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A Verdade do 4 de Fevereiro de 1961
"Na
introdução ao livro, ANGOLA RECONSTRUÇÃO NACIONAL, ANGOLA DE HOJE E
DE SEMPRE, faz-se uma descrição sumária mas deturpada na sua essência da
história de Angola. Na página seguinte em: INICIA (INÍCIO) DA LUTA ARMADA, descreve-se
que 4 de Fevereiro de 1961 marcou o início de uma nova fase de luta do
MPLA".
O ANO DOS DOIS CARNAVAIS
Nas
conversas clandestinas, nas esplanadas e nos serões quentes de Luanda, nas
matinés e noitadas de merengues e rebitas dos musseques, nos almoços de funge,
regados com cervejas Cuca, corria um mistério, transportado por uma frase dita
em surdina: «Este ano vai haver dois Carnavais!»
A frase
sobressaltou a advogada Maria do Carmo Medina, já conhecedora e defensora das
actividades clandestinas, quando a ouviu da boca de João Cardoso, um activista
pela independência de Angola e que viria a morrer, uns anos depois na prisão de
São Pedro da Barra.
Mª Carmo Medina (foto Net)
A expressão
— «dois Carnavais» — funcionava quase como uma senha de cumplicidade entre quem
estava a preparar, há largos meses, um assalto às cadeias de Luanda.
Na primeira
linha dos preparativos, aparecia Manuel das Neves, um cónego mestiço, dos raros
não-brancos de origem portuguesa a integrar a Igreja Católica. Era ele que
servia de elo de ligação entre os presos, os seus familiares e dirigentes
políticos. E, sobretudo, um instigador, a partir do seu pequeno quarto numa
paróquia de Luanda, da revolta armada, «com sangue», «contra o colonialismo».
Como director do jornal O Apostolado, Manuel das Neves conseguia fazer
passar algumas mensagens subtis para o exterior ao mesmo tempo que ia dando
notícias sobre as movimentações de alguns nacionalistas que viviam no
estrangeiro. Servia-se ainda do jornal e de contactos com os paroquianos para
manter ligações com activistas em Luanda, mas também com gente que viajava
frequentemente entre os bairros periféricos de Luanda e o Congo, via Matadi. E
era através desses viajantes, a maior parte de origem congolesa ou nascidos no
Norte de Angola, que Manuel das Neves ia tendo conhecimento das movimentações
de nacionalistas e do nascimento primeiro da UPNA e depois da UPA.
Há muito que
o cónego, vigário-geral da diocese de Luanda, vinha defendendo a necessidade de
Angola se tornar independente. Desde a década de 50, sobretudo nos derradeiros anos,
que Manuel das Neves recebia, em sua casa, perto da Sé de Luanda, o também
padre Joaquim Pinto de Andrade, que, tal como o irmão, Mário, começava a
participar nos movimentos que lutavam pela independência. As conversas, de
acordo com a memória de Pinto de Andrade, não variavam muito e eram em tudo
idênticas a tantas outras em que Manuel das Neves mantinha com outros
activistas e que serviam para espalhar ideias nacionalistas:
«Ele dizia
que era preciso quebrar este mito [que os angolanos não queriam a independência
e gostavam de ser portugueses] e isto só fazendo um acto de força, um acto que
tivesse repercussão internacional para que todo o mundo visse que os angolanos
queriam ser independentes. E planeava em conversas em que dizia: "Não é
preciso muita coisa, para se fazer uma guerra e vencer. Não. É só para fazer um
acto que dê brado lá fora e quebre o mito." Então, eu disse-lhe:
"Como, com que armas, senhor cónego?" E ele respondeu-me: "Armas
brancas, portanto, catanas, punhais... assaltar cadeias onde haja presos
políticos para os libertar e, no mesmo dia, assaltar a rádio e as principais
esquadras da Polícia e ir pela Rua do Balão até a Fortaleza e hastear a
bandeira nacional. Bom, temos de fazer uma bandeira nacional, temos de inventar
uma."»
