RITOS RETRÓGRADOS II
“DOS SECRETISMOS ABSURDOS”
A) UM CÓDIGO OBSOLETO
A instrução preparatória é secreta. É como define o nosso Código de Processo Penal (CPP) o carácter da primeira fase de um longo processo de averiguação da imputabilidade dos agentes de determinada infracção criminal (art. 70 CPP). Sim, é mesmo isso que a lei moçambicana determina. Mas por assim ser, não quer isso significar que se trata de uma verdade absoluta incontestável. O processo penal que vigora em moçambique está em vigor desde 1929 (com significativas alterações em 1931, 1945, 1954, 1971 e 1975), pelo que, volvidos mais de 90 anos da sua vigência, alterações ao sobredito regime justificam-se.
B)DA PRETENSA XENOFILIA
O processo das “Dívidas Ocultas” lançam um grande desafio à justiça moçambicana. Trata-se de um processo que pela sua magnitude, faz-nos reflectir sobre alguns ritos e procedimentos. A xenofilia é o antónimo de xenofobia, que, por sua vez, significa a tendência de dar mais valor ao que é estrangeiro em detrimento do nacional. Quando publiquei o meu artigo “JUSTIÇA RETRÓGRADA (I)”, pessoas avisadas da área jurídica, em inbox (outros até mesmo indirectamente nalguns debates televisivo) chamaram-me de xenófilo, porque criticava o nosso sistema de justiça tal qual ele se apresenta hodiernamente. Num mundo globalizado como o de hoje é praticamente impossível fazermos uma análise de que quer se seja sem nos socorrermos da realidade estrangeira. É mesmo por isso que não me importarei com essas adjectivações enquanto não me conformar com algumas coisas que, para mim, pessoalmente não fazem o menor sentido, por se tratar apenas de formalidades que apenas visam, só e somente a elitização de uma certa classe de profissionais.
C) JÁ ESTAMOS INDEPENDENTES DE PORTUGAL
Sem visar voltar ao debate sobre xenofobias e xenofilias, permitam-me voltar um pouco ao Kempton Park e analisar o rito do PRIMEIRO INTERROGATÓRIO na África do Sul e em Moçambique. Assistimos há pouco que em Kempton Park, não só o público teve acesso livre à sala de audiências, como a imprensa teve o mesmo privilégio. A situação prisional do nosso concidadão Manuel Chang foi decidida publicamente. Em Moçambique, ainda em curso um primeiro interrogatório, por motivos similares, deverá ser decidida secretamente. Aqueles que não concordam com a discussão que agora levanto irão, certamente, argumentar que em Portugal também é igualmente secreto. O facto de ambos países terem regimes similares não significa isso que seja o caminho mais acertado para as audiências de primeiro interrogatório judicial.
D) AUSÊNCIA DE FUNDAMENTO PARA “INTERROGATÓRIOS ENCRIPTADOS”
Antes mesmo de avançarmos para conclusões, precisamos saber ao certo, o que visa a Audiência do Primeiro Interrogatório. O nosso código de processo determina que esta audiência visa essencialmente saber se a prisão foi feita de forma legalmente admissível e analisar a melhor medida de coacção que se deve aplicar ao detido. Apenas isso.
A minha questão é: O que é que faz com que o primeiro interrogatório deva, em Moçambique ser secreto? Alguns dirão que os elementos do processo em investigação não devem ser tornados públicos. Até aí posso concordar. Mas o secretismo protegido no processo não deverá colidir com os demais direitos constitucionalmente protegidos (direito à informação e a segurança dos cidadãos). Quando acompanhamos a audiência do Primeiro Interrogatório em Kempton Park, ninguém se indignou pelo facto de ter sido permitida a presença do público e da imprensa na audiência, isto porque, sem quebrar o sigilo processual do processo (salva a tautologia) que corre em Nova York, os magistrados foram capazes de decidir a legalidade da prisão e a medida de caução ao cidadão Manuel Chang em primeira instância sem, de algum modo, ferir os direitos constitucionais do arguido. Ora, porque é que em Moçambique as audiências de Primeiro Interrogatório devem ser à portas encriptadas? Das duas situações, qual delas deve ser considerada mais perigosa para aplicação da justiça criminal naquela fase processual? Com apenas 5 pessoas presentes ou quando temos mais de 50 pessoas escrutinando a imparcialidade dos magistrados?
A minha questão é: O que é que faz com que o primeiro interrogatório deva, em Moçambique ser secreto? Alguns dirão que os elementos do processo em investigação não devem ser tornados públicos. Até aí posso concordar. Mas o secretismo protegido no processo não deverá colidir com os demais direitos constitucionalmente protegidos (direito à informação e a segurança dos cidadãos). Quando acompanhamos a audiência do Primeiro Interrogatório em Kempton Park, ninguém se indignou pelo facto de ter sido permitida a presença do público e da imprensa na audiência, isto porque, sem quebrar o sigilo processual do processo (salva a tautologia) que corre em Nova York, os magistrados foram capazes de decidir a legalidade da prisão e a medida de caução ao cidadão Manuel Chang em primeira instância sem, de algum modo, ferir os direitos constitucionais do arguido. Ora, porque é que em Moçambique as audiências de Primeiro Interrogatório devem ser à portas encriptadas? Das duas situações, qual delas deve ser considerada mais perigosa para aplicação da justiça criminal naquela fase processual? Com apenas 5 pessoas presentes ou quando temos mais de 50 pessoas escrutinando a imparcialidade dos magistrados?
