A mais espetacular ação de sabotagem dos tempos da ditadura
24.12.2016 às 13h00
Quatro homens, um volkswagen “carocha” e uma chave copiada com recurso a uma barra de sabão. Os explosivos iam escondidos por baixo de caixas de frutas. As fardas militares que serviam de disfarce tinham sido ajustadas ao corpo pelas mulheres horas antes, numa casa alugada só para preparar a operação. Nome de código: “Águia Real”. Passavam vinte minutos das três da manhã quando tudo foi pelos ares. Foi a mais espetacular ação de sabotagem dos tempos da ditadura e aconteceu há 45 anos Neste fim de semana em que celebramos a família e nos preparamos para o ano que há de vir, o Expresso republica histórias, reportagens, conversas, narrativas, dúvidas, considerações, certezas e revelações que fizeram de 2016 um ano preenchido. Todos estes artigos são publicados tal como saíram inicialmente
Às primeiras horas do dia 8 de Março de 1971, uma sequência de mais de 20 explosões destruiu o principal hangar da Base Aérea n.º 3, em Tancos, no coração do maior polígono militar do país. No interior estavam 28 aviões e helicópteros da Força Aérea, que ficaram praticamente destruídos. A espetacular sabotagem – a maior perpetrada em território nacional contra as guerras coloniais em Angola, Moçambique e Guiné – foi conduzida por um comando clandestino da ARA, a Acção Revolucionária Armada, o braço guerrilheiro do PCP.
O audacioso comando da ARA é constituído por quatro elementos. A coordenação pertence a Raimundo Narciso, que usa normalmente o pseudónimo “Luís”, o único que está na clandestinidade. Os dois bombistas –que penetram no hangar, instalam as cargas explosivas e fazem deflagrar o sistema – são Carlos Coutinho e Ângelo de Sousa. Com os pseudónimo “Tavares” ou “Miguel”, Ângelo trabalha na própria base aérea, onde cumpre o serviço militar obrigatório. Natural de Espinho, ex- empregado bancário, 23 anos, é cabo miliciano e está a completar um curso de piloto de helicópteros ministrado por instrutores franceses.
O chefe dos operacionais é Carlos Coutinho (ou “Meneses”). Jornalista no matutino “O Século”, em Lisboa, nunca deixou de ir ao jornal, onde trabalha no arquivo a preparar biografias. Já cumprira os quatro anos de tropa, tendo passado pelo Norte de Moçambique como furriel enfermeiro. Militante do PCP desde 1969, é um veterano da ARA, tendo participado nas principais acções, começando por aquela que marcara a sua estreia: a sabotagem do Cunene, um navio de transporte de tropas atracado na doca marítima de Alcântara, em Lisboa, a 26 de outubro de 1970.
A servir de retaguarda está outro veterano da ARA, António João Eusébio. Nascido em Mértola, estucador de construção civil, também ele já malhara quatro anos na tropa, dois dos quais como soldado de uma companhia de caçadores em Angola.
A estratégica decisão do PCP de recorrer à ação armada fora tomada em 1964 pela direção no exterior, que conferira plenos poderes ao secretário-geral, Álvaro Cunhal. Raimundo Narciso fora um dos primeiros quadros contactados. “O Rogério de Carvalho convidou-me a integrar a secção de ‘Ações Especiais’, como na altura foi designada, e passei logo à clandestinidade. Frequentámos depois um curso militar em Havana e regressámos ao interior em junho de 1965. Nos primeiros tempos tratámos de arranjar depósitos e arrecadações, bem como armamento e material explosivo. A primeira ação foi em setembro ou outubro, junto a umas instalações da NATO, mas fracassou, uma vez que o executante desapareceu...”