Na procura
de um acto espectacular, Manuel das Neves defendia que era necessário espreitar
uma oportunidade. Por exemplo, quando houvesse jornalistas estrangeiros em
Angola. O ensejo, tantas vezes desejado, surgia proporcionado por Henrique
Galvão, quando decidiu desviar o navio Santa Maria. Demitido do
exército, onde tinha o posto de capitão, o escritor e político Henrique Galvão
resolvia assaltar o paquete, com 970 turistas, que se propunha atravessar o
Atlântico com destino ao Brasil. A «Operação Dulcineia» começara no início de
Janeiro. Henrique Galvão encontrava-se na Venezuela à espera do navio que
deveria fazer escala em Caracas a caminho do Rio de Janeiro. Galvão e mais 20
elementos — entre portugueses e espanhóis que combatiam as duas ditaduras
ibéricas — do autoproclamado, DRIL, Directório Revolucionário Ibérico de
Libertação, tomavam de assalto o navio anunciando que pretendiam atracar em
Angola. Mal foi dada a notícia do sequestro do navio, jornalistas de quase todo
o mundo aterravam em Luanda. No entanto, a aventura de Henrique Galvão
terminava no Brasil, precisamente na noite de 3 de Fevereiro, poucas horas
antes dos assaltos às cadeias. Luanda estava «apinhada de jornalistas,
cineastas e locutores de rádios», de acordo com um relatório da PIDE, elaborado
dias depois.
Igreja da Sé de Luanda (foto Net)
Manuel das
Neves recebia a colaboração empenhada de Mariana Ana Paz, que tinha a
incumbência de levar comida para os presos da Casa de Reclusão Militar, na Cadeia
de São Paulo, quase todos eles, detidos por participarem em actividades
subversivas contra o regime. Mas não só. Cada visita era acompanhada por
mensagens, não apenas do cónego, mas de outros activistas. E, no interior dos
bairros, pontificava o «mais-velho» Cardoso Sebastião Gamboa, considerado, pela
população, como tendo poderes «mágicos». Há várias semanas que Cardoso Gamboa
obrigava os chefes de outros bairros a uma rigorosa quarentena, com vigílias
permanentes ao fim do dia, no cemitério, e um jejum absoluto. Os chefes seguiam
assim as práticas tradicionais de feitiçaria importadas do Congo, em que até se
usava uma panela a ferver, a cozer uma carta, que se dirigia a Patrice Lumumba
e com o objectivo de o informar o que se preparava em Luanda. O «campo dos
brasileiros», no Bairro Rangel, servia de palco para as reuniões clandestinas e
os preparativos em que se pedia a inspiração e ajuda dos espíritos. As catanas
e os cassetetes iam sendo benzidos por dois curandeiros, em cerimónias
praticadas na casa de Paiva Domingos da Silva que, uns meses antes, viajara até
ao Congo em busca de poderes mágicos.
Chegada do Stª Maria a Lisboa (foto Net)
Enquanto
decorriam estas movimentações pela cidade de Luanda, os presos políticos
viviam, praticamente em todas as cadeias, com uma espada sobre a cabeça: a
possibilidade de, a qualquer momento, serem transferidos para o Tarrafal, a
ilha cabo-verdiana, onde foi construída uma prisão de alta segurança inspirada
nos modelos dos campos de concentração nazis.
Além do
desejo de fuga, Manuel das Neves, Cardoso Gamboa e os presos políticos não
tiravam da cabeça os últimos acontecimentos em Angola. Depois do «Processo dos
50», o mês de Janeiro desse ano, assistira aos actos mais sangrentos dos
últimos tempos provocados pelo regime e provavelmente o maior banho de sangue
da história colonial portuguesa. Na Baixa de Cassanje, província de Malanje,
milhares de agricultores das fazendas de algodão — a maior parte deles vindos do
Sul e obrigados a trabalhar no Norte — revoltavam-se com as condições de vida.
Exigiam apenas a abolição do trabalho forçado e o fim do pagamento de impostos,
fazendo greve nas plantações algodoeiras, num movimento liderado por António
Mariano. Os protestos não se limitavam à greve. Durante dois dias, foram
queimadas sementes, algumas pontes sobre os rios apareceram destruídas e as
missões católicas, as lojas e casas de colonos sofreram ataques. As tropas
portuguesas reagiram, colocando em acção as companhias de caçadores especiais e
aviões que lançaram bombas incendiárias.
A investida
das tropas coloniais, da polícia e de alguns colonos, além de esmagar a
rebelião, provocou a morte a mais de oito mil agricultores que trabalhavam para
a Companhia de Algodão de Angola e para a Cotonang, uma fazenda algodoeira de
capitais mistos de portugueses e belgas. O massacre de Cassanje não passava
despercebido pela imprensa em quase todo o mundo, ao mesmo tempo que os jornais
em Portugal, subjugados pela lei da censura, nem sequer arriscavam a abordar o
assunto. No entanto, ganhava outra dimensão no topo da polícia política. Por
isso, logo a seguir ao massacre de Cassanje, nascia o SIGGA (Serviço de
Informações do Governo Geral de Angola) que reunia as informações recolhidas
pela PIDE e por militares e a meio do ano dava lugar ao SCCI (Serviço de
Centralização e Coordenação de Informações). Iniciava-se assim uma colaboração,
entre a polícia política e as forças armadas, que, no entanto, em 14 anos, iria
passar por diversas dificuldades de entendimento.
Os
acontecimentos de Cassanje, que se repetiram, mas com resultados de
menores dimensões, nos dias imediatamente seguintes, deixavam fortes marcas a
muitos dos sobreviventes que encontraram refúgio nas periferias das cidades
mais importantes, como Benguela, Novo Redondo, Nova Lisboa e Luanda.
O dia 4 de
Fevereiro ameaçava ser um dia igual aos outros vividos nos últimos tempos em
que os musseques da capital angolana ardiam de ansiedade. Luanda preparava-se
para as noites de folia e matinés dançantes que eram quase milimetricamente
preparadas pela burguesia portuguesa, já adaptada à alegria luandense e também
pelos angolanos «de segunda».
Na Casa de
Reclusão Militar, o nacionalista Mendes de Carvalho, preso no âmbito do
«Processo dos 50», com ligações estreitas aos grupos de enfermeiros e alfaiates
que entretanto se formaram em Luanda, tentava entregar, há largos meses, um
recurso ao Supremo Tribunal Militar, escrito na cadeia e baseado num código de
Justiça Militar, que ele próprio consultara. Os argumentos do recurso foram
delineados com a ajuda de André Franco de Sousa, que já se vinha destacando por
ter participado nos primeiros passos do MPLA. No decorrer do julgamento, Mendes
de Carvalho ficara sem o acompanhamento do advogado, porque todos os juristas
se recusavam a defendê-lo a partir do momento em que, em plena sala de
tribunal, resolveu acusar os portugueses de serem «um povo bárbaro».
No entanto,
o recurso só poderia ser entregue em Lisboa, precisamente por um causídico.
Também por carta e por sugestão de André Franco de Sousa, Mendes de Carvalho
solicitara a ajuda do bastonário da Ordem dos Advogados, Adelino da Palma
Carlos, que, no entanto, recusara recorrendo ao argumento de «falta de tempo».
O nacionalista angolano virava-se então para o advogado Luís Saias, que, ao
aceitar, recomendava o envio de uma procuração, «com muita urgência». A
resposta de Luís Saias chegava à Cadeia de São Paulo no final da tarde
de 3 de Fevereiro de 1961. Mendes de Carvalho decidia-se por pedir o auxílio ao
irmão, num telefonema, em que lhe solicitava que fosse buscar, à cadeia, uns
documentos para serem «transferidos para Lisboa».
As palavras
«transferidos» e «Lisboa» soavam, de imediato, como campainhas que accionavam
os sentidos e os permanentes receios dos presos. À velocidade de um fósforo
aceso, passava a informação na cadeia que todos os detidos seriam transferidos,
no dia a seguir, para a capital portuguesa. O mesmo era dizer: para a ponte de
passagem a caminho do Tarrafal. Fizeram-se malas, arrumaram-se os parcos
haveres, avisou-se as famílias e o rumor depressa se propagou nos bairros dos
arredores de Luanda, onde há muito se aguardava um sinal para atacar os
estabelecimentos prisionais.
Comemoração do dia 4 de Fevereiro de 1964 (foto livro)
De
madrugada, na passagem de 3 para 4 de Fevereiro, precipitava-se tudo. Um
foguete, accionado num bairro vizinho da Cadeia de São Paulo, rebentava
às quatro horas da manhã, dando sinal para que mais de 2.50 pessoas, divididas
em 10 grupos, e vestidas de camisolas e calções pretos e de catanas em punho,
largassem os bairros a caminho das cadeias. Destes, apenas quatro grupos
entravam em confrontos directos com as forças portuguesas e conseguiam atingir
os alvos: a Cadeia de São Paulo e outros estabelecimentos prisionais da
cidade de Luanda. Dentro da prisão, os grupos de presos que, há meses,
preparavam a fuga, resolviam avançar, pegando em todos objectos que fossem
cortantes. Os primeiros ataques provocavam a morte a um cabo, de apelido Silva,
que fora decapitado, sendo a primeira vítima da longa madrugada luandense. Em
poucas horas, morriam 40 assaltantes e sete guardas prisionais, de acordo com
dados oficiais divulgados pelo Governo-Geral de Angola.
