Monday, March 25, 2019

REFORMAR A POLÍCIA E A MAGISTRATURA



Três notícias diferentes espelham bem os obstáculos que se colocam à efectiva reforma do Estado e ao combate da corrupção em Angola.
A primeira é a morte da cidadã Juliana Cafrique, de 28 anos, perpetrada por um agente da Polícia Nacional no Bairro Rocha Pinto, e que tem sido amplamente divulgada.
O comandante-geral da Polícia Nacional já pediu desculpas e reconheceu que a polícia não pode agir desta forma. Na fotografia principal vêem-se colegas de Juliana Cafrique em lamento e protesto.
Contudo, sabemos bem que a agressividade mortífera da polícia não se resume a um caso isolado. É uma prática institucionalizada. Basta relembrar os fuzilamentos levados a cabo por agentes do SIC. A verdade é que pouco ou nada tem sido feito para investigar essas denúncias e, sobretudo, para mudar as práticas de actuação das autoridades policiais.
E aqui passamos à segunda notícia relevante. O Departamento de Estado dos Estados Unidos da América emitiu o seu relatório anual sobre os Direitos Humanos em Angola. Na perspectiva norte-americana, muito falta para Angola alcançar um desempenho aceitável. Destacamos uma frase-chave na análise: “O governo tomou algumas medidas para processar ou punir funcionários que cometeram abusos; no entanto, a fiscalização é limitada, devido à falta de mecanismos de checks and balances [verificação e controlo], à falta de capacidade institucional, à cultura de impunidade e corrupção generalizada do governo.”
Quer isto dizer que, da perspectiva norte-americana, houve um bom arranque, mas há todo o processo reformista global para encetar, sem o qual o combate à corrupção terá efeitos irrisórios e será reduzido a dois ou três casos isolados.
A terceira e última notícia tem a ver com a inauguração do ano judicial por João Lourenço, no Lobito. A cerimónia decorreu sob o lema “Pela independência do poder judicial e a autonomia administrativa, financeira e patrimonial dos tribunais”.
O que há de comum nestas três notícias é o foco nas instituições e na vontade colectiva de levar por diante a luta contra a corrupção e pela reforma do Estado. Dito de outro modo, não basta João Lourenço ter vontade: é necessário que as instituições funcionem e direccionem a vontade reformista para o caminho certo.
Comecemos pela polícia e pelo assassinato de Juliana Cafrique. Não é suficiente pedir desculpas, punir o responsável e indemnizar a família. Estes são os procedimentos óbvios e obrigatórios após os acontecimentos funestos.
Juliana Cafrique
É fundamental inaugurar uma reforma da instituição policial. No regime de José Eduardo dos Santos, a Polícia Nacional era um instrumento do poder que servia para amedrontar o povo e mantê-lo longe do poder. Era uma polícia contra o povo. Não se vislumbra razão para esta cultura continuar. A polícia, numa sociedade moderna e democrática, é um garante de cidadania. Serve o povo, e a sua primeira função é proteger o cidadão (não o poder político) e garantir que todos vivem com liberdade, tranquilidade e paz. Ora, é neste paradigma cidadão que tem de entrar a polícia. Para isso, tem de ser reformada. A morte de Juliana Cafrique às mãos da polícia – mais uma – deve servir de incentivo para que, finalmente, o poder perceba que tem de mudar esta Polícia Nacional, se quer realmente firmar Angola como um Estado de Direito democrático.
A mudança na polícia liga-se à mudança na magistratura. Tal como as autoridades policiais, a magistratura foi, nestes últimos 40 anos, um instrumento do regime para garantir a repressão e o controlo do povo. Aliás, é isso mesmo que o relatório do Departamento de Estado norte-americano tem implícito. As instituições angolanas não se controlam e não se equilibram mutuamente. Estão organizadas para serem correias de transmissão de um chefe.
Nas páginas do Maka Angola relatámos inúmeros casos de injustiças praticadas por juízes (ver aqui aqui, por exemplo).
Consequentemente, tendo sido os magistrados um instrumento tenaz de um regime ditatorial e corrupto, não se pense que de um dia para o outro eles vislumbraram qualquer revelação damascena e se converteram em apaixonados defensores do Estado de Direito. Alguns ter-se-ão convertido, sim, tal como haverá outros demasiado envolvidos com as grandes e pequenas arbitrariedades e negociatas do regime, de modo que dificilmente exercerão as suas funções com independência. Hoje, em Angola, a independência da magistratura passa também pela sua reforma.
Designadamente, é necessária uma investigação dos juízes que acumularam ilegalmente funções, produziram sentenças contra lei expressa, entraram em negócios obscuros. Todos estes devem ser afastados da magistratura. Ao mesmo tempo, é imperativo actualizar a formação de magistrados e fazer entrar ao serviço do país um novo corpo renovado de juízes, em que os valores da democracia, da defesa dos direitos fundamentais e da justiça preponderem. Não é imaginável um poder judiciário independente sem se proceder a uma profunda remodelação do sistema.
Além da reforma das instituições, neste caso, das polícias e da magistratura, com vista a fazê-las entrar num paradigma de cidadania, liberdade e democracia, é necessário também reformar as suas ligações, precisamente no sentido de criar mecanismos de controlo mútuo. Os chamados checks and balances. Os vários órgãos do Estado devem saber que estão sujeitos a controlos por parte de outros órgãos e poderes, não havendo a possibilidade de algum deles agir sem qualquer fiscalização, que, em última instância, cabe sempre ao povo.
É esta cultura de cidadania, democracia e controlo de poder que tem de ser introduzida nas várias instituições do Estado em Angola.
Napoleão uma vez disse que o seu maior legado ao mundo não foram as vitórias militares, mas o Código Civil. De João Lourenço, espera-se que o seu maior legado não seja a luta contra alguns corruptos, mas a verdadeira instauração de um Estado de Direito e Cidadania em Angola.
Paz à alma de Juliana Cafrique.
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