
perguntou à mãe por que motivo é que a filha de uma simples rural vivia em
Lisboa com o Presidente do Conselho. Perguntou mais:
- Senhora, quem é afinal o meu pai?
E a mãe não soube o que responder, baixou os olhos, corou. Tola, foi
sempre tola... Não posso perder tempo com estas coisas, importante é a
incumbência que Deus me deu.
Mulher, família, filhos? Julia Perestrelo, a fidalguinha, não aceitou a
minha corte. Embora sendo eu estudante já com prestígio, continuava a ser ainda,
e apenas, o filho do feitor de uma herdade da família. Quando me arrimei à
Julia, a sua mãe, que é também minha madrinha, apontou-me o dedo:
- Não esqueça os tamancos do seu pai.
Pôs-me no meu lugar, pobre, filho de pobres. Mas se a fidalguinha não
quis, ou não pôde querer, outras quiseram, outras querem. Cada vez eu sonho mais
com as mulheres da minha vida: Felismina, a potrazinha de Viseu; Maria Laura,
mulher do próximo e eu a cobiçá-la, pecador me confesso; Carmen Lara, a
espanhola; Carolina, a viúva aristocrata, essa quase me leva ao matrimónio, os
monárquicos queriam muito, travei a tempo; e Christine, a francesinha, vendaval
de simpatia, sedução; e tantas outras... Ainda hoje, muitas delas, vêm ao
castigo em S. Bento, até viscondessas e marquesas. Ali mesmo no jardim, moita
frondosa, fidalgas e um pobre, filho de pobres, a revidar...
Deus isentou-me da paternidade porque me reservou para missão maior.
Ainda bem, prefiro o respeito ao amor. Mas um homem tem as suas necessidades e
fidalgas não há sempre ao meu dispor. O que é preciso é compostura. Algumas
vezes, a meio da noite, Manuel, o meu guarda-costas de confiança, leva-me a um
certo clube só para cavalheiros da alta, fica ali no Largo do Andaluz. Sem
outras testemunhas, num quarto há sempre uma mulher nova e bonita à minha
espera, muito asseada, primeira apanha. Talvez enfermeira, ou telefonista, ou
costureira, coitaditas... Nada pergunto, apenas me sirvo. Tudo muito discreto,
tudo pela surda. Já dizia S. Tomás de Aquino: se não podes ser casto, sê cauto
ao menos.
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MARIA | |
Maria fica enciumada com as cenas do jardim, sou eu a sua paixão
secreta. Sei disso, mas não o demonstro, avassalo. Não se lamenta, não abre a
boca, virgem fiel, fidelíssima, sempre à espera de quem se nega a desvirgá-la.
Está comigo desde a "República dos Grilos", em Coimbra, onde já era a
governanta. Fala-me é das serras e da neve, da Primavera a romper, do gado, do
milho a desfolhar, das eiras, das alfaias e da lavoura. Também se queixa das
criadas lerdas no casarão de S. Bento, e das vendedeiras do mercado que tentam
roubá-la nos preços, que a cidade não tem emenda, é só ladrões. Gosto de
ouvi-la, entretém-me. Está sempre a vigiar quem me visita, cão de guarda. Um dia
aponto-lhe os Ministros que acabam de sair do meu gabinete e digo-lhe que eles
deviam era estar na cadeia. Pergunta-me por que não os mando então prender.
Respondo que não vale a pena, pois já roubaram tudo o que tinham para roubar.
Ela sabe que roubar, eu cá não roubo. Apenas deixo que uns tantos roubem para
que melhor me sirvam. Mas isto a Maria não pode entender, é muito ignorante.
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MOCIDADE | |
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Passo oito anos no Seminário de Viseu. É a única oportunidade de
um pobre, filho de pobres, poder estudar. Católico fui, sou e serei sempre, mas
não vocacionado para a vida eclesiástica. Sei que Deus tem para mim outros
desígnios. Renuncio ao Seminário e entro como vigilante e professor no Colégio
da Via Sacra, do cónego Barreiros. Em Agosto de 1910, ainda em Viseu, dou uma
conferência sobre a "Educação da Mocidade":
- Sabei que a vontade deve ser educada no amor a Deus e ao próximo, no
amor à família, à honra e à dignidade, ao trabalho e à verdade.
Sou muito aplaudido, ali há gente de boa cepa. Em Outubro do mesmo ano
vou matricular-me na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. A mãe da
Julinha é quem me paga a mesada, esmola ao filho do feitor.
Recordo a "República dos Grilos", onde também se hospeda o Manuel
Cerejeira. E a Universidade, a discussão de ideias, os filhos de família a
beberem as palavras de um pobre, filho de pobres... Distingo quatro ou mais
grupos, cada qual a terçar armas pelas minúcias do respectivo ideário. Assim vão
esquecendo o essencial que pode e deve unir a todos. Um dos grupos, de gente
mais velha, só pensa na restauração monárquica com um príncipe do ramo
miguelista. Bem os entendo: se voltar a monarquia, antes um rei absoluto do que
um liberal. Um outro grupo é mais extremado, anos depois tomará como modelo
ideal de Estado a Alemanha de Hitler. Um terceiro é apologista da violência
física; mais tarde passará a falar em "burguesia" e "capitalismo" a ver se, à
moda italiana, cativa o operariado; este grupo será um dia comandado por Rolão
Preto, o qual acabará por fundar o Movimento Nacional Sindicalista para me fazer
oposição, pois eu não corresponderei ao Chefe espalhafatoso pelo qual anseiam.
Um quarto grupo, de gente moça, a que depois se juntarão Teotónio Pereira e
Marcelo Caetano, já fala em corporativismo de inspiração cristã. Todos lêem,
comentam, interpretam e reinterpretam os textos do António Sardinha, do Sorel e
do Maurras, também as encíclicas de Leão XIII. Todos se dizem mais ou menos
integralistas. É urgente aglutinar toda aquela gente. Começo por
participar na reorganização do CADC - Centro Académico da Democracia Cristã. Em
1912 sou eleito 1.º secretário da direcção. O vice-presidente é o Manuel
Cerejeira. Quem sempre me apoia é o Santos Costa; um dia será general e meu
sempre fiel Ministro da Guerra. Entretanto concluo o curso de Direito e sou logo
chamado para leccionar. Em 1918 já sou lente de Ciência Económica. Em 1921 sou
eleito deputado pelo círculo de Guimarães nas listas do CCP - Centro Católico
Português. Assisto a umas poucas sessões e logo renuncio ao mandato, tamanha é a
confusão na Câmara. Depois, sem pressas, no CCP dedico-me a gerir as diferenças
entre os vários grupos que o integram, como já integravam o CADC. Ponho em
evidência aquilo que afinal a todos nos une: a fé inabalável em Deus, na Pátria
e na Família. Conforme as circunstâncias o exigem, ora apoio um grupo, ora
outro, contra os restantes. Já Maquiavel dizia que a máxima dos sábios dos
nossos dias consiste em esperar o benefício do tempo.
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O "28 DE MAIO" | |
O "28 de Maio" de 1926 como antecâmara do Estado Novo? Fantasias
do António Ferro, pois aquele foi tempo em que se fez política com pistolas em
cima da mesa... Eu apenas fiquei à espera da minha oportunidade, soube jogar com
o benefício do tempo.