Na
preparação dos ataques, estiveram envolvidos 3.123 homens, todos recrutados nos
bairros periféricos, e comandados, no terreno, pelos angolanos Paiva Domingos
da Silva e Francisco Imperial Santana.
Ainda na
manhã de 4 de Fevereiro, Mendes de Carvalho era chamado ao gabinete do
director. Sobre ele recaía a suspeita de ter dado o sinal para os ataques. Já
escritor, assinando com o seu pseudónimo em kimbundu, Uanhenga Xitu, Mendes de
Carvalho, recorda, num livro publicado depois de 1975, essas horas que ele
próprio admite não saber como conseguiu sobreviver.(...)
De Conakry, mal souberam dos acontecimentos em Luanda, os dirigentes do
MPLA, a viver no exílio, resolviam reivindicar a autoria dos assaltos. Coubera
a Mário Pinto de Andrade, presidente do movimento, as primeiras palavras de
regozijo pelo que se passara na capital angolana. O presidente do MPLA,
acompanhado por outro dirigente, Lúcio Lara, emitia um comunicado em nome do
Comité Director do MPLA, intitulado «Os incidentes de Luanda». O texto
recordava os acontecimentos na capital angolana e dos dados oficiais, sobre o
número de mortos, e voltava a falar na «acção directa». (...)
Mas o «4 de
Fevereiro» não iria acabar na manhã desse dia. Dias depois, logo após os
funerais das vítimas, grupos de civis brancos organizavam autênticas batidas
pelos musseques da periferia de Luanda e provocavam a morte a centenas de
pessoas. Uma semana depois, o «filme» era retomado, mas em menor escala. Novos
tumultos nas cadeias faziam sete mortos, todos presos, e mais 17 feridos. E
novas incursões dos mesmos grupos de civis deixavam um lastro de sangue e
provocavam um número elevado de vítimas mortais que nunca chegou a ser
contabilizado.
No intervalo
dos dois ataques, o governador-geral de Angola, Silva Tavares, resolvia fazer
uma incursão pelos musseques — ou «bairros excêntricos», como eram descritos
pela imprensa em Lisboa — acompanhado pela polícia e por jornalistas
previamente escolhidos. Silva Tavares pretendia assim demonstrar que a situação
se encontrava calma. Logo a seguir à visita, o governador lia uma mensagem, na
Emissora Nacional, garantindo que reinava a calma em Luanda e recomendando às
pessoas para acatarem as ordens e recomendações da polícia. (...)
ANGOLA 1960/1961
Manuel Graça
2ª Edição, Junho de 1998
Na madrugada
de 3 para 4 de Fevereiro de 1961, sete agentes da autoridade foram cobardemente
assassinados, traiçoeiramente, sem poderem esboçar um gesto de defesa, quando
cumpriam o seu serviço de rotina. Caíram numa cilada, acorrendo a um chamamento
de socorro, a uma fictícia desordem, em plena madrugada. Mortos com requintes
de selvajaria, cortados à catanada, foram estes os primeiros mártires da causa
portuguesa, as primeiras vítimas da horda assassina a soldo de potências
estranhas de intenções conhecidas. Na manhã do dia 4 a noticia espalhou-se por
toda a cidade como um relâmpago.
A surpresa
foi tão grande que, a princípio, era difícil acreditar que fosse verdade. Mas
lá estavam os cadáveres, sete corpos que horas antes ainda fervilhavam de vida,
a atestar a noticia, tão cruel como revoltante. Começavam então a conhecer-se
pormenores. Houvera ainda uma tentativa de assalto à Casa da Reclusão Militar,
onde fora morto um cabo do exército. Havia ainda alguns agentes da autoridade
hospitalizados, gravemente feridos. Houvera um soldado negro que fora um
verdadeiro herói. Debaixo do fogo e das catanas dos invasores, conseguira
meter-se no «jeep» e chegar, embora ferido, ao quartel onde dera o alarme. De
manhã, toda a zona das barrocas estava a ser motivo de aturada rusga por parte
da Polícia. Luanda inteira já sabia dos acontecimentos e assistia excitada e
revoltada ao desenrolar das coisas. Mas ainda não passava pela cabeça de
ninguém, naquela altura, que aquilo seria o prenúncio de dias terríveis, dias
que ficariam para sempre marcados na história de um país, dias que deixariam a
terra de Angola regada com o sangue dos seus habitantes, colhidos de surpresa
por um bando de assassinos narcotizados e completamente enlouquecidos por
promessas enganosas e impossíveis.