No fim do ano, Rogério Carvalho fora preso pela PIDE, a polícia política da ditadura, que assim vibrara um rude golpe no projecto “guerrilheiro” do PCP. Durante nove meses, Narciso viu-se “desligado” da direção do partido e, quando retomou o contacto, foi retirado do interior para frequentar um curso político de um ano na Escola Superior da Komsomol (a organização juvenil do Partido Comunista da União Soviética), em Moscovo. Em 1970, porém, o projeto ganhara um renovado fôlego com a nomeação, para seu dirigente máximo, de Jaime Serra, que era, no dizer de Narciso, “um dos mais experientes e importantes dirigentes do partido”.
Nascido em 1921, Jaime Serra aderira ao PCP aos 15 anos, era então operário no Arsenal da Marinha. Funcionário clandestino desde 1947, ascendera rapidamente ao Comité Central, ao Secretariado e à Comissão Executiva do partido, onde estava desde 1963. A PIDE prendera-o quatro vezes, estivera detido cinco anos, mas fugira da cadeia por três vezes. A última fora em 1960, com Cunhal e mais oito responsáveis do partido, tendo-se refugiado durante uns tempos em casa do advogado e banqueiro Vasco Vieira de Almeida. Serra tinha como missão dirigir e ajudar a fundar a Ação Revolucionária Armada. Outro dirigente desviado para a ARA fora Francisco Miguel, o último preso português do campo de concentração do Tarrafal e um dos nomes míticos do partido. A Jaime Serra e a Francisco Miguel juntara-se ainda Raimundo Narciso, o trio do comando central da ARA, que inaugurara as suas ações de guerrilha ainda no ano de 1970, com a bem-sucedida sabotagem do navio Cunene.
A ideia de uma sabotagem idêntica, mas no coração operacional da Força Aérea, partira de Ângelo de Sousa. Militante comunista a fazer a tropa em Tancos, fora Jaime Serra quem o apresentara a Narciso. “Tudo começou com um encontro no Bairro Azul, em Lisboa”, num fim de tarde de agosto de 1970 – escreve Narciso no seu livro “ARA. A história secreta do braço armado do PCP” (Dom Quixote, 2000). Ângelo é apresentado a “Carlos”, tal é o pseudónimo de Narciso, gerando-se entre os dois uma imediata empatia.
Instruendo de piloto de helicópteros, o cabo Ângelo traz uma excelente ideia para uma possível operação da ARA. Na Base Aérea n.º 3, explica, os aviões e helicópteros ficam quase todos guardados ao fim de semana nos dois hangares. Como um deles entrara em obras, agora ficam todos amontoados num único. A ideia é penetrar no hangar durante a noite e fazer explodir todos os aviões e helicópteros de uma assentada. Coloca-se o problema de como entrar no hangar. O cabo traz a solução. É sabido que muitos oficiais vão de noite, às escondidas, roubar gasolina aos depósitos das aeronaves para abastecerem os seus próprios automóveis, para o que contam com a cumplicidade do cabo quarteleiro, que lhes empresta a chave da porta traseira do armazém. “Portanto, se os oficiais faziam isso, também nós lá podíamos entrar e, em vez de tirar gasolina, que até dava prejuízo à fazenda nacional, púnhamos umas cargas explosivas para mandar pelo ar os helicópteros e os aviões que estavam adstritos ao treino de pilotos para a guerra colonial”, justifica Narciso. Ângelo não tem dificuldade em arranjar a chave que dá acesso ao hangar e entrega-a a Narciso, que trata de fazer uma cópia perfeita a partir de um molde numa barra de sabão amolecido.
“Águia Real” é a designação dada ao plano, aprovada pelo comando central da ARA. Os testes e ensaios decorrem num paiol no Oeste, próximo de Torres Vedras, e numa vivenda habitada por Narciso, em Fresca (Arruda dos Vinhos). A parte técnica fica a cargo do próprio Narciso, da mulher (Maria) e de Francisco Miguel. As 20 pilhas de 4,5 volts, que servirão de bateria, são compradas por um outro quadro da ARA, António Pedro Ferreira, no supermercado Pão de Açúcar, em Alcântara. Para ligar todos os 26 detonadores a outras tantas cargas explosivas e incendiárias recorre-se a 200 metros de fio eléctrico. O grupo cuida ainda do fabrico das bombas artesanais, a partir de trotil e outros produtos químicos, quase sempre roubados ao próprio exército.
