sábado, 15 de dezembro de 2012

O papel do cónego Manuel das Neves



Texto Editores, Lda.

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4 de Fevereiro de 1961


Cónego. Manuel das Neves

 

É altura de falarmos do papel do cónego Manuel das Neves no 4 de Fevereiro de 1961, argumento que leva muito boa gente a atribuir a paternidade e até a exclusividade da operação à UPA.
Joaquim Pinto de Andrade, por exemplo, procurou, por um lado, justificar o 4 de Fevereiro de 1961 e, por outro lado, apagar o possível papel do MPLA. E para tal, fez questão de afirmar que ouvira o cónego Manuel das Neves declarar ser necessário realizar uma acção que desse brado, que galvanizasse o nacionalismo dos angolanos, como, por exemplo, assaltar cadeias para libertar presos, atacar esquadras de polícia ou tomar a rádio. Não era para fazer uma guerra e vencer, pelo que bastavam umas armas brancas, catanas e facas. E tal acção devia concretizar-se numa altura em que estivessem jornalistas estrangeiros em Angola, para que a notícia corresse mundo. Contrariando tal ponto de vista, Aníbal de Melo, dirigente do MPLA que já fora da UPA, apareceu a declarar que o sacerdote sempre aconselhara moderação e calma, afirmando não serem recomendáveis excessos, pois tudo devia ser feito pacificamente.

Segundo declarações de Mateus Sebastião Francisco, o Mateus Calumha, o cónego teria dito que «os rapazes», isto é, os membros da UPA, «vieram aqui várias vezes falar comigo e diziam que era altura de fazer barulho». O sacerdote ter-lhes-ia dito «sempre que não, porque eles não estavam preparados para isso. Mas depois correu o boato de que os presos da Casa da Reclusão iam ser transferidos para Lisboa». Então, os tais «rapazes» da UPA voltaram a ir ter com ele, dizendo: «Temos de aproveitar esta ocasião que é única, porque estão cá jornalistas estrangeiros e uma vez que vão transferir os presos para Lisboa, temos de fazer barulho.» O cónego ainda os aconselhou a não fazerem nada, mas tanto insistiram que acabou por dizer: «Olhem, meus amigos, se quiserem fazer, façam. Mas eu é que não posso assumir a responsabilidade. E fizeram mesmo», concluiu o sacerdote.

E o que diz a PIDE?



O então subdirector Porto Duarte declarou que o cónego tivera conhecimento da preparação do 4 de Fevereiro e que, embora se tivesse manifestado contrário à violência, nada fizera para a evitar, quando «bastaria a sua intervenção para não se dar o derramamento de sangue». Só que a intervenção imaginada pela polícia seria a denúncia, impensável para um nacionalista.

Entretanto, os jornais chamavam a monsenhor Manuel das Neves chefe supremo de terroristas em Angola. E iam ao ponto de afirmar que tinha armas na Sé de Luanda e que chegara a envenenar as hóstias, para assim matar os europeus que fossem comungar.

Mas para apurar a opinião do cónego Manuel das Neves e o seu papel nos acontecimentos do 4 de Fevereiro de 1961, nada melhor do que ler o que ele mesmo escreveu no Relatório que, em Fevereiro de 1961, elaborou para a direcção da UPA. Aí se diz: «Os tumultos de 4 de Fevereiro que, verdade se diga, não chegaram a ser tumultos, foram estupidamente engendrados. Peço, mesmo, licença para dizer, que deviam ser fuzilados por nós angolanos todos quantos os idealizaram, porque sabiam que daria em fracasso e, consequentemente, morte de gente em massa. Sempre disse e mantenho, que um levantamento no interior de Angola só deve ter lugar depois de eclodirem as esperadas operações de fronteira. De contrário [...] será contar com sapatos de defunto. Angola não é o Congo ou o Gana. Aqui tudo é diferente. Temos pela frente um inimigo que não perdoa, porque joga a sua própria sobrevivência [...].

Pergunto: Por que carga de água se lembraram de atacar as cadeias? Não teriam sido mais úteis se atacassem os quartéis e dominassem a cidade? E [...] não viram que, com catanas, seria impossível dominar a polícia, armada com pistolas automáticas e metralhadoras de campanha?