Deus sabe
como nesta terra se vivia cm absoluta e completa paz, lutando lado a lado,
pretos, brancos e mestiços para o mesmo fim: o engrandecimento da sua Pátria —
PORTUGAL!
O funeral
destes malogrados portugueses realizou-se no dia 5 de Fevereiro de 1961, da
Igreja do Carmo para o Cemitério Novo. Jamais se vira um acompanhamento fúnebre
como aquele! Ao longo de todo o percurso, nas ruas, nas janelas, nas paredes,
nas árvores, em toda a parte onde houvesse um lugar para tal, lá estava uma
pessoa, de lágrimas nos olhos para dar o último adeus aos sete heróis. Milhares
e milhares de pessoas e carros acompanharam os sete ataúdes até ao cemitério. No
Cemitério Novo e no largo fronteiro, era impossível meter mais gente. O
Governador-Geral e as mais altas individualidades civis e militares da
Província integraram-se no cortejo, junto às urnas. Foi a maior manifestação de
pesar que jamais se viu na capital de Angola.
Funeral das vítimas do 4 de Fevereiro de 1961. (foto livro)
Rezavam-se
as últimas preces e preparavam-se as urnas para baixar à terra, sua última
morada, quando os milhares de pessoas que se encontravam dentro do cemitério
foram alertados por gritos e alguns tiros vindos de fora. A confusão foi geral
e o pânico apoderou-se de todos. Mulheres gritavam pelos filhos, filhos
gritavam pelos pais, pessoas corriam de um lado para o outro. Só visto. Soaram
mais tiros. Homens muniam-se de paus ou de qualquer outro objecto que
encontrassem e que lhes pudesse servir de defesa. Corriam cm todas as
direcções. O pânico era geral. Desconhecia-se ainda, lá dentro dos muros, o que
na realidade se estava a passar cá fora. Mas pairou sobre todos a ideia de um
ataque naquele momento e naquele local, colhendo toda a gente de surpresa e
praticamente «enjaulada» entre as quatro paredes do campo santo.
O
descontrole era absoluto. Poucos conseguiram conservar a calma. Soaram mais
tiros. Pouco a pouco a situação foi-se normalizando e chegou uma força da
Polícia e do Exército, armada, que tomou imediatamente posições de defesa. A
multidão era enorme e, por isso, impossível romper-se lá de dentro para saber o
que realmente se passava. No entanto, cá fora, as autoridades e alguns civis
armados faziam fogo contra os terroristas que tentaram assaltar o cemitério
precisamente no momento mais solene da cerimónia fúnebre. Com a calma mais ou
menos restabelecida lá dentro, as pessoas foram procurando a saída.
Manifestação popular (foto livro)
A confusão
tomara foros de envergadura e todos procuravam agora pôr-se a salvo saber
exactamente o que se passara. Havia dois ou três terroristas mortos no espaço
vazio entre a entrada do cemitério e as casas do outro lado da estrada de
Catete. A tentativa de fuga dos terroristas lançou as autoridades e os civis
armados na sua peugada. Ouviram-se ainda tiros dispersos e gritos de desespero
na confusão da fuga. Os carros aglomeravam-se na estrada, amontoados, se assim
se lhe pode chamar, numa tentativa desesperada de regressar à cidade, à
segurança, fugindo assim daquilo que podia ter sido uma carnificina horrível se
a emboscada traiçoeira não tivesse encontrado pela frente dois ou três
corajosos. Um polícia ficara ferido, golpeado. A polícia tentava ordenar o
trânsito, o que era quase impossível. Agora nova e terrível pergunta dominava
aquela gente: teriam as casas sido também assaltadas, aproveitando o facto de
toda a gente se encontrar ali? As crianças haviam lá ficado.
O incidente
do cemitério e a morte dos polícias caíram no olvido depressa demais. Ou, pelo
menos, não foram levados na conta que deviam ser no que respeita a precaução.
Não quero aqui condenar ninguém, porque o erro foi de todos nós. Sim, todos nós
voltámos à nossa vida normal, em completa paz, esquecendo o perigo que aquilo
poderia significar e que, como mais tarde se viu, significava mesmo. E Deus
sabe como deveríamos ter imaginado que aqueles incidentes eram o prenúncio duma
grande tempestade! Mas, quem acreditaria que aquela paz de séculos iria ser
perturbada (e de que maneira!) dentro de pouco tempo? A calma voltou e, com
ela, a mesma confiança de sempre, a confiança de um povo que vivia tranquilo no
seu trabalho e no seu descanso. Os dias que se seguiram foram a antecâmara da
morte para milhares de portugueses.
O autor |
4 de Fevereiro de 1961
Carlos Pacheco
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Na origem da
rebelião de 1961, como seu inspirador, esteve o cónego Manuel Joaquim Mendes
das Neves, mestiço, natural da vila do Golungo-Alto e missionário da
arquidiocese de Luanda. Umas três centenas de homens escutaram a sua voz e
hastearam o pendão da revolta. Nenhum tinha ligações ao MPLA.
Já
demonstrei em livro e em vários outros textos que o MPLA jamais existiu antes
de 1960. Quando detonaram os motins de 4 e 10 de Fevereiro de 1961 em Luanda,
esse agrupamento político (superiormente dirigido por Viriato da Cruz)
achava-se confinado na Guiné-Conacri ainda em fase embrionária, sem implantação
em Angola. Nesta ex-colónia portuguesa quem de facto reinava era a UPA (União
das Populações de Angola), apoiada por grupúsculos clandestinos que cedo
desapareceram engolidos pela vaga de prisões em 1959.
Na origem da
rebelião de 1961, como seu inspirador, esteve o cónego Manuel Joaquim Mendes
das Neves, mestiço, natural da vila do Golungo-Alto e missionário secular da
arquidiocese de Luanda. Ele dizia na roda dos seus íntimos aliados ter chegado
a hora de provocar um violento abanão no sistema colonial português tantas eram
as injustiças contra os africanos. Perto de três centenas de homens escutaram a
sua voz e hastearam o pendão da revolta. Nenhum tinha ligações ao MPLA.
Oriundos a maior parte de Icolo e Bengo, muitos haviam sido recrutados por
Neves Adão Bendinha (empregado de escritório), que passava por ser então um dos
maiores activistas políticos da UPA
Bandeira FNLA
Depois de
aturadas pesquisas em arquivos e de entrevistas realizadas com os
sobreviventes, consegui reconstituir com relativa minúcia o plano dos
amotinados. A figura central desse processo foi inegavelmente Bendinha, que
fazia a conexão ao cónego e dele recebia instruções. Sempre auxiliado por
Domingos Manuel Mateus (pintor da construção civil) e por Paiva Domingos da
Silva (carpinteiro), ele formou os grupos de ataque, nomeou um chefe para cada
unidade e designou os locais estratégicos da cidade a serem acometidos. Na
última semana de Janeiro, organizou a concentração dos insurrectos nas
pedreiras do Cacuaco (arredores da capital), onde, sob a orientação de Bento
António (pedreiro e cabo do Exército português), se ministraram rudimentos de
treino militar e se ritualizaram sessões de feitiçaria por forma a imunizá-los
"contra as balas dos brancos".
Enquanto
decorriam estes preparativos, Luanda foi de súbito invadida por dezenas de
jornalistas estrangeiros por causa da captura do Santa Maria. Corria o boato de
que Henrique Galvão conduzia o navio para as costas de Angola. Este
acontecimento caiu como uma bomba. Os ataques em Luanda estavam previstos
acontecer somente a 13 de Março, de modo a coincidirem com o levantamento no
Norte e com o debate de Angola nas Nações Unidas. Que fazer, neste caso? Não
esperar mais (pensaram os insurgentes), a presença dos jornalistas era crucial,
os seus relatos in loco por certo iriam provocar o maior estrondo
internacional. Apenas faltava obter a aprovação do cónego. Salvador Sebastião
(estafeta da Junta de Povoamento) foi o escolhido para essa missão. Na manhã de
sexta-feira, 3, deslocou-se à Igreja dos Remédios e explicou ao sacerdote a
mudança de planos por motivo da nova situação; comunicou que os chefes tinham
deliberado passar à acção na madrugada do dia seguinte. O diálogo foi longo,
com muitas reticências por parte do reverendo. Este, por fim resignado,
abençoou o ataque, mas reputou-o de prematuro. Ele entendia que as coisas
careciam de mais tempo e melhor preparação.