Numa das vezes que voltam do laboratório, Narciso leva consigo um saco cheio de trotil. Ao descer da camioneta, com o embaraço de ter as mãos ocupadas com a filha Leonor, mais os sacos de couves, laranjas e trotil, um polícia que está na paragem tenta ajudá-lo. Narciso começa por recusar, com receio que o homem descubra o saco dos explosivos. “Mas depois lá me lembrei que o melhor era não levantar suspeitas e passei-lhe o saco com trotil. Foi assim que até fomos ajudados pela polícia!”
Com falta de meios, nomeadamente fios eléctricos, o grupo teve de ser engenhoso nos preparativos do atentados, recorda ao Expresso Raimundo Narciso.
A segurança de Ângelo obriga a que não mais volte a Tancos depois da operação. Durante uns tempos, até que seja possível fazê-lo sair do país, ficará escondido numa casa em Lisboa. A escolha recai num apartamento alugado de uma das torres do cruzamento da avenida dos EUA com a de Roma. Igualmente alugado é o carro que transportará o comando e os explosivos até ao interior da base aérea. Trata-se de um vulgaríssimo Volkswagen “carocha”, que Narciso levanta numa empresa de rent-a-car com um bilhete de identidade e uma carta de condução falsificados. Ao volante do “carocha”, Narciso vai até à Praça de Espanha, em Lisboa, onde pega Coutinho, para ambos se familiarizarem com a viatura, que ficará temporariamente escondida numa garagem em Belém. Ao passarem na rotunda de Alcântara deparam com uma operação stop, com polícia de choque e cães, mas escapam milagrosamente à fiscalização. “Ainda dissemos umas graçolas... Os polícias devem ter percebido quem nós éramos e quiseram colaborar” – ironiza Narciso.
A operação é agendada para a madrugada de 8 de março, dois dias depois de o PCP celebrar meio século de vida. Ao fim da tarde de 7, o grupo concentra-se no apartamento da Av. dos EUA. Carlos Coutinho e António Eusébio entram voluntariamente de olhos fechados – para que não saibam da localização da casa e não a possam revelar no caso de serem presos. No interior, onde todas as portadas estão fechadas, procede-se ao derradeiro teste do improvisado e engenhoso mecanismo eléctrico. “Era uma sala arredondada e, como estava na Avenida dos Estados Unidos, o Ângelo baptizou-a logo de ‘sala oval’”, conta Narciso, que se pauta como o verdadeiro cérebro da ARA. O material é manuseado com luvas de borracha, para evitar as impressões digitais. Depois do jantar juntam-se aos quatro operacionais Francisco Miguel e Jaime Serra. Com este vem a mulher de Coutinho, Antonieta, também de olhos fechados, e que, com uma agulha, linha e dedal, ajusta a farda a ser vestida por Eusébio.
Conforme o planeado, o comando sai do apartamento às 21h30. Numa rua próxima encontram-se dois carros com os depósitos convenientemente atestados. Narciso é quem conduz o Volkswagen “carocha”, com Eusébio a seu lado, enquanto Coutinho segue na sua própria viatura, um Opel Olympia de cor verde que já havia utilizado noutras ações, acompanhado de Ângelo. Na bagageira, o material vai escondido sob caixas de fruta. “À saída de Lisboa, nas antigas portagens da Portela de Sacavém, deparámos com um enorme dispositivo policial, que nos mandou parar e encostar”, recorda Carlos Coutinho. “Tanta fruta na mala do carro espantou os polícias.” O sangue-frio do guerrilheiro é posto à prova. “Olhe, são boas, aproveite! Não quer uma?”, propõe a um agente. A pergunta, que tem uma resposta negativa regulamentar, serve para aliviar a tensão. Encerrada a mala do carro, o polícia passa a Coutinho – e a Narciso – um papel manuscrito, que serve de salvo-conduto para outras operações stop com que possam deparar no percurso de cerca de 130 quilómetros até ao destino.
A versão de Narciso não é coincidente: este controlo policial ocorrera alguns dias antes, quando fora levantar o “carocha” e viajara na companhia de Coutinho pela avenida Marginal, até Belém.
A autoestrada é curta e termina logo ali em Vila Franca de Xira. Segue-se a lenta estrada nacional, por Santarém e Chamusca. Já perto de Tancos, param para trocar de carros. Coutinho e Eusébio vestem as fardas emprestadas que lhes servirão de disfarce. O jornalista Coutinho vai de tenente, o estucador Eusébio de soldado, enquanto Ângelo é o único que enverga a sua própria farda, de cabo da Força Aérea Portuguesa.
Coordenador da ação, Narciso tem ordens precisas para não se aproximar do alvo. Após uma breve despedida e desejos de sucesso e sorte, volta para trás no Opel verde, até à estação da CP de Santarém, ponto de encontro após a operação.
Já fardados, os três tornam à estrada no “carro do povo” alugado, rumo à Base Aérea n.º 3. É quase meia-noite quando chegam à Porta de Armas, coincidindo com o regresso de muitos militares à base, vindos seja de fim de semana, seja de uma sessão de cinema no vizinho aquartelamento de Santa Margarida. Homem da casa, o cabo Ângelo faz sinal à sentinela. Explica que os amigos são dois camaradas da base aérea da Ota – como o comprova um dístico colado no para-brisas do carro. “Vieram trazer-me e vamos ali ao bar do quartel beber um copo, antes de se irem embora.” Habituado a este tipo de convívio e sem razões para desconfiar do cabo Ângelo, “o sargento bateu a pala e deu ordens para o soldado levantar a cancela”. Ao suposto tenente Coutinho, o elemento do trio de mais alta patente, o sargento faz a habitual continência, que acompanha com uma saudação: “Façam o favor de entrar”.
Chegados ao hangar n.º 2, a chave falsa porta-se à altura. Sem perda de tempo e a coberto do escuro, Coutinho e Ângelo transferem rapidamente a mercadoria da viatura para o recinto, onde se fecham para poderem trabalhar à vontade. Eusébio fica a vigiar no exterior, atrás de uns arbustos. Caso se aproxime alguém suspeito – como algum oficial que procure reabastecer-se de gasolina –, não deixará de dar um sinal sonoro para o interior.
Quarenta anos depois, muito mudou em Tancos. Desafiado pelo Expresso, Coutinho conseguiu, ainda assim, encontrar a porta por onde entraram na altura para colocar as cargas explosivas.
Está previsto que o trabalho não se prolongue por mais de uma hora. Assim que os olhos se habituam à escuridão, e com o auxílio de umas pequenas lanternas, deparam com um número de aeronaves superior ao estimado. “Fomos um bocado surpreendidos com a quantidade de aparelhos que estavam guardados. Pareciam sardinhas dentro dum caixote.” Além das obras em curso no outro hangar, uma cerimónia de juramento de bandeira, aprazado para a manhã seguinte, levara o comando da base a mandar limpar a pista, amontoando o maior número possível de aparelhos no único hangar disponível. Ao todo, estão 11 aviões e 17 helicópteros (Pumas e Halouettes). Ou seja, quase toda a frota da base, a mais importante unidade de treino de pilotos da Força Aérea para as três frentes da guerra colonial.
Ângelo e Coutinho movimentam-se com alguma dificuldade entre aviões e helicópteros, turbinas e pás, mangueiras e bidões. Um primeiro levantamento mostra-lhes que não dispõem de cargas para todos os alvos, o que obriga a uma selecção de prioridades e a uma adaptação da forma de semear as cargas explosivas e incendiárias – estas últimas destinadas a queimar o que não tiver sido destruído pelos rebentamentos. “Havia aeronaves que, pela sua importância, eram de destruição prioritária. Não estávamos à espera, por exemplo, de encontrar um Puma, um helicóptero gigante, que tinha de levar três cargas: uma no coração, que o deixava aniquilado para sempre, e outra em cada uma das duas turbinas”, explica Coutinho. “A distribuição foi calculada de forma a que cada carga desse para atingir duas aeronaves. Se um avião estivesse encostado a um helicóptero, púnhamos uma carga que rebentasse num ponto-chave deste, mas também apanhasse o depósito do avião e provocasse um incêndio.” O sistema de detonação é prudentemente duplo: “Se um não funcionasse, funcionava o outro”.
As bombas são direcionadas de modo a produzir “o menor impacto possível” numa caserna contígua ao hangar, onde dormem numerosos soldados. “O momento mais delicado e perigoso foi o da ligação das cargas às pilhas”, detalha Narciso; “se algo falhasse explodiria tudo, ceifando os dois”. Mas tudo corre pelos ajustes. O sistema é regulado para ser acionado através de um relógio quando forem 3h45 – mas o relatório da Aeronáutica regista que a explosão ocorreu 25 minutos antes, às 3h20. A última tarefa é armadilhar a porta do hangar, para o caso de alguém tentar entrar antes da hora marcada. “Caso isso acontecesse, todo o dispositivo seria acionado, sem que isso ferisse quem, por azar, abrisse a porta”, conta Carlos Coutinho.
À saída têm à sua espera um Eusébio ainda mais ansioso que eles. “Fartaram-se de fazer barulho” – protesta, nervoso. Foram várias as vezes que o vigilante estremecera, ao ver militares aproximarem-se da porta ou ao ouvir conversas próximas. A certa altura acabou mesmo por se mostrar, com receio que alguém quisesse penetrar no hangar e tudo comprometesse. O caminho inverso, no interior da base, é feito rapidamente. A saída pela mesma porta de armas, à uma da manhã, não desperta qualquer desconfiança. Obrigado, boa-noite, continência…
Em Santarém, Narciso está em pulgas. Haviam combinado o encontro para pouco depois da meia-noite e já lá vai uma boa hora e meia. “Esperei, esperei, esperei. Tinha ordens para só esperar meia hora – mais do que isso poderia significar que teriam sido presos e depois apanhavam-me também a mim. Cheguei a rezar à nossa senhora do Ó, a padroeira da minha terra...” É com alívio que vê o já familiar Volkswagen finalmente a aproximar-se.
Depois de umas brevíssimas explicações, dando como bem-sucedida a operação, voltam a trocar de viaturas. Ângelo senta-se no Volkswagen ao lado de Narciso, que o deixa na Avenida dos EUA, que passará a ser a sua casa. De novo ao volante do Opel, Coutinho leva Eusébio. Depois de o deixar em casa, em São Domingos de Rana, dirige-se para a sua, junto à Praça de Espanha, onde ainda encontra a mulher, Antonieta, inquieta e sem conseguir dormir. “Disse-lhe que correra tudo bem. Mais tranquila, virou-se para o outro lado e lá adormeceu. Só então voltei à minha natureza verdadeira. Antes das operações em que participei, e foram umas quantas, apoderava-se de mim uma frieza de mármore. Ficava absolutamente impassível a qualquer emoção, totalmente concentrado no que ia fazer. Uma vez em casa, depois de tudo ter acontecido, apareciam então o medo e os suores frios. Mas não eram mais que uns minutos.”
Esgotado de tanta adrenalina, adormece. No dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, marca o ponto no jornal “O Século” – no belo edifício onde hoje está instalado o Ministério do Ambiente.
As regras de segurança obrigaram o comando a afastar-se o mais rápido – e para mais longe – possível do alvo. Nenhum dos quatro ouviu a (tremenda) explosão no interior do hangar. Só têm a certeza do êxito da sabotagem no dia seguinte, pelos órgãos de informação, que publicam uma brevíssima nota da Secretaria de Estado da Aeronáutica, dando conta da “destruição de algumas aeronaves e danos em outras” na base de Tancos. São 18 curtas linhas, sem qualquer fotografia nem pista sobre a presumível autoria. Compreensivelmente, o Exame Prévio (o novo nome dos serviços de censura) proíbe os media de fazerem mais referências à maior ação de sabotagem contra a guerra colonial.
Ainda no dia 8, o comando central da ARA emite um comunicado reivindicando a destruição de “toda a frota de helicópteros” e vários aviões de treino do “maior complexo militar que a partir de Portugal alimenta a vergonhosa guerra colonial que os fascistas e colonialistas portugueses conduzem”. “Abaixo a guerra colonial! Viva a insurreição popular armada!” – termina o texto, que circula clandestinamente e de que os jornais nada publicam.
No dia seguinte, um relatório secreto da Secretaria de Estado da Aeronáutica, elaborado pelo capitão António Perestrelo da Silva, descreve com detalhe a sabotagem, iniciada com uma explosão às 3h20, a que se seguira um incêndio, só extinto às 6h. E que incêndio! “A base não tinha meios suficientes para acudir a um fogo de tamanha intensidade, pelo que pediu auxílio às corporações de bombeiros da vizinhança: Tomar, Abrantes, Torres Novas, Entrocamento, Santarém”, recorda Narciso. “Só foi dado por extinto quando já não havia praticamente mais nada para arder...”
Segundo o mesmo relatório da Aeronáutica, das 28 aeronaves atingidas, 12 ficaram totalmente destruídas: dois grandes helicópteros Puma (SA-330) e outros quatro Alouettes III; e seis aviões de vários modelos (quatro Cub, um Auster e três Dornier DO-27). Um outro aparelho ficou “irrecuperável”, havendo mais 15 atingidos, ainda que recuperáveis.
A DGS (a designação entretanto dada à PIDE) chama a si as investigações sobre um atentado que cobrira de humilhação a Força Aérea e as próprias Forças Armadas. Duas semanas depois, a 23 de março, faz publicar nos jornais, rádio e televisão uma nota sobre Ângelo de Sousa. O cabo miliciano, que não mais aparecera na base, é “procurado por suspeita de ter destruído e danificado aeronaves de Tancos”. Milhares de cópias de duas fotos suas (uma à civil, de óculos; outra fardado, sem óculos mas de bigode) são distribuídas por todos os postos da PSP, GNR, PIDE/DGS e Guarda Fiscal.
Alarmado, Narciso vai ao apartamento alugado para se inteirar que tudo está bem com o camarada. À entrada, a senha combinada é “Luís” – e a conta-senha “vens sozinho ou com a Teresa?”. Ângelo está são e salvo. Dias depois, o aparelho clandestino do PCP fá-lo sair do país, a salto. Em Paris, junta-se à namorada, Fernanda Castro (que estava em Londres), e conhece os principais dirigentes do partido, entre os quais o próprio Cunhal, que o felicita pessoalmente pelo desempenho em Tancos. Enviado para a Checoslováquia, segue para Moscovo, onde frequenta um curso militar.
Cada vez mais nervosa e sem pistas, a DGS prende dois militares supostamente envolvidos na operação. Carlos Coutinho e António Eusébio, porém, continuam a fazer a sua vida normalmente. O jornalista na sua casa de Lisboa com a mulher, no jornal e no café habitual. “Como forma de desculpar a sua falta de eficácia, a PIDE/DGS foi-nos atribuindo uma espécie de ‘capacidade sobre-humana’, superior à de um James Bond...” – ri-se o jornalista-guerrilheiro. “Essas histórias espalharam- se, com as pessoas a falar e comentar. No café Montecarlo, que eu frequentava, o ataque a Tancos e o super-homem que lá entrou foram tema de conversa. Eu fazia um enorme esforço para não me rir e acabava por concordar, para não deixar nenhuma desconfiança.”