E) INTERROGAÓRIO JUDICIAL E O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO
O Primeiro Interrogatório judicial tem duas fases essenciais que são: (1) Leitura dos papeis que chegam ao juiz; (2) perguntar ao indiciado o que tem à dizer sobre os papeis que estão nas mãos do juiz. Apenas isso. Sinceramente não vejo motivo pelo qual o cidadão não possa testemunhar algo tão trivial como isso. Sem desrespeitar a posição aflitiva dos indiciados naquela fase do processo, mas temos de perceber que quando somos detidos, devemos ter o direito de ter uma palavra sobre os motivos de que nos imputam que justificaram a nossa privação da liberdade.
Quando gritamos alto e em bom som que Moçambique é um Estado de Direito Democrático, temos de nos lembrar que esses pequenos (não tão pequenos assim) aspectos fazem parte da manifestação dos direitos dos cidadãos.
Quando gritamos alto e em bom som que Moçambique é um Estado de Direito Democrático, temos de nos lembrar que esses pequenos (não tão pequenos assim) aspectos fazem parte da manifestação dos direitos dos cidadãos.
F) O JUIZ É, IGUALMENTE, UM SER HUMANO
O juiz é humano e susceptível de erros. Abunda jurisprudência referente à erros judiciais que são corrigidos em recurso, por vezes até em imputações disciplinares aos magistrados quando a dimensão do “erro” justifica. Como é que poderá o cidadão que clama por justiça, crivar a seriedade e imparcialidade dos magistrados quando se admite que os mesmos possam se fechar em copas e decidir como bem entenderem. Não estou contra qualquer juiz, mas não posso deixar de apontar os riscos das decisões tomadas sem qualquer fiscalização por parte do Estado Colectividade (Povo).
Como tentei deixar claro à cima, este artigo não visa analisar o processo do dia, mas analisar de forma crítica o sistema processual penal de que estamos todos comprometidos por via da Constituição e da legislação penal.
Como tentei deixar claro à cima, este artigo não visa analisar o processo do dia, mas analisar de forma crítica o sistema processual penal de que estamos todos comprometidos por via da Constituição e da legislação penal.
G) MINISTÉRIO PÚBLICO VERSUS JUIZ DA INSTRUÇÃO CRIMINAL
Outra questão que me continua incomodando (desde 2013, por via do Acórdão n.º 04/CC/2013, de 17 de Setembro) neste sistema de justiça é o facto de o mesmo juiz mandar prender e, meia volta, poder ser o mesmo juiz à mandar soltar. A pergunta que coloco é, se tinha de soltar depois de ouví-lo, porque é que tinha de prender? A situação de Kempton Park não é comparável ao nosso porque, apesar de a prisão ter sido efectuada por um juiz americano e executada pela INTERPOL, as competências de um juiz de instrução nos EUA não se equiparam com as funções de um juiz da instrução de Moçambique. Na América os juízes investigam na fase preparatória do processo e em Moçambique já não. O papel do Juiz da Instrução Criminal em Moçambique é apenas de garante das liberdades individuais, tendo um papel fundamentalmente passivo face à investigação efectuada pelo Ministério Público, pelo menos na fase preparatória do processo.
Em Moçambique assiste-se ainda (facto que testemunhei pessoalmente), num processo em Instrução Preparatória, que é da exclusiva direcção do Ministério Público, um juiz recusando devolver a liberdade (provisória ) de um arguido preso, mesmo quando o Director e Dono da Instrução Preparatória (o Ministério Público), entende que já não vê necessidade da continuidade da manutenção prisional do arguido. Isso é de tal modo absurdo porque, de certo modo, o juiz passa a açambarcar as competências do Ministério Público que é de tomar a direcção da instrução. Assim como assistimos em Kemton Park, a juíza não mandou prender ninguém. Ela apenas leu papeis, ouviu o acusador e o acusado, tendo posteriormente decidido.
Em Moçambique assiste-se ainda (facto que testemunhei pessoalmente), num processo em Instrução Preparatória, que é da exclusiva direcção do Ministério Público, um juiz recusando devolver a liberdade (provisória ) de um arguido preso, mesmo quando o Director e Dono da Instrução Preparatória (o Ministério Público), entende que já não vê necessidade da continuidade da manutenção prisional do arguido. Isso é de tal modo absurdo porque, de certo modo, o juiz passa a açambarcar as competências do Ministério Público que é de tomar a direcção da instrução. Assim como assistimos em Kemton Park, a juíza não mandou prender ninguém. Ela apenas leu papeis, ouviu o acusador e o acusado, tendo posteriormente decidido.
H) URGÊNCIA NA DEVOLUÇÃO DA DIGNIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
É urgente que o novo Código de Processo Penal devolva o poder que foi arrancado ao Ministério Público, que é o poder de prender fora de flagrante delito. Assim sendo, o juiz se sentirá muito menos comprometido com aquela prisão e terá melhores condições de decidir imparcialmente para não ser incoerente (prender e soltar como se os arguidos fossem meros objectos). Os magistrados do Ministério Público formam-se nas mesmas escolas que os magistrados judiciais (CFJJ), por vezes nas mesmas faculdades de direito, pelo que não se justifica o endeusamento de uns (juízes) e a remessa à insignificância dos outros (Procuradores). Por outro lado, importa que haja uma profunda reforma constitucional da posição processual do Ministério Público, adicionando-lhes o carácter da independência, tal-qualmente assistimos em realidades como Brazil e outros.
“Não se pode almejar comer omeletes sem que se tenha de quebrar alguns ovos”
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