O grupo
responsável por atacar o Aeroporto Craveiro Lopes e incendiar os aviões
estacionados na pista e nos hangares era encabeçado por Bendinha, que tinha
como lugar-tenente o carpinteiro Raul Agostinho Cristóvão (ou Raul Deão). Esta
investida, no entanto, falhou, ao passo que noutros pontos - Casa da Reclusão,
Companhia Móvel da PSP (4.ª Esquadra), Cadeia da Administração de São Paulo,
Companhia Indígena e Estação dos Correios - se registaram escaramuças entre os
rebeldes e as forças da ordem. Paiva Domingos comandou o grupo de assalto à
Companhia Indígena com 20 homens, mas, ao ouvir os primeiros disparos, o grupo
recuou. O colectivo que carregou sobre a Cadeia da Administração ao sentir a
situação mal parada correu em direcção da Companhia Móvel (4.ª Esquadra) e não
conseguiu lá chegar. Os militares portugueses já tinham saído dos quartéis no
encalço dos rebeldes.
No rescaldo
deste assalto, que mobilizou cerca de 220 homens e deixou no terreno quinze
mortos e um número indeterminado de feridos, o novo chefe-geral dos sublevados,
Agostinho Cristóvão, reorganizou com Paiva Domingos os efectivos que restavam e
no dia 10 pela madrugada, ambos à testa de 124 indivíduos, atacaram as
dependências da Administração Civil de São Paulo, mais o Pavilhão Prisional da
referida administração e a Companhia Indígena. O plano de Agostinho era
desferir ataques em simultâneo com dois grupos, um chefiado por ele próprio (ou
por José Carmona Adão), e outro por Paiva Domingos. O desastre, no entanto, foi
catastrófico: saldou-se numa matança para os insurgentes, que tiveram
dificuldade em se evadir. Raros sobreviveram em liberdade. Presos, torturados e
interrogados, centenas encontraram a morte no Forte de São Pedro da Barra. De
uma assentada, este antigo baluarte transformado em prisão acolheu 112
revoltosos - facto que logo gerou uma súbita acumulação de serviço, conforme se
lê num relatório da PIDE, e deu azo a não se instruírem os processos em
"moldes legais". Um belo pretexto forjado pela polícia para fazer
desaparecer tantos nacionalistas.
A
mobilização geral principiou em Novembro de 1960, sob a batuta dos chefes que se
reuniam sucessivamente em casa de uns e de outros. Os cabecilhas eram Neves
Bendinha, Domingos Manuel, Paiva Domingos da Silva, Raul Deão e Virgílio
Francisco (este último comandante do grupo que atacou a estação dos Correios,
Telégrafos e Telefones). Eles davam conhecimento de tudo ao cónego Neves. O
tecido para as fardas envergadas pelos revoltosos foi comprado na Mabílio de
Albuquerque e as catanas na casa de ferragens Castro Freire. A fim de não
levantar suspeitas, o cónego pediu a um fazendeiro amigo que as comprasse,
alegando querer distribui-las por camponeses nativos. Em depoimento que me
prestou Francisco Pedro Miguel, integrante do grupo de ataque à estação dos
Correios, disse ter ido pessoalmente buscar duas caixas com catanas àquela
empresa levando-as para a Sé Catedral onde as guardou num dos campanários. Mais
tarde, ele e Neves Bendinha retiraram-nas de lá cautelosamente para serem
limadas.
De
Léopoldville, em vão, se esperou a remessa de armas de fogo, depois que Luís
Alfredo Inglês (quadro superior da UPA) partiu para o Congo em meados de 1960,
acompanhado por Pedro César de Barros, a pedir ajuda à direcção do movimento.
Holden Roberto ignorou os apelos de Luanda. Os nacionalistas ficaram entregues
a si próprios, diante do tremendo risco de um enfrentamento com forças
superiores. Encenava-se um suicídio colectivo. Não obstante isso, conforme
testemunho de todos os sobreviventes, havia que avançar assim mesmo, com armas
brancas, sob o risco de se assistir a uma desmobilização geral e o projecto se
desmoronar."
Um texto de
Carlos Pacheco, Historiador angolano, sobre o "4 de Fevereiro".
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