DAS CAUSAS DA GUERRA ÀS RAZÕES DA PAZ: A MEDIAÇÃO DA COMUNIDADE DE SANTO EGÍDIO NO CONFLITO MOÇAMBICANO
Dra.
Inês Bolinhas
Inês Bolinhas
Nota introdutória
As eleições democráticas realizadas no dia 19 de Novembro de 1994 em Moçambique consumaram um processo de paz que ficou na história das Relações Internacionais. Mediado por uma organização religiosa, a Comunidade de Santo Egídio, apoiada pela Santa Sé e pelo governo italiano, constitui um caso simultaneamente modelar e singular, porquanto não apresentou retrocessos e suscitou a reflexão dos peritos sobre o papel das ONG’s na mediação neste tipo de crises.
Esta breve reflexão assume-se como mais filosófica do que científica, dividindo-se em duas partes: a primeira refere os factores fomentadores e agravadores do conflito; a segunda apresenta as razões que levaram à paz - as razões dos moçambicanos, mas também as que fundamentaram e suportaram a acção mediadora exercida pela Comunidade. Não se pretende, portanto, levar a efeito uma análise exaustiva do processo de paz em si, tarefa que cabe sobretudo a outras disciplinas como a História, a Ciência Política e a Sociologia. Ainda que referindo elementos históricos, indispensáveis para a correcta contextualização, o enfoque situa-se sobretudo no plano ético.
As causas da guerra
Periferia do mundo ocidental, transformada em tanque de desperdícios do planeta, desajustada da nova ordem mundial, anunciada por G. Bush (pai) aquando da queda do muro de Berlim, África constitui um terreno importante onde se jogaram, se jogam e se reflectem processos importantes do equilíbrio internacional. Esta a razão por que também no conflito moçambicano se equacionaram vários problemas ligados à presença dos mundos bipolar e unipolar neste continente, os quais, articulados com as características próprias de cada estado emergente, ditaram um caminho próprio a cada nação.
Moçambique possui características idênticas às de grande parte dos países africanos, frutos da divisão do continente estabelecida na Conferência de Berlim, desfasadora das unidades etno-linguísticas e políticas e, por consequência, causadora da crise de imediato enfrentada pela grande maioria destes jovens países - a indefinição da identidade nacional1, problema a que Moçambique não escapa2. Estas discrepâncias suscitam, logo numa primeira abordagem ao conflito, a questão fundamental de saber se se terá tratado de uma verdadeira guerra civil. A equação complexifica-se com a consciência do instigamento aos conflitos interpostos levado a cabo no quadro da disputa de zonas de influência e controlo durante a Guerra Fria, a que Moçambique não escapou, já que «Sendo as superpotências as grandes vitoriosas de 1945, todo o movimento das autodeterminações coloniais do século foi em função do interesse dominante destas»3.
Não é, pois, evidente, se serão a FRELIMO e a RENAMO duas forças políticas distintas ou, respectivamente, um governo e um grupo terrorista4. Por outro lado, se a guerra civil se define como a que é feita entre facções dentro de uma mesma unidade política, então qualquer movimento de guerra pela libertação das colónias teria que ser considerado como guerra civil - inclusivamente em Moçambique, onde moçambicanos negros combatiam contra moçambicanos negros. Daí que a análise mais correcta, de facto, seja a menos científica, precisamente aquela que levou a Comunidade de Santo Egídio a envolver-se no conflito: para lá de qualquer definição técnica, toda a guerra, civil ou não, é, por definição, fratricida, porque a comunidade humana é a verdadeira comunidade, mais vasta do que qualquer comunidade nacional.