Não foi um golpe, foi um passeio de Braga até Lisboa, uma grande parada
militar chefiada pelo Gen. Gomes da Costa. Da Esquerda à Direita todos pareciam
felizes e contentes, só eu na expectativa. Compreende-se: todos estavam fartos
do Partido Democrático, há 16 anos que os "bonzos" mamavam sozinhos na porca da
política. A 30 de Maio o presidente Bernardino Machado aceita a demissão do
primeiro ministro, o "bonzo" António Maria da Silva. No dia seguinte o
Bernardino entrega os seus poderes ao Alm. Mendes Cabeçadas, republicano
conservador, porém um democrata, a sua pecha, pois a Democracia é justamente o
regime que deixa emergir os piores instintos do ser humano. A ver vamos no que
vai dar tudo isto, aguardo o benefício do tempo.
O Gen. Sinel de Cordes, um jacobino de Direita (assim o chamam os da
Esquerda), faz as suas intrigas e o Alm. Mendes Cabeçadas apresenta a demissão a
18 de Junho. O Sinel, e outros como ele, exigem que o Gen. Gomes da Costa
continue a chefiar a ditadura militar. Tudo se precipita. A ver vamos no que vai
dar tudo isto, aguardo o benefício do tempo.
Mais intrigas do Sinel: a 9 de Julho o General Oscar Carmona é empossado
como Presidente. Só posso rir quando me contam a anedota: o único sítio onde o
Carmona mete o nariz, é no próprio lenço. Maledicência, ele é antes um homem a
tentar o equilíbrio entre as várias forças de Direita que estão sempre a
hostilizar-se, de um lado monárquicos, do outro republicanos. Se um dia eu for
chamado para o Governo, Carmona ser-me-á de grande utilidade, estou em crer. A
11 de Julho o Gen. Gomes da Costa é desterrado para os Açores. A ver vamos no
que vai dar tudo isto, aguardo o benefício do tempo.
O Sinel arrebenta com as Finanças públicas, défice de 700 mil contos, a Nação à beira da bancarrota. Ai os militares, os
militares... Convidam-me e a 26 de Abril de 1928 sou empossado como Ministro das
Finanças. Depois do "28 de Maio" é a segunda vez que isso acontece. Da primeira,
no tempo do Cabeçadas, ao fim de 13 dias larguei o cargo por excesso de confusão
na cabeça do presidente e falta de condições para o meu trabalho. Mas agora vou
promover o desdobramento da ditadura militar em ditadura financeira, exijo
direito de veto sobre toda e qualquer despesa pública. Digo, ao tomar
posse:
- Sei muito bem o que quero e para onde vou.
O Cerejeira manda-me um bilhete: "António, foi Deus que te chamou para
salvar a Nação". Respondo com outro: "Manuel, quem me chamou foi o José Vicente
de Freitas, o presidente do Governo". A ver vamos quem avassala
quem...
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ORÇAMENTO EQUILIBRADO | |
Salazar equilibra o
orçamento. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
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Nos corredores da Ditadura militares conspiram com liberais (os
"bonzos" recuperados) e conservadores para me derrubarem. Mas em 1930 já ninguém
consegue remover-me, peguei de estaca. Não sou ainda o presidente do Conselho de
Ministros, mas hei-de ser, não tarda muito. Com o auxílio do exército imponho
novas contribuições. Veto despesas públicas e alcanço o equilíbrio do orçamento,
liquido a dívida flutuante, estabilizo a moeda. Não me arredam, já não
conseguem, ou eu ou a bancarrota.
Aperta-se o cinto, há quem se queixe da vida, pelos menos na capital.
Mas nas aldeias ninguém se queixa. Ali, às vezes, não há trabalho, mas raramente
eles deixam de comer. Ali, às vezes, falta dinheiro e roupa para vestir, mas há
sempre uma côdea ou um caldo para enfrentar um novo dia. Prefiro o povo das
aldeias.
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A UNIÃO NACIONAL | |
Comecei por aforrar prestígio. Agora vou aplicá-lo na formação de
um partido, a União Nacional. Deus, Pátria e Família é investimento seguro. Não
eu, mas outros por mim, devem começar a fazer o alarde, nacionalistas que
beberam do Integralismo. Eu ficarei na sombra, serei sempre o desejado, o
encoberto, o Anjo da Guarda em retiro. Não vou desgastar a minha imagem junto da
populaça, nem isso me apetece, omnipresença será um dos meus atributos. Embora
com objectivos convergentes, sou o avesso do Mussolini.
Uma intentona malograda dos "reviralhistas" e logo se precipita o
previsível: ainda em 1930 tomo posse como Presidente do Conselho de Ministros.
Trato de oficializar a União Nacional. Declaro:
- Temos uma doutrina e somos uma força!
Recomendo ao Cerejeira que encerre o Centro Católico Português. Saiba
ele, e saibam todas as direitas, que a União Nacional passou a ser a Direita, a
única.
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CADA COISA EM SEU
LUGAR
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Exijo disciplina, um lugar para cada coisa e cada coisa em seu
lugar. O lugar dos políticos é na Política, o dos militares é nos quartéis, o do
clero é na Igreja.
Em 1932 recomponho o Governo. Dos quatro generais dispenso três, apenas
reservo o Carmona para continuar como Presidente da República. Se os três
dispensados quiserem começar a conspirar contra mim, pois que o façam,
atrevam-se eles a enfrentar o meu prestígio...
Na cerimónia de posse dos novos Ministros também está presente o Alfredo
da Silva, o patrão da CUF - Companhia União Fabril. Não gosto dele, pior do que
a exuberância é a sua ânsia de alargar império, de dia para dia mais cresce o
número dos seus operários. E é nesta classe de infelizes que mais facilmente
germina o bolchevismo, semente do Mal. Sem dar por isso, ele e outros como ele,
estão a cavar a própria sepultura, talvez a minha e a da Nação. Cego, magnata
cego...
Vou depois apresentar cumprimentos ao cardeal Cerejeira, é a praxe.
Desde que foi encerrado o Centro Católico Português, ele tem vindo a agitar o
nome do Cunha Leal para me substituir. Não discuto intrigas de sacristia.
Declaro-lhe que só posso levar em consideração os interesses da Igreja desde que
se conjuguem com os interesses do Estado Novo. Espero que entenda o recado.
Perante Deus somos todos iguais, mas cada qual no seu lugar.
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O ESTADO
NOVO
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Só vêem o que lhes passa diante do nariz, são incapazes de
distinguir entre a letra e o espírito. A nova Constituição, ratificada em 1933,
prevê eleições? Pois prevê, assim travo os republicanos conservadores e
vagamente democratas que herdámos do "28 de Maio". Mas quem controla as eleições
sou eu, é a União Nacional, através das restrições relativas ao grau de
instrução, ao sexo e à propriedade do eleitorado. Isto não o vêem os
conservadores, nem sequer os nacionais-sindicalistas do Rolão Preto.
Entusiasmados com a vitória do nacional-socialismo na Alemanha, milhares de
camisas azuis fazem a saudação romana e andam a agitar o povo de norte a sul da
Nação, gritam e proclamam que os traí. É preciso pôr um ponto final nestas
arruaças, para isso contarei com o tácito apoio dos conservadores, militares e
civis. Chamo ao meu gabinete o Teotónio Pereira e o Manuel Múrias. Ouvem-me com
atenção e tratam de esfacelar, por dentro, o Movimento Nacional-Sindicalista a
que pertencem, colocando o Rolão Preto em minoria. Assim isolado, logo o mando
prender e expulso-o da Nação. Mas ao mesmo tempo abro as portas da União
Nacional aos órfãos de camisa azul. Apenas sugiro que vistam outras. Para os
consolar, também eu começo a fazer a saudação romana. Ficam aliviados e
contentes. Serão eles os grandes activistas do Estado Novo.
Em 1936, nas comemorações do 10.º aniversário da Revolução Nacional,
declaro:
- Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos
restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não
discutimos a Pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu
prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do
trabalho e o seu dever.
Infelizes ficam os conservadores. Se a letra da Constituição é o que é,
só agora lhe entrevêem o espírito: antiliberal, antiparlamentar e
antidemocrático. Nela incorporo o Acto Colonial e o Estatuto Nacional de
Trabalho. Sidónio Pais, coitado, surgiu antes de tempo. Mas intuiu o caminho que
estamos hoje a desbravar. Esta é a primeira constituição corporativa do mundo:
sob o arbítrio do Estado forte, a conjugação dos grémios e dos sindicatos, do
Capital produtivo e do Trabalho para o engrandecimento da Pátria. Assim levanto
uma barragem contra a luta de classes, bandeira dos comunistas.
E os padres? Quando é que sobem ao púlpito a louvar o Estado Novo?
Aguardemos o benefício do tempo...
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CINEMA
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Uma barragem... Sinto as pernas entorpecidas, levanto-me, passeio
pelo terraço do Forte. As barragens, o plano hídrico nacional... E ainda há
alguns maledicentes que me chamam de retrógrado... Tiro os binóculos do estojo e
avisto um barquinho que demanda a barra. Se antes da vazante, que não tarda,
eles não conseguirem alcançar S. Julião, serão arrastados para o alto mar. A
montante, sobre o Tejo, não a vejo, mas sei que lá está a ponte que leva o meu
nome, não me fazem favor por isso, fui eu que mandei construir, fui eu que a
inaugurei em 1966. Agora, o que me apetecia era ouvir um filme. Não ver, mas
ouvir, que eu não tenho pachorra para ir ao cinema. Maria e as amigas é que vão
às matinées e depois contam-me tudo. Manta sobre as pernas, um bule de
chá, são as noitadas em S. Bento. Gostei muito de "Música no
Coração".
Volto a sentar-me. A cadeira balança e range, mas lá se aguenta. Um
dia destes ainda me prega uma partida.
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SAFANÃO A
TEMPO
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Era fim de Agosto e as uvas estavam bonitas, comecei a vindimar.
O meu Pai deu-me um safanão a tempo e eu parei. Tirou um bago do cacho que eu
acabara de cortar, deu-me a provar. Trinquei, logo cuspi, era azedo. Assim
comecei a aprender que tudo tem o seu tempo, tudo obedece a regras, Lei suprema
quer para a Natureza, quer para a sociedade dos homens, que é outra forma da
Natureza. Quem não respeita as regras é desordeiro; mas quem sempre as põe em
causa e delas troça, é ateu a infectar os que estão perto, anarquismo ou
comunismo, danação.
Os grandes homens, os predestinados, os grandes chefes, não se embaraçam
com preconceitos, com fórmulas, com preocupações de moral política. A violência
pode ter vantagens mas não na nossa raça nem nos nossos hábitos. Em Portugal não
há homens sistematicamente violentos. Aqui, há que governar tendo sempre em
conta esse sentimentalismo doentio a que chamamos bondade. Para defender a
Pátria, aqui não é preciso usar da violência. Um safanão a tempo é quanto basta.
Nas revistas e nos jornais e nas emissoras radiofónicas e nos teatros e
nos cinemas, o lápis azul e a tesoura da Censura prévia cortam os textos e as
imagens fora de prumo, há regras a cumprir, safanão a tempo. Nas livrarias, a
polícia apreende os livros subversivos, há regras a cumprir, safanão a tempo.
Se abandonados à liberdade, os homens logo se convertem em libertinos.
Reforço a proibição das greves e em 1933 fundo a PVDE - Polícia de Vigilância e
Defesa do Estado. Agentes italianos e depois uns alemães, com as suas técnicas,
virão ajudar-nos a torná-la mais eficaz. Rapidamente a PVDE estende uma rede de
informadores de norte a sul da Nação, nas cidades, nas vilas e até em aldeias. É
fácil, muita gente ambiciona ganhar mais uns tostões.
A função primeira da PVDE é prevenir as tentações de libertinagem, é
intimidar não só os ímpios e os incautos à beira da impiedade, mas também os
respectivos pais, e cônjuge, e filhos, e irmãos, e colegas, e amigos, todos os
que estejam em perigo de contágio. Subversão é peste, há que meter a Nação em
quarentena. E meto, mas alguns escapam, danados que tentam danar os outros, cães
raivosos.
Reorganizo as forças militarizadas, a GNR - Guarda Nacional Republicana,
a PSP - Polícia de Segurança Pública, e a Guarda Fiscal. E chamo ao meu
gabinete, primeiro o Agostinho Lourenço, director da PVDE; mais tarde o Silva
Pais, director da PIDE. Alerto:
- Mais vale um safanão a tempo do que deixar o Diabo à solta no meio do
povo.
Contam-me como fazem. Localizam onde pousa um dos suspeitos. A meio da
noite arrombam a porta, dão-lhe voz de prisão e uns sopapos, arrastam-no para a
sede, interrogatório, safanão primeiro. Se o subversivo conta o que sabe, é
porque já está a caminho da salvação. Se não fala, safanão segundo,
espancamento. Se calado continua, safanão terceiro, é a penitência da estátua,
dias e noites obrigado a ficar sempre de pé, até que as suas pernas se
transformem em dois trambolhos. Variante do terceiro safanão é a penitência do
sono, dias e noites sem dormir; quando cabeceia, logo acendem um holofote
contra os seus olhos. Um dos possessos, ao fim de quinze dias e quinze noites
sem dormir, começou a beijar a parede, alucinações, pensava que estava na cama
com a mulher. Depois entrou em coma. Normalmente, depois do terceiro safanão, os
inconfessos entram em coma. Ninguém os mata, eles é que se deixam morrer porque
se negam à salvação.
Alguns sobrevivem ao terceiro safanão, mas nada mais podemos fazer por
eles, almas penadas já são em vida. Com ou sem julgamento são despejados em
masmorras. Em 1936 inauguro as colónias penais do Tarrafal e de Peniche. É no
Tarrafal que vai morrer Bento Gonçalves, secretário do Partido Comunista. Outros
seguem-lhe o exemplo; no Tarrafal e em Peniche, no Aljube e em Caxias.
Não, não é preciso usar da violência, somos um povo de brandos
costumes. Aqui, para governar, um safanão a tempo é quanto basta.
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O
ENCOBERTO
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Salazar, Salazar, Salazar!
gritos nacionalistas. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.
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1936: agitação vermelha vaza de Espanha para Portugal. Reagimos:
barreira militar, Legião Portuguesa, cruz de Aviz, invocação de Aljubarrota!
Mando que os meus legionários vistam camisas verdes, assim não se confundem nem
com a milícia do Rolão Preto, nem com a Falange do Franco. São convocados os
funcionários do Estado e todos aderem à Legião; os incapazes de exercícios
militares, juram fidelidade ao regime.
No mesmo ano crio a Mocidade Portuguesa, também camisas verdes. Ali os
rapazes aprendem a amar e a defender a Pátria, bravos lusitos. E nas escolas
imponho um livro único, passaporte para Deus, Pátria e Família.
Nacionalistas, legionários e lusitos, de braços estendidos em saudação
romana, andam sempre a marchar pelas ruas, congregam multidões, fazem grande
alarido:
- Quem vive?
- Portugal, Portugal, Portugal!
- Quem manda?
- Salazar, Salazar, Salazar!
Contudo, para além da algazarra à superfície, detecto o profundo
silêncio da Nação. Somos tristes, eu o disse, mas há aqui um excesso de
tristeza. E isto é perigoso, a caldeira do silêncio também pode explodir. Há que
montar uma válvula de escape.
Chamo ao meu gabinete os homens da Censura. Digo-lhes que aliviem o
rigor sobre as revistas do Parque Mayer, que alarguem o espartilho e deixem
passar as alusões à minha pessoa, desde que não sejam ofensivas. E o público
sacode-se a rir com os números do António da Calçada ou do Santo
Antoninho da Estrela. Só mando cortar O Botas. É alcunha de mau
gosto. Não se pode brincar com um defeito físico que me obriga a usar botas
ortopédicas, daquelas de elástico, para disfarçar.
Também chamo ao meu gabinete o Agostinho Lourenço. Digo-lhe o que direi
mais tarde ao Silva Pais:
- É conveniente que os descontentes tenham sítios onde possam desabafar
sem perturbar mais ninguém. Os Cafés podem servir para isso.
Quanto mais estrondosas são as gargalhadas no Parque Mayer e quanto mais
se conspira nos Cafés, mais avassala a minha ausência, omnipresença.
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UNGIDO? | |
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Por três vezes o Maligno tenta abater-me.
Primeira: em Janeiro de 1934 os comunistas convocam greve geral e tentam
implantar um soviete na Marinha Grande. São cercados e vencidos.
Segunda: em Setembro de 1936 marinheiros comunistas rebelam-se. Mando
que a artilharia da costa os bombardeie e afunde.
Terceira: em Julho de 1937, quando me dirijo para a missa, sofro um
atentado à bomba mas escapo ileso. Bem sei que foram os anarco-sindicalistas.
Mas eles já são tão poucos, que não vale a pena mencioná-los. Acuso os
comunistas. Daqui para a frente, quem me atacar passa a ser comunista, eles é
que são o inimigo principal.
Consequências do atentado são a comoção nacional, as mensagens de
solidariedade, os cortejos, as manifestações, as missas Te Deum. Uma
única vez surjo em público, a agradecer. Não me apetece, sou avesso a estas
coisas, mas lá declaro à multidão:
- Somos indestrutíveis! Porque a Providência assim o destina e na Terra
vós o quereis.
Ungido de Deus? Não sei, talvez... Sei apenas que, quatro séculos antes
de nascer, eu já fora colocado lado a lado com o Infante de Sagres,
predestinação...
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AS GUERRAS DOS
OUTROS
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Nacionalistas espanhóis começam a gritar os nomes de Primo de
Rivera, Sanjurjo e Franco e rebelam-se contra o Governo dos vermelhos. Assumo
também a pasta dos Negócios Estrangeiros. Temo que, se vencerem os rebeldes,
queiram mais tarde anexar Portugal como província espanhola, ambição que
herdaram dos Filipes. É perigo menor e longínquo. Mas se venceram os vermelhos,
o bolchevismo alastrará de imediato a Portugal, quer por intervenção militar,
quer por contágio. Perigo maior, de vida ou de morte, é pois a vitória dos
vermelhos. Há que ajudar a derrotá-los. E ajudamos:
Numa primeira fase ponho à disposição dos rebeldes os nossos portos e os
nossos caminhos de ferro para o aprovisionamento de víveres, armas e munições.
Numa segunda fase, também permito que os meus legionários arregimentem 8000
voluntários para combater o bolchevismo em Espanha. São os nossos
Viriatos.
A Alemanha e a Itália apoiam os nacionalistas espanhóis. A França e a
Inglaterra optam pela não-intervenção e assim condenam à derrota os vermelhos.
Para alguma coisa havia de nos servir a Democracia nesses dois países...
Vencedor da guerra civil, e incentivado pelo falangista Serrano Suñer,
Franco pensará agora anexar-nos. Mando avisá-lo: mal as suas tropas se
concentrem na fronteira, de imediato accionarei o velho Tratado de Aliança entre
Portugal e o Reino Unido. Repare ele que a Segunda Guerra Mundial não tarda aí,
a guerra civil que devastou a sua Espanha foi o ensaio geral. E que se os
nacionalistas espanhóis se sentem obrigados a alinhar com a Alemanha, eu
sinto-me obrigado a alinhar com a Inglaterra em virtude da nossa Aliança. Se tal
acontecer, sacrificados aos interesses de outras potências serão os nossos
povos. Realço ainda que os regimes de Espanha e Portugal são idênticos:
católicos, autoritários, antiliberais, antiparlamentares e antidemocráticos.
Será sinal que Deus nos manda para se constituir aquém Pirinéus um bloco
neutral, nem a favor da Grã-Bretanha, nem a favor da Alemanha, mas só a nosso
favor. Assim defenderemos os povos da Península e a sobrevivência dos nossos
regimes. Ou não estais vós, espanhóis, cansados de tanta guerra? Eu, por meu
lado, para evitar envolver-me no próximo conflito europeu, já declarei
publicamente:
- Somos sobretudo uma potência atlântica, presos pela natureza à
Espanha, política e economicamente debruçados sobre o mar e as
colónias.
Depois de muitas discussões, de avanços e recuos, a 13 de Março de 1939
consigo finalmente assinar com a Espanha o Tratado de Amizade e Não Agressão.
Vencido o bolchevismo espanhol, que era o perigo maior, assim desarmo o menor.
Ao mesmo tempo alivio a pressão britânica sobre o meu Governo; por causa de
Gibraltar e do acesso ao Mediterrâneo, convém-lhes a neutralidade da Península.
E a Alemanha desistirá de forçar a Espanha a entrar em guerra.
Há muitas formas de matar pulgas, diria a Maria...
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O DEDO DE
DEUS
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Em 1940 assino a Concordata com a Santa Sé. Não vou restaurar o
poder da Igreja, não lhe devolvo os seus haveres expropriados pela República em
1911, não vou abolir o divórcio. Mas isento a Igreja e o clero do pagamento de
impostos ou contribuições, quaisquer que sejam. Deus, Pátria e Família, é
evidente, mas quem manda sou eu! É um bom acordo para a Igreja e o Manuel
Cerejeira sabe disso.