Coutinho acaba por ser detido no princípio de 1973, juntamente com mais cinco operacionais da ARA, denunciados por um alto responsável do PCP, Augusto Lindolfo, que passara a colaborar com a DGS. Na fase final da ditadura, é um dos presos políticos mais violentados. “Estive sob tortura do sono cerca de 300 horas, divididas por dois períodos: um primeiro de nove dias seguidos, e outro de quatro”. Ao Expresso, revela que, na altura, chegou a procurar formas de se suicidar.
Apesar da tortura, Coutinho não vacila. Principal operacional da ARA, além do Cunene e de Tancos tem no currículo mais quatro ações de envergadura, entre as quais a destruição da Escola Técnica da PIDE, em Sete Rios (a única que fez uma vítima mortal) e a sabotagem da central de telefones e telecomunicações dos CTT em Lisboa (nas vésperas de uma importante reunião da NATO e que deixou a capital isolada do mundo durante largas horas).
Meses depois, a 8 de abril de 1973, a DGS faz publicar as fotos dos três membros do comando central da ARA, juntamente com as de Ângelo de Sousa, Carlos Antunes (o líder da principal organização rival, as Brigadas Revolucionárias) e Joaquim Alberto Simões (ex-padre e um dos quadros da LUAR, a terceira organização política clandestina ligada à ação direta). Os três dirigentes da ARA, no entanto, nunca serão encontrados.
Muito desfalcada e perante alguns sinais de instabilidade política e sobretudo militar, em maio de 1973 a ARA recebe ordens do PCP para suspender a actividade. Através de um comunicado, o comando central determina “uma pausa temporária de certas acções, com vistas a facilitar que sejam aprofundadas ao máximo outras possibilidades da luta popular e antifascista”. Faltava menos de um ano para o fim da ditadura.
O QUE É FEITO DOS PROTAGONISTAS DO ATENTADO?
No dia 25 de Abril de 1974, Carlos Coutinho estava na cadeia de Caxias, tendo sido libertado no dia seguinte. Retomou a profissão de jornalista, em “O Século” e “O Diário”. Com 72 anos, reformado, vive em Póvoa de Santa Iria e continua a militar no PCP.
António João Eusébio, que entretanto passara à clandestinidade, tornou-se funcionário do partido até se reformar. Com 72 anos, reformado, vive sozinho nos Olivais, em Lisboa.
Ângelo de Sousa estava na clandestinidade quando a ditadura caiu. Muitos anos depois integrou um dos vários movimentos críticos do PCP. Morreu em 1990, com 42 anos.
Francisco Miguel, um dos mais míticos e populares dirigentes do PCP, foi deputado por Beja. Morreu em 1988, com 80 anos.
Jaime Serra pertenceu à Comissão Política do PCP até 1988. Escreveu um livro sobre a ARA, a que chamou “As Explosões que Abalaram o Fascismo” (Ed. Avante!, 1999). Com 95 anos, é talvez o mais velho da geração de históricos comunistas ainda vivo.
Raimundo Narciso, no dia 25 de Abril, continuava clandestino numa casa em Odivelas. Ali se manteve durante muitos anos, com a mulher e os dois filhos (ambos nascidos na clandestinidade). Deixou de ser o “José Lopes da Silva” do falso BI, para assumir publicamente a sua verdadeira identidade: Raimundo Pedro Narciso, membro do Comité Central do PCP. Com a perestroika soviética, entrou em rutura com o partido, tendo vindo a aderir ao PS, de que fora deputado independente. Tem 78 anos, vive em Odivelas e é autor de vários livros sobre o PCP
* Esta reportagem contou com a colaboração de Mariana Amaro Rodrigues e Camila Viana.
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