Jean-Claude de Bastos de Morais foi ontem libertado da prisão de Viana, tomando directamente um voo para o Dubai, depois de, segundo comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR), terem sido recuperados 3.350 milhões de dólares que se encontravam debaixo da sua gestão no Fundo Soberano de Angola.
Manuel António Paulo, antigo director-geral do Conselho Nacional de Carregadores, devolveu os cerca de 60.000 dólares que foi acusado de receber indevidamente, sendo um dos arguidos acusados de vários crimes no processo n.º 23/18, que tem como principal figura o antigo ministro dos Transportes Augusto Tomás. Está acusado e preso no seu domicílio. Manuel Paulo tem um “pacemaker” no coração e há um ano que está interdito de se ausentar do país para fazer a revisão médica.
Duas situações idênticas, um tratamento diferenciado. Em Angola não são todos iguais perante a lei. A justiça não está a ser aplicada de modo equitativo e de acordo com os ditames constitucionais.
Uma boa reputação demora anos a construir e minutos a destruir.
O caminho que João Lourenço estava a traçar no sentido de credibilizar a justiça e de manter um verdadeiro combate contra a corrupção esboroou-se por completo nos minutos que da viagem de Jean-Claude para o Aeroporto 4 de Fevereiro, para entrar no jacto e rumar aos Emirados. Não adianta continuar a proferir discursos sobre a luta contra a corrupção e a independência dos órgãos judiciários, quando a prática se lhes opões completamente.
Em termos judiciais, nunca saberemos se Jean-Claude Bastos de Morais é culpado ou inocente. Se a sua prisão preventiva teve justificação legal ou se foi apenas uma forma de chantagem para recuperar o dinheiro que ele tinha sob sua gestão. Não é assim que se faz a justiça.
Em Angola, o Ministério Público está sujeito à Constituição, a qual determina, no seu artigo 185.º, n. 2 a “vinculação a critérios de legalidade e objectividade”. Significa isto que é dentro do quadro legal criminal que o Ministério Público tem de actuar. Se tem conhecimento da prática de um crime, é obrigado a prosseguir a investigação e fechá-la, acusando os suspeitos ou arquivando o processo por falta de provas ou por qualquer outra razão prevista na lei. Deixar cair processos ou chegar a acordos não faz parte da lei angolana.
A lei não permite que se extingam os procedimentos criminais em relação aos quais Jean-Claude estava a ser investigado mediante a devolução das verbas.
Não é assim em todos os países. Por exemplo, no actual Código Penal português, em crimes contra o património, o artigo 206.º, n.º 1 dispõe: “1 – Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1, na alínea a) do n.º 2 do artigo 204.º e no n.º 4 do artigo 205.º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa ou do animal furtados ou ilegitimamente apropriados ou reparação integral dos prejuízos causados.”
Note-se que esta extinção está sujeita a várias condições e só foi introduzida no ordenamento jurídico português em 2007.
Ora, não conhecemos norma semelhante em Angola. A regra geral angolana é que a devolução gere atenuação de pena.
Isto quer dizer que a investigação deveria continuar e que, havendo provas, far-se-ia a acusação, levar-se-ia o larápio do Jean-Claude a julgamento. Caso fosse condenado, teria uma atenuação especial da pena por ter devolvido o dinheiro. Outra hipótese seria concluir que não haveria provas suficientes para o levar a julgamento e arquivar-se o processo. Num caso ou noutro, há um procedimento que tem de ser seguido. O que não pode é haver na justiça um tipo de negócio que se aplique apenas a uma pessoa.
Tecnicamente, é ainda possível raciocinar que teria sido aplicável a Jean-Claude a amnistia prevista no artigo 8.º da Lei n.º 9/18, de 26 de Junho – Lei de Repatriamento dos Recursos Financeiros. A alínea b) do n.º 1 desse artigo dispõe que o repatriamento voluntário de recursos financeiros tem como efeito a “Exclusão de toda e qualquer responsabilidade por eventuais infracções fiscais, cambiais e criminais desde que conexas com os referidos recursos.” A questão que se coloca é que esse repatriamento, para ser considerado voluntário, teria de ter sido realizado até ao final de 2018. Não parece ter sido o caso.
Em termos estritamente legais, não vislumbramos quais as normas jurídicas em que a PGR se baseou para fazer um acordo com um cidadão que estava a ser objecto de uma investigação criminal. Podem responder-nos que se trata de uma questão de “colaboração premiada”, método em voga nos Estados Unidos e no Brasil, e que nós defendemos para Angola. Contudo, a “colaboração premiada” credível envolve a intervenção de um juiz para validar o acordo e geralmente não isenta a pessoa de qualquer pena ou procedimento, em casos desta gravidade, outrossim diminui a pena manifestamente. No caso concreto, não conhecemos intervenção de qualquer juiz. Aliás, as informações de que o Maka Angola dispõe indicam que se tratou de uma negociação política, em que as autoridades judiciárias se submeteram aos ditames políticos. Acresce que não vemos quadro legal em Angola para este tipo de actuação.
Sabemos também que amanhã, 24 de Março, se esgotaria o prazo da prisão preventiva de Jean-Claude e José Filomeno dos Santos. O processo tinha de avançar para acusação ou arquivamento. O estranho é que se tenha esfumado. E pergunta-se: o que acontecerá a José Filomeno dos Santos? Ficará preso? Vai ser acusado? De quê? Os fundamentos que levam à libertação de Jean-Claude dificilmente permitem mantê-lo detido.
Por três mil milhões de dólares, João Lourenço hipotecou a sua credibilidade política e a da justiça angolana. Por um vigarista suíço? Não é assim que se constrói um Estado de Direito Democrático e se combate a corrupção.
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