Na carta pastoral de 1942, bodas de prata das aparições de Fátima, os
bispos já dizem que, nas mudanças operadas da Primeira República para o Estado
Novo, poder-se-á ver o dedo de Deus.
E em 1945, a propósito de uma outra visão da Irmã Lúcia, o Cerejeira
escreve-me: "O facto de ser a nossa paz um favor do Céu (predito pela Irmã
Lúcia), não te tira nem diminui o mérito. Pelo contrário, faz de ti um eleito,
quase um ungido de Deus. Foste tu o escolhido para realizar o
milagre".
Até que enfim...
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O MUNDO
PORTUGUÊS
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"A nossa paz...", dirá a Irmã Lúcia. Antecipo: a paz que eu
forjei e o passado glorioso que me forjou. Os heróis é que fazem a História, não
são os povos. Felizes os povos que têm heróis a conduzi-los. Ontem demos novos
mundos ao mundo, hoje somos um oásis de paz num mundo em guerra. É isso mesmo
que torno evidente em 1940, com a Exposição do Mundo Português. Ali mesmo, à
beira-Tejo, não muito longe de onde partiram as naus do Vasco da Gama.
Comemoramos oito séculos sobre a Fundação da nacionalidade em 1140, e três sobre
a da Restauração, em 1640. Dois homens me ajudam a planear a Exposição: António
Ferro com epopeias escritas, faladas, esculpidas e pintadas e Duarte Pacheco com
a imponência dos pavilhões. Um, é o meu Ministro da Propaganda. Outro, é o meu
Ministro das Obras Públicas, que já as fez sumptuosas, como convém que sejam as
do Estado. Dois frenéticos que, por ora, me servem bem.
Mando que na Exposição também sejam alojados, em palhoças, uns tantos
pretos e pretas, adultos e crianças, primitivos que retirámos da selva... Que
todos admirem a obra dos nossos missionários em África! Aquele pretos, bem
doutrinados, bons cristãos podem ainda vir a ser. De segunda ou terceira, porém
cristãos.
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NÃO TEM
CHEIRO...
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Durante a guerra a Grã-Bretanha reduz drasticamente as suas
compras a Portugal. Não posso morrer à míngua e começo a vender volfrâmio e
estanho aos alemães. Os britânicos protestam e eu também passo a vender-lhes
volfrâmio e estanho. Bem sei que isto vai ter de parar um dia, ou vendo para um
lado, ou vendo para o outro. Mas enquanto puder vender para os dois, venderei.
Todo o dinheiro traz agarrado a si miséria e sangue. Mas não tem
cheiro.
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REFUGIADOS
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Salazar acolhe refugiados judeus.
Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua
Cronológica!
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Por causa do volfrâmio, não pensem os alemães que rompi a
neutralidade e passei para o lado deles. Andam à caça de judeus? Pois saibam
eles e vejam os ingleses que recebo milhares de refugiados judeus em trânsito
para a América. E que não os interno em campos de concentração, mas hospedo-os
em hotéis perto do mar, nas Caldas da Rainha, na Figueira da Foz. Mas quando, em
1945, Hitler se suicidar, para escândalo dos ingleses mandarei pôr a bandeira
nacional a meia haste. Somos um povo de brandos costumes, matriz cristã, fazer
bem sem olhar a quem. Porém independentes, sempre. Em nós ninguém manda, nunca!
Ontem não mandaram os espanhóis, eles que se lembrem de Aljubarrota. Durante a
guerra, nem alemães, nem ingleses mandam em nós. No pós guerra, nem americanos,
nem ingleses hão-de mandar. Ninguém, nunca!
Não posso é consentir que, durante a guerra, por conta própria, sem
ordem superior, Aristides Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus, esteja a
passar milhares e milhares de vistos a refugiados judeus. Para se tirar o
apetite a outros possíveis prevaricadores, mando que seja demitido e punido de
forma exemplar! Ai este sentimentalismo doentio a que chamamos
bondade...
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ESPIONAGEM
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Alemães e ingleses precisam espiar-se uns aos outros,
precisam conversar secretamente uns com os outros, e estão a usar Lisboa como
base operacional. Pois que usem, desde que não interfiram com a nossa política
interna e para essa eventualidade a PVDE está alertada. É forma de evidenciar a
nossa neutralidade, é forma de arrecadar mais algumas divisas.
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SOBREVIVÊNCIA
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Sou muito instado mas adio a decisão, o que provoca acessos de
fúria naquele gordo inglês fumador de charutos. Só em 1943, quando vejo que a
Alemanha já não pode ganhar a guerra, é que cedo aos Aliados uma base militar
nos Açores.
A imprensa deles insulta-me, que eu sou nazi-fascista, que nós fazemos a
saudação romana, que a Legião Portuguesa festejou publicamente as vitórias do
Eixo, que os legionários são os meus "camisas negras", apesar de verdes serem
elas. Os cães ladram mas a caravana passa... Acabo de garantir a sobrevivência
do meu regime.
No pós-guerra, na Europa ocidental são muito apreciados os legalismos.
Consequência: o número de possessos que faz o jogo da Rússia, não pára ali de
aumentar. Inevitável é outra guerra. Aguardo o benefício do tempo enquanto vou
encobrindo o que se passa por aqui: em 1945 transformo a PVDE em PIDE - Polícia
Internacional e de Defesa do Estado e mando organizar os Tribunais Plenários.
Nestes, antes dos julgamentos, já estão ditadas as sentenças; traição à Pátria
pode dar até 20 anos de cadeia; os lugares para a assistência são todos ocupados
por agentes da PIDE; advogados e testemunhas de defesa, se exorbitam, são
calados à força. Depois de cumpridas as penas, os condenados podem levar mais
uns anitos de reclusão, higiénicas medidas de segurança.
Nos finais da guerra, apesar dos safanões, os comunistas cá de dentro
(eles, sempre eles!) provocam agitação e greves de certa monta, mas aguento-me.
Em 1947 outros comunistas sabotam-me aviões na base de Sintra.
Entretanto é levantado o muro de Berlim e começa a guerra, embora fria.
O meu regime foi sempre anticomunista. Em 1949 Portugal é admitido como membro
da NATO. Valeu a pena aguardar o benefício do tempo...
Só para inglês ver, também em 1949 finjo eleições livres para a
Presidência da República. O candidato da Oposição é o Norton de Matos, um
general maçom. Alega que nós controlamos os cadernos eleitorais e as mesas de
voto e por isso desiste à boca das urnas. É reeleito o meu candidato General
Carmona; de sete em sete anos, desde 1928, é o que lhe acontece; mas esta foi a
reeleição mais espinhosa.
Coitado do Carmona, vem a falecer em 1951 e eu tenho de convocar
novas eleições. O candidato "reviralhista" é o Almirante Quintão Meireles.
Recusamos a candidatura de Rui Luís Gomes, o comunista. Ele, e a sua quadrilha,
levam até uns safanões a tempo. Naturalmente ganha o meu candidato, o General
Craveiro Lopes. Lá fora os jornalistas continuam a ladrar, mas a caravana
continua a passar.
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VAZANTE
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A caravana passa... Outra vez me levanto e passeio pelo terraço.
O barquinho não conseguiu alcançar S. Julião da Barra e a vazante começa a
arrastá-lo para o alto mar.
Somos pobres, filhos de pobres. O Estado tem de ser forte e imponente
para compensar a pobreza natural do nosso povo. Cuidem eles das suas hortas que
do Estado cuido eu. Admirem e orgulhem-se das obras que mandei o Duarte Pacheco,
e outros, construir de norte a sul da Nação. Admirem e orgulhem-se do Instituto
Superior Técnico, do Estádio Nacional e da auto-estrada que o liga a Lisboa;
admirem e orgulhem-se do Hospital Santa Maria em Lisboa, e do Hospital S. João
no Porto, e dos Palácios da Justiça em Lisboa e no Porto, e das pontes, e dos
viadutos, e das barragens do Cávado-Rabagão, e da Idanha-a-Nova, e do Castelo de
Bode.
Para admirar e orgulhar-se da nossa Pátria heróica, do nosso Estado
forte, não é preciso ser-se instruído. Instrução, para quê? Basta saber ler e
escrever e não é preciso que sejam todos. Se tiverem alguma dificuldade de
entendimento, lá está o senhor padre para os aconselhar e orientar. Para as
primeiras letras, e só para essas, mando construir uma rede de escolas pela
Nação fora, e mais não é preciso. Se fôssemos todos doutores, quem iria amanhar
a terra, quem iria amassar o pão, quem iria assentar tijolos? Não permito que a
falsa sabedoria perturbe a inocência do nosso povo. Esconjuro a tal universidade
popular desse tal Bento Caraça; é ateu, interfere com a lei divina, é comunista
disfarçado de matemático, é demitido e preso.
Manda quem pode e obedece quem deve, esta é a ordem natural das coisas.
Não mexo na propriedade, ela é intangível. Cobiçar os bens do próximo é tentação
assoprada pelos comunistas.
Bem sei que é preciso fomentar a produção industrial. Mas o fomento é
planeado por mim e aplicado conforme o Estado exige, não permito que se ponha em
perigo o equilíbrio orçamental que tanto me custou a alcançar. Observo que o
mundo campestre provoca os sorrisos desdenhosos da economia industrial. Por mim,
se tivesse de haver competição, continuaria a preferir a agricultura à
indústria. Mas se eles querem enriquecer depressa, não chegam lá pela
agricultura. A faina agrícola é, acima de tudo, uma vocação de pobres. E o nosso
é um povo de pobres, filhos de pobres. As nossas raízes mergulham fundo no
torrão natal.
Não admito reivindicações salariais e muito menos greves, isso é obra de
comunistas. Se a economia industrial está a enriquecer uns poucos e a levar um
excesso de pobreza a muitos, só a mim cabe corrigir o excesso, cristão eu sou.
Doo terrenos para facilitar a construção de casas com rendas limitadas. Pela
província, de norte a sul mando construir as Casas do Povo. E nas grandes
cidades mando edificar bairros sociais. No da Encarnação, em Lisboa, são
pequenas vivendas por entre árvores, cada qual com a sua horta para plantar
couves e semear batatas. Que ao menos se lembrem eles das courelas que trocaram
pela cidade, à procura de melhor vida que, afinal, não será assim tão
boa...
Outra vez assesto os meus binóculos. O barquinho cada vez está mais ao
largo, corre o perigo de ser engolido pelas vagas do mar alto. Quem lhe pode
lançar mão?
E fogem, fogem dos campos, vêm para as cidades, vão para o Brasil, vão
para a Europa e a maioria dos emigrantes é clandestina. Depois da guerra, além
dos Pirinéus tudo parece um mar de rosas. Odeio a Rússia e os comunistas, mas
também não gosto dos americanos. Não, não! aqui não quero um Plano Marshall,
pequeninos mas orgulhosos, escorados estamos por um passado glorioso. Não
consigo é evitar o mar de rosas, não há barragem que o detenha, afoga-nos,
poucos são os que reparam nos espinhos. De Setúbal a Braga, pelo litoral, as
indústrias surgem como cogumelos depois da chuva. Em Lisboa, e no Porto, começa
a haver mais gente a escrevinhar nos escritórios do que operários a produzir.
Tudo muda e já não consigo travar a mudança. E os escreventes cada vez lêem mais
livros e jornais, e vão a cursos nocturnos, e ouvem telefonia com ondas curtas
para apanhar o estrangeiro, e vêem filmes, e fundam cineclubes, e arrogam-se o
direito de exigir melhor distribuição dos benefícios acrescidos. Também os
operários entram no coro, inquinados já estão uns e outros pelo comunismo.
Para evitar a inflação e os maus costumes, continuo a impor vida frugal
a quem trabalha por conta d’outrem. Em consequência, são os novos Bancos e as
novas Seguradoras que estão a comer a grande fatia do bolo novo, não é o Estado.
Nisso não reparam os pobres diabos quando rosnam contra o Estado...
Mas uma coisa é ouvir o que nos contam, outra é ver com os próprios
olhos. Chamo o Manuel e, dentro do Mercedes com os vidros foscos, às onze da
noite seguimos lentamente ao longo da Avenida. É fim de semana, é Verão, e as
esplanadas estão cheias. Pergunto:
- Manuel, o que estão eles a beber?
- Ó Senhor Presidente, é cervejas, é gasosas, é pirolitos, é
laranjadas...
- Mas isso é muito caro, não é?
- Ó Senhor Presidente, é 25, é 15, é 10 tostões.
Pois, pois, já estou a entender... Queixam-se que não têm dinheiro e só
fazem extravagâncias...
Se fossem apenas operários e escreventes a rosnar, com essa gentinha
podia eu... O pior é que já começam a surgir brechas na União Nacional e no
Estado. Henrique Galvão, que foi dos meus, descambou de vez para o "reviralho".
Começou por alinhar com o Quintão Meireles e agora, ao lado do Cunha Leal
(aquele do Cerejeira de antigamente), rosna que há compadrio dos grandes grupos
financeiros com muitas das autoridades civis do meu regime. A Censura corta mas
sei que, no fundo, têm razão; o dinheiro não tem cheiro, por baixo do pano
impossível é deter o seu fluxo.
Também oficiais formados na América pela NATO, entre eles o Humberto
Delgado (outro que foi sempre dos meus), começam a morder o Santos Costa, o meu
sempre fiel Ministro da Guerra. Dizem que o aparelho militar português é arcaico
e é urgente renovar as Forças Armadas, também a sociedade portuguesa. E até o
Craveiro Lopes, o meu Presidente da República, parece que lhes dá ouvidos... O
Craveiro não pode ser candidato à reeleição, e tenho dito! Saudades do velho
Carmona...
Até o Marcelo Caetano (que foi o meu Comissário da Mocidade Portuguesa,
e o meu Ministro das Colónias, e o meu presidente da Câmara Corporativa e é o
meu Ministro da Presidência desde 1955) faz conluio com os seus ex-alunos que já
ocupam lugares cimeiros nas grandes empresas. Parecem todos apostados em renovar
o regime, mas por dentro. Não me atacam frontalmente, tentam é dissolver-me.
Quererão fazer hoje comigo, o que ontem eu fiz com o Rolão Preto? Enganam-se,
sou um osso muito mais duro de roer...
Tudo muda e é-me difícil travar a mudança. Eu queria que muitas e muitas
famílias portuguesas lavrassem as terras da nossa África, nisso investi. Assim
fiz na Cela e em Matala, em Angola. Assim fiz no vale do Limpopo, em Moçambique.
Até grandes barragens eu mandei construir, a de Cambambe em Angola e a de
Cabora-Bassa em Moçambique. Porém, selvagens ignorantes, que se diziam donos da
terra, passaram a hostilizar as famílias portuguesas. Muitas, talvez a maior
parte, acabaram por desertar para as cidades. Assim desandam as colónias... A
Guiné, hoje, é mais uma colónia da CUF do que uma colónia de Portugal. O mal é
estar eu aqui tão longe. Viajar não me apetece, de Lisboa a Santa Comba já me
cansa, quanto mais a Bissau, Luanda ou Lourenço Marques... Tivesse eu o dom da
ubiquidade e tudo seria diferente.
Tenho sonhado muito com a Christine Garnier, não sei porquê. Ou talvez
saiba, é esta minha ânsia de interregno, a minha loira e decidida francesinha,
jornalista que em 1951 veio para me entrevistar e acabou por me aquecer a cama e
a alma... Para fugirmos à mal-encarada vigilância da Maria, até fomos para Santa
Comba passar férias. Também porque a minha governanta, muito sovina, só lhe dava
carapaus grelhados, umas vezes com batatas, outras com arroz de grelos...
Estou cansado, saudades tenho do antigamente. Estou preso às ideias do
passado, sinto vontade de me ir embora, não me dou com a nova mentalidade, isto
é só para safados.
No horizonte não vejo mais o barquinho. Terá sido engolido pelas
ondas?
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DELGADO
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Volto a sentar-me e a cadeira quase se desmonta. Vou mandar
arranjá-la. Não substituí-la, que eu nada desperdiço, tudo aproveito.
Os ingleses, finalmente, parecem apoiar o meu regime, embora aconselhem
que o liberalize. Em 1957 mandam a rainha Isabel II a visitar-nos. Ela trata com
excessiva deferência o Craveiro Lopes. Bem entendo os ingleses, papas e bolos
para enganar os tolos... Mas não, já disse que não, o Craveiro não! Recuso a
infinita gama de cinzentos, essa é armadilha do Diabo. Para mim é branco ou
preto, o Bem ou o Mal. O meu candidato é o Almirante Américo Tomás, dócil e
bronco, não quero viver em sobressaltos.
Tocado pelos americanos, Humberto Delgado passa a ser o candidato da
Oposição. É o próprio General Coca Cola, mas até os comunistas acabam por
apoiá-lo. É desassombrado, é o mais novo general das Forças Armadas portuguesas,
coragem física e irreverência não lhe faltam. Declara que, se for eleito,
obviamente me demite. Tem até o desplante de frisar o obviamente. Apesar
da PIDE, das cargas da GNR e da PSP, em nome da Liberdade arrasta multidões
atrás de si. Já lhe chamam o General Sem Medo. Desde o Porto até Lisboa, desde o
Alentejo até ao Minho. E os arruaceiros parecem não ter medo das forças da
ordem, respondem à pedrada, subversão.
É sismo, é terramoto, rompeu-se um dique e a Nação pode vir a ficar
submersa.
Cerro fileiras para salvar a Pátria. Santos Costa põe a tropa de
prevenção e os "craveiristas" acovardam-se, não respingam. Na campanha eleitoral
de 1949 um dos meus dissera "daqui não saímos, nem a tiros, nem a votos". Não o
digo mas penso o mesmo. Quem controla os cadernos eleitorais e as mesas de voto
ainda somos nós e em 1958 quem ganha as eleições para a Presidência da República
é o Almirante Américo Tomás, obviamente. Não posso deixar de
rir...
No rescaldo, um dignitário da Igreja, D. António Ferreira Gomes, bispo
do Porto, atreve-se a contestar a minha autoridade. O Cerejeira desterra-o para
Roma, mas já vai tarde, fez grandes estragos nas relações entre a Igreja e o
Estado.
Deixo que amorteça a onda de choque e em 1959 demito o Delgado de todos
as suas funções militares. Nas vésperas de ser preso corre a asilar-se na
Embaixada do Brasil e depois segue para o exílio naquele país.
A Nação está devastada. Não sei se terei forças para reconstruí-la.
Ainda faço uma alteração constitucional: a eleição para a Presidência da
República não será mais por sufrágio directo, mas por sufrágio orgânico. Casa
arrombada, trancas à porta...
Em 1960 um comunista louco desvia um avião da linha Casablanca - Lisboa
e espalha panfletos subversivos sobre a capital. Também o Álvaro Cunhal e outros
cães raivosos conseguem fugir do Forte de Peniche, tudo me falha.
Não gosto da minha vida. Em vez de governar, gostaria de estar em Santa
Comba, entre os campos e as vinhas. Mas não encontro quem possa
substituir-me.
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1961: O PIOR ANO DA MINHA
VIDA
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A 22 de Janeiro, na América Central, o Henrique Galvão assalta o
paquete Sta. Maria (Santa Liberdade, berram eles...). É pirataria das antigas,
mas as outras Nações assim não o entendem. O Brasil dá asilo político aos
piratas.
A 4 de Fevereiro um bando de selvagens assalta as prisões de Luanda,
querem libertar os presos políticos. Espicaçados, a reacção dos portugueses é
heróica: de muceque em muceque, partem à caça dos terroristas.
11 de Março... O General Botelho Moniz é um militar "craveirista", eu
bem sabia disso. Mas quis neutralizá-los, convidei-o para meu Ministro da Guerra
e muito me custou pôr de lado o Santos Costa. Enganei-me, isto já não funciona
como dantes. A 11 de Março o Américo Tomás telefona-me a avisar que o Botelho
Moniz e outros generais têm um golpe armado para me apear. Neste preciso momento
os golpistas estão a assistir a um jogo de futebol entre as selecções militares
de Portugal e Marrocos. Rapidamente vou de quartel em quartel, altero os
comandos, esvazio o golpe. Depois do jogo, o Botelho Moniz ainda vem ao meu
gabinete tentar uma solução pacífica, que eu trate de acabar com a Censura e
outras parvoíces... Ele a falar e eu a lembrar-me de um outro Botelho Moniz
fundador da Legião Portuguesa e comandante dos nossos Viriatos na guerra
de Espanha. Este aqui degenerou, não saiu aos seus... Corto rente:
- Senhor General, está demitido, queira retirar-se!
Em Angola dão-me uma facada pelas costas. E agora, na minha própria
casa, outra facada me queriam dar?
A 13 de Março vou à Emissora Nacional e proclamo, espicaço:
- Para Angola e em força!
Mobilização, flores, fanfarras, a Pátria não se discute!
Mas a 15 de Março a quadrilha do Holden Roberto começa a chacina no
norte de Angola. Ele, que nem português sabe falar, é traidor de segunda
financiado pelos americanos.
A PIDE avisa-me que outros, dos que estudaram na Metrópole, como o
médico Agostinho Neto e o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, também andam lá
por fora a organizar movimentos terroristas de outro cariz. Fiz mal em ter
aberto em Lisboa a Casa dos Estudantes do Império. Apesar de assimilados, e até
licenciados, portugueses de segunda, de segunda serão sempre.