O assalto à Casa da Reclusão foi um fracasso de tal ordem, que basta dizer-lhes que um soldado preto e um furriel mestiço de nome Cícero bastaram para dominar a situação. Isto depois de alertados, posto que os assaltantes mataram a sentinela e um sargento mestiço, que se encontrava de serviço. Depois foi o que se viu. Desorganização, acabando por ser capturados nas barrocas, em pleno dia, pelos cães que acompanhavam os pára-quedistas. E outros foram capturados pela tarde e noite dentro, à medida que iam saindo dos canos de esgoto que vão vazar às barrocas.

Na 4.ª Esquadra e na Cadeia de S. Paulo outro fracasso.

Depois, no dia do enterro, nova bronca. Nesta altura, todos os brancos mataram africanos a seu bel-prazer. Até os mais pacíficos foram atingidos. Morreram sete agentes da ordem ao todo. Ao passo que, do lado angolano, foram mortos 534, ficaram feridos 672 e foram feitas 950 prisões. E continua. O sistema é bloquearem, de madrugada, um bairro e, pela manhã, efectuarem buscas e fazerem prisões.»

Conhecidos os nomes constantes dos arquivos da Polícia sobre os participantes no 4 de Fevereiro de 1961, apenas nos resta assinalar que as informações do sacerdote pecam pelo exagero no número de mortos, feridos e presos «do lado dos angolanos», isto é, dos participantes na acção.


Outro tipo de influências



Resta-nos falar de um outro tipo de influências, não políticas, mas fetichistas e religiosas. O quimbandeiro Augusto, aquele mesmo que reverenciava a bandeira vermelha com uma estrela de cinco ou oito pontas, terá dito a Raul Deião que era sobrinho de Simão Toco. E que vivera em Luanda até aos 11 anos.

Seria, pois, um tocoista ou membro da seita da «Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo em África», fundada por seu tio, Simão Gonçalves Toco. O tocoismo inspirava-se na Bíblia, principalmente no Velho Testamento, de que fazia uma interpretação literal. E era um sincretismo do evangelismo baptista (em que Toco fora educado), do quibanjismo (simbiose místico-religiosa criada por Simão Quimbango, um natural do Congo belga educado no protestantismo), das Testemunhas de Jeová e de certos elementos das religiões tradicionais africanas. Era, pois, uma amálgama das religiões e crenças com que Simão Toco contactara.

«Fixara uma simbologia», em que ressaltava uma «estrela branca de forma variável, de oito ou cinco pontas, sobre um fundo vermelho». E «era conhecida a realização de reuniões tocoístas com manifestações feiticistas». Simbologia e manifestações fetichistas que claramente se evidenciaram nas cerimónias realizadas na «preparação» dos assaltos do 4 e 11 de Fevereiro. O tocoismo recusava o colonialismo, embora não advogasse a ruptura política com o regime e até aparentasse uma postura de obediência às autoridades.

A UPA terá procurado «neutralizar a acção de Simão Toco por uma persistente acção de descrédito», o que se podia atribuir ao facto de o tocoismo recomendar que se não filiassem nesta organização, «nem em qualquer outro partido político, que não fosse verdadeiramente cristão».

Significado e importância do 4 de fevereiro


Na opinião do cónego Manuel das Neves, a operação do 4 e 11 de Fevereiro teria sido um rotundo fracasso. Umas dezenas de homens, bastante desorganizados e mal armados, a investir contra bastiões do colonialismo. Da primeira vez, uma dezena de mortos e uma dezena de feridos. Da segunda vez, dezenas de mortos e feridos. E muitas dezenas de presos, sem que tenham sequer sido alcançados os objectivos imediatos, pois não foi libertado nenhum preso e apenas obtiveram meia dúzia de armas.

No entanto, a reacção dos dirigentes do regime colonial e da sua propaganda dá-nos a chave para a compreensão do significado e da importância do acontecimento. «Um movimento vindo do estrangeiro» ou «uma conspiração internacional», nas palavras do governador-geral de Angola, Silva Tavares.

Mas não foi um movimento vindo do estrangeiro. Foram angolanos, na sua maioria jovens, a levantarem-se contra o colonialismo português. Queriam libertar os seus e obter armas para lutar contra o colonialismo, pela independência nacional. E apesar de mal armados, até estavam dispostos a arriscar a vida, mesmo que ingenuamente convencidos da invulnerabilidade dada por uma mistela que lhes tinham dado a beber.

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