quinta-feira, 11 de outubro de 2012

“Machel assumiu um cariz autoritário”

“Machel assumiu um cariz autoritário”

Luís Cabaço, antigo ministro de Informação do governo de Samora Machel, reconhece hoje que ao longo da revolução, a Frelimo cometeu vários erros, um dos quais a “operação produção”
José Luís Cabaço foi convida­do, na última segunda-feira, pela Universidade Politécnica para proferir uma palestra su­bordinada ao tema “Discursos e Imagens de Samora Machel em tempos de Mudanças”, onde logi­camente falou da história recente do país. À margem dessa palestra, aceitou conceder uma entrevista ao “O País” onde, o antigo jorna­lista, activista político e ministro de Informação do governo de Sa­mora Machel, fala da sua exeperi­ência revolucionária vivida na Fre­limo. Primeiro, como movimento libertador e, depois, como força dirigente do Estado.
Nesta entrevista e longe da po­lítica activa da qual se desligou há 19 anos, Cabaço diz estar magoa­do com algumas forças externas que procuram a todo custo dene­grir a imagem de Samora Machel e do seu legado. A título de exem­plo, Cabaço diz que há “portu­gueses retornados” que estão en­volvidos nessa campanha negra contra o fundador da nação.
Para além dos retornados, Ca­baço critica as declarações do pri­meiro embaixador soviético em Moçambique, Piotr Evsiukov, que publicou um livro sobre a sua experiência em Moçambique no qual acusa Samora de se ter com­portado como Staline em relação à população branca portuguesa. Tem a palavra José Luís Cabaço.
Dr. Cabaço,...a figura de Sa­mora continua a suscitar acesos debates nos círculos académi­cos. Para uns, ele foi um ver­dadeiro herói que defendeu a causa do seu povo até às últimas consequências. Mas há outros que acham que Samora não pas­sava de um “papagaio” que se limitava a ler discursos que não eram por ele escritos...
Não é verdade que as pessoas tenham pensado assim antes. A verdade é que a partir de um determinado momento, quan­do houve intenção de denegrir a personalidade carismática de Samora, esse discurso começou aparecer.
Na sua opinião, quem está por detrás dessas campanhas negras contra a figura do presi­dente Samora...?
Não sei quem são as pessoas que lançam esses boatos. Não há dúvida de que é uma acção orga­nizada. É um discurso que tem eco numa contestação à figu­ra de Samora e aos valores que este representa. Sei que é uma história com vinculação interna­cional que muitos “portugueses retornados” estão associados. Os primeiros grandes detratores de Samora foram os “portugueses retornados” que pelos vistos vol­taram à carga.
Acha que existe uma acção de­liberada de deturpar a obra de Samora?
Sem dúvida alguma. Esse Sa­mora que tem sido veiculado por aí não tem nada a ver com a vida e obra de Samora.
Trabalhou com ele. Como era Samora?
Samora é o fundador de Mo­çambique, da mesma forma que, Mondlane foi o fundador da Fre­limo e da unidade nacional. Esta é uma marca indelével da sua exiestência e vida. Pessoalmente, Samora foi a pessoa mais intu­siasmante e decisiva que conhe­ci na vida. Foi a pessoa que mais influência exerceu sobre mim


“Embaixador da ex-URSS em Maputo era um idiota”
Esse Samora bom que nos descreve não é partilhado por muitos. Há sectores, principal­mente na academia, que põem em causa a obra de Samora.
Por exemplo, que acham que Samora foi um ditador e autori­tário....
Primeiro, é preciso contextua­lizar o tempo em que Samora go­vernou este país. Foi num perío­do de guerra e bastante difícil. Eu diria que era uma imagem autoritária. Diria que não tanto a imagem do tirano ou ditador, mas sim do autoritário. Nos últi­mos dois ou três anos da sua vida e com o agravamento da guerra, exigiu da parte de Samora uma modificação dos métodos do seu trabalho que eram essencial­mente de estimular o trabalho colectivo. Apartir desse momen­to, Samora começou a não ter tempo para o colectivo e foi to­mando decisões intempestivas e imediatistas que foram assumin­do um cariz autoritário.
Uma das medidas mais mar­cantes na governação de Samora Machel foi, sem dúvida, a “ope­ração produção”, cujo objectivo oficial era de levar pessoas tidas como desempregadas e delin­quentes pelos líderes da revolu­ção para centros de reeducação localizados nas províncias de Niassa e Cabo Delgado, mas que acabou sendo uma tragédia. Quase 30 anos depois, qual é a análise que faz desta acção...
Eu acho que foi um grande erro. A “operação produção” foi um exemplo de procurar resol­ver um problema através de uma forma errada de materializar esse objectivo. Era uma opera­ção extremamente delicada que teria exigido grande preparação. Foi um grande erro.
Na ocasião era ministro. Teve oportunidade para expôr a sua ideia sobre a mesma?
Sob essa questão não. Tive oportunidade de expôr as minhas opiniões sobre outras questões. Havia o centralismo democrático e nós tínhamos direito a emitir as nossas opiniões no partido. Se eu discuti alguma questão foi no partido do que no governo.
O primeiro embaixador sovi­ético em Moçambique, Piotr Ev­siukov, publicou um livro sobre a sua experiência em Moçambi­que no qual acusa Samora de se ter comportado como Staline em relação à população branca portuguesa:
Não concordo com a visão dele. Conheço bem esse embai­xador. Aliás, contei uma história dele num prefácio de um livro que escrevi sobre a biografia de Samora. Devo dizer que Samora tratava-o com bastante respidez por causa do seu comportamen­to discutível. As declarações dele mostram de facto que era um idiota. O problema era em torno do tratamento a dar à situação rodesiana ou sul-africana. E nós tratamos de resolver esse proble­ma no primeiro momento, onde deixamos claro quem estava no poder. Logicamente, os brancos que estavam no poder não gosta­ram de ser desalojados.
Mas, a história reza que a Fre­limo tratou muito mal os bran­cos que estavam em Moçambi­que nos primeiros anos após a independência....
Não é verdade. Os portugueses abandonaram o país porque não aguentaram com a nova realidade.
E a famosa medida 20/24 que consistia em expulsar brancos num espaço de 24 horas com apenas 20 kg de bagagem?
Foram casos pontuais. Quan­tas pessoas foram expulsas....? 100, 200, 1000? não foram ex­pulsas. A grande maioria fugiu porque não aceitou o novo go­verno liderado pela Frelimo.
Acha que a história um dia vai absolver Samora Machel e a Fre­limo pelos erros do passado?
Samora e a Frelimo comete­ram erros. Isso é indiscutível. Mas os erros foram também cometidos depois de Samora. Qualquer governo comete er­ros. Se há um grande sucesso na vida de Samora foi a derrota do colonialismo e a instalação da independência. Por isso, Sa­mora e a Frelimo não têm por que serem absolvidos. Quem deve ser absolvido pela história são os portugueses que a devem compreender realmente.
Depois da morte de Samora, o Dr. abandonou a política acti­va. Porquê?
Samora morreu em 1986 e eu abandonei a política cinco anos mais tarde, portanto, quando fiz 50 anos. Achei que tinha de­sempenhado as funções que de­sempenhei no país, no partido e no governo, por uma questão conjuntural, pois vínhamos de uma situação de grandes desi­quilíbrios na altura da indepen­dência e havia necessidade de pessoas como eu ocuparem essas funções. Quando chegamos em 1991, vi que o país já tinha mui­tos quadros com experiência e, portanto, achei que ficar no po­der era ocupar um lugar por ve­terania, já não me competia.
Há quem diga que o Dr. Ca­baço, juntamente com a equipa base do governo da Frelimo, constituida por brancos, cane­cos e mulatos (...) abandonou a política activa por não concor­dar com o novo modelo de go­vernação que estava a nascer, ou seja, não quis trair a consci­ência. é verdade?
É mentira. Primeiro dentro da Frelimo não havia grupo Caba­ço. O meu grupo era do secreta­riado do Comité Central e fui o único que sai na altura. Foi uma decisão absolutamente pessoal e tomada de acordo com a mi­nha consciência. O dr. Rebelo e outros continuam no Comité Central e isso é fazer política activa. Continuo membro da Frelimo e não tenho problemas com ninguém. Nunca fui margi­nalizado dentro da Frelimo por ser branco.

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