A 21 de Abril há uma resolução da ONU a condenar a política africana de
Portugal. Ninguém entende a nossa forma de estar no mundo, à qual um brasileiro
chamou, e muito bem, de luso-tropicalismo. Não percebem que a nossa Nação é
pluricontinental e plurirracial, é Una, vai do Minho a Timor e a Pátria não se
discute.
A 19 de Dezembro tropas indianas invadem Goa, Damão e Diu. Eu tinha
ordenado que resistíssemos até ao último homem. O nosso martírio (e eu só estava
à espera dele...) levaria ao ridículo internacional o incensado pacifismo de
Nehru. Mas Vassalo e Silva, o comandante da nossa tropa, acovardou-se,
rendeu-se, traiu-me. Fico muito abalado com a traição.
Na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro há uma tentativa de
sublevação no quartel de Beja, e nela está envolvido o próprio Humberto Delgado.
A PIDE está a par das movimentações. Abafa a revolta mas o susto é
grande.
Este foi o pior ano da minha vida.
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ORGULHOSAMENTE
SÓ
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Torno a levantar-me. Não vejo o barquinho, não sei o que é feito
dele.
Ingleses, franceses e belgas abandonaram a África e agora exigem que
façamos como eles fizeram? Estão enganados, somos diferentes, não viramos costas
à Pátria que dilatámos, soprados somos pelos ventos da História. Não querem
ouvir-me e fico só, orgulhosamente só.
Porventura em Portugal estarei mais só. Mas não me entrego, já disse que
sou osso duro de roer. Hei-de vedar as brechas da União Nacional, ela tornará a
ser o que foi no início, aglutinação de todas as direitas, a Direita, a única.
Faço como sempre fiz, alivio o secundário, atarraxo o principal. Em 1958 dei
aumento aos funcionários públicos mas, ao mesmo tempo, promovi a caça aos
comunistas, o escultor Dias Coelho foi abatido na rua como um cão raivoso e a
PIDE destroçou quase que por completo o aparelho clandestino dos lesa-Pátria. Em
1959 consenti que Portugal aderisse à EFTA, lancei o Plano de Fomento, abri
linhas de crédito para as indústrias mas, ao mesmo tempo, dei caça ao Delgado e
aos delgadistas.
No meu tempo era a Direita que fascinava os estudantes universitários.
Hoje parece que é a Esquerda, consequências da famigerada instrução que alastrou
sem rei nem roque... Para esse perigo alertei os doutores que me cercam. Não me
quiseram ouvir e aí está o resultado: em 1962 rebenta a crise académica de
Lisboa. A um grupo de estudantes católicos chego mesmo a dizer:
- Não estraguem as vossas vidas, não se metam em políticas, façam como
eu, a minha política é o trabalho!
Ouço que abafam risos. Só há um remédio, safanão a tempo, estudantes
para o calabouço!
Mais preocupado me deixa o Ultramar. Em 1963 os terroristas do Amílcar
Cabral, traidor de segunda financiado pelos russos, abrem uma segunda frente na
Guiné. Espicaço, vamos também em força para a Guiné! Para aliviar a pressão em
Angola apoio a secessão catanguesa do ex-Congo Belga e o comunista Lumumba é
justiçado. Mas em 1964 os terroristas do Eduardo Mondlane, outro traidor de
segunda também financiado pelos russos, abrem uma terceira frente em Moçambique.
Espicaço, vamos também em força para Moçambique! A Grã-Bretanha, os Estados
Unidos, a Rússia, a ONU, exigem referendos para a autodeterminação das nossas
Províncias Ultramarinas. Estão iludidos, não vou à fala, não converso com
terroristas. Orgulhosamente sós, a Pátria não se discute!
É-me já difícil manter o equilíbrio orçamental: três guerras no Ultramar
e o consequente sorvedouro financeiro, também a expansão económica da Metrópole
que já não consigo domar... Paliativos? As remessas dos emigrantes, o turismo
(com a consequente infecção da nossa moral e costumes), também o investimento
estrangeiro. Assim começa a ser ofuscada a nossa forma de estar no mundo... É
preocupante, mas pior que tudo são as traições. Em 1964 o Papa visita a Índia e,
no ano seguinte, visita as Nações Unidas que tanto me atanazam. Não lhe perdoo,
nem sequer quando vem a Fátima a 13 de Maio de 1967.
As traições, as traições... Em 1965 há nova crise académica e Marcelo
Caetano sai em defesa dos estudantes que levaram o merecido safanão. Logo ele, o
meu ex-Ministro da Presidência... Tenho sonhado muito com o Rolão Preto,
pesadelos.
Não cedo, não arredo! Para aliviar a pressão em Moçambique, juntamente
com a África do Sul apoio a independência da Rodésia de Ian Smith. E ainda em 65
mando assaltar e encerrar a Sociedade (dita Portuguesa) de Escritores, que
premiou o romance de um terrorista angolano! E em 67 mando assaltar e fechar a
Cooperativa Pragma (dita de acção cultural), aí os comunistas até fingiam de
católicos. Para mais me perturbar, sei que ali também arengava o filho de um dos
meus fieis.
Ainda em 1967 bandidos comunistas assaltam a dependência do Banco de
Portugal na Figueira da Foz e fogem com o dinheiro, que não é pouco. Mas o que é
que andam a fazer a PIDE e a GNR e a PSP? Até essas forças já me
falham?
Bandidos mais perigosos são os estudantes, veja-se o que fizeram com o
General De Gaulle em Maio passado. Esta subversão moderna tem de ter um ponto
final! Começo por deportar o Mário Soares para S. Tomé. Só porque era o advogado
da família Delgado, queria meter o bedelho aonde não era chamado...
O Delgado, ai o Delgado... Uma das raras alegrias que eu tive nestes
tempos conturbados, ocorreu em 1965. Em Argel conspiravam comunistas,
delgadistas e outros "reviralhistas", queriam até aliciar a ingenuidade lusitana
através das ondas curtas. Rosa Casaco, o meu fiel inspector da PIDE, de Argel
conseguiu atrair o Delgado até perto de Olivença, emboscada. Estou a ver o
general a chegar à fronteira a meio da noite, a morder o isco, a engasgar-se, a
levar um tiro. E a apagar-se, obviamente. Dá-me vontade de rir e largo o
corpo na cadeira.
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REQUIEM | |
A 3 de Agosto de 1968 a cadeira prega-lhe realmente uma partida:
queda, a cabeça a bater no chão, hematoma cerebral, bloco operatório, diminuição
das faculdades mentais. Depois de muito hesitar, Américo Tomás acaba por nomear
Marcelo Caetano para a Presidência do Conselho de Ministros. Alguns destes,
junto de Salazar, fingem que é ele ainda o Presidente do Conselho; ou ele finge
acreditar na encenação e, a fingir, lá vai dando despacho aos assuntos
correntes. Morre a 27 de Julho de 1970. 81 anos de idade, 42 de poder
ininterrupto.
As suas pegadas marcaram Portugal. O tempo passa e elas ficam,
dinossauros passearam por aqui.
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1 comentário:
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