Estas considerações, já respeitantes aos fundamentos da acção mediadora exercida pela Comunidade, não dispensam, todavia, a compreensão das causas do surgimento e do agravamento do conflito. J. B. Honwana resume-as sucintamente e com clareza: no plano internacional, a já referida influência da Guerra-Fria e a correspondente acção desestabilizadora da Rodésia e da África do Sul; no plano interno, uma coesão nacional frágil, típica nos estados multi-étnicos e pluriculturais pós-coloniais, em ligação com um desencantamento crescente de alguns sectores da sociedade causado pelas políticas da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)5. Segundo este autor, foi a FRELIMO que lançou as bases que dariam força à guerrilha ao estabelecer o monopartidarismo, dado que todas as forças e indivíduos que se tinham oposto de várias maneiras ao colonialismo, mas que não estavam preparados para operar sob a autoridade do movimento, foram excluídos, sem usufruírem de um espaço institucional que lhes permitisse representar o papel político na oposição6. A intolerância da FRELIMO, as suas medidas reformistas pouco populares e a própria guerra foram condições mais do que favoráveis para que a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), de instrumento de agressão externa, passasse à mais forte expressão de oposição interna7.
Com efeito, a acção política da FRELIMO revelou pouca ponderação. Aquando do seu nascimento (Accra, 25 de Junho de 1962), assumiu-se como uma organização política constituída por moçambicanos para defender os direitos da totalidade do seu povo, tendo por objectivo a liquidação do poder colonial português.Os seus dirigentes forjaram uma estratégia de desenvolvimento nacional, sem uma noção clara da realidade que iriam administrar: a sua atenção estava focada na criação do homem novo 8. Aliando paternalismo e intolerância cultural e política, a própria FRELIMO lançou as sementes para a subversão.
A RENAMO começou por ser um instrumento de agressão externa por parte dos que se opunham à autodeterminação dos africanos negros, dos que lutavam contra o alastramento do comunismo e dos que combatiam ambas as tendências. Fugidos da descolonização moçambicana, alguns ex-colonos e militares refugiaram-se na Rodésia, onde se estabelecera um governo racista condenado pela comunidade internacional. Seria a partir dos refugiados do antigo regime colonial português e de jovens europeus fanáticos, de tendência neo-nazi, que o Central Intelligence Office da Rodésia recrutaria os primeiros membros da RENAMO. Para a Rodésia branca, era urgente, sob risco de sufocação económica e política, enfraquecer o regime de Maputo9. A esses receios juntou-se desconforto da África do Sul, incomodada com a vizinhança de um regime de tendência comunista que proferia discursos contra o apartheid. Os sul-africanos investiam na criação em seu redor de um cordão sanitário 10 de estados neutrais e até coniventes com a segregação racial.
A RENAMO, porém, viria a autonomizar-se. Deu disso provas em 1980, na altura da transformação da Rodésia em Zimbabwe, pois, ao transferir-se para o território sul-africano, revelava uma atitude de independência, surpreendendo os seus próprios criadores11. Ao apresentar-se como a continuadora de Mondlane, atraiçoado pelo governo, tendo como objectivo recuperar a legitimidade da revolução, foi bem recebida pela população rural moçambicana; o apoio e a conivência com a guerrilha eram, afinal, expressão do descontentamento vivido. Um dos graves desrespeitos sentidos pelo povo fora a acção «desalienante», traduzida nas aldeias comunais, nos campos de reeducação (veiculadores de valores frequentemente contrários aos tradicionais) e na destruição das referências religiosas. A RENAMO pôde facilmente aproveitar-se da falta de tacto dos órgãos do poder. A humilhação das autoridades tradicionais jogou a seu favor12 uma vez que o governo não tinha tomado em consideração a força e o estatuto dos chefes tradicionais, anteriores à própria situação colonial. Beneficiou também da intolerância para com as práticas religiosas13, do desencanto dos jovens das comunidades rurais14 e da centralização da administração no sul do território. Estes factores, acompanhados pela selvajaria paralisante de um exército bem organizado15, continuamente fomentado e apoiado do exterior, originaram dezasseis anos de conflito sangrento.
Desde logo, pois, se estabeleceu uma brecha entre o povo de Moçambique e a FRELIMO, inicialmente recebida como heroína, libertadora de um regime colonial opressor. Segundo Margareth Hall e Tom Young, a correcta análise da situação do país permitiria observar que não havia
[...] razão para supor que havia um apoio massivo a um programa para uma transformação revolucionária em qualquer outra coisa do que num sentido estritamente anticolonial. É uma visão ocidental (inteiramente partilhada pela FRELIMO) que as pessoas que querem medicina, literacia ou bens querem também necessariamente adoptar modos de comportamento ou crenças “modernos” (Ocidentais).16
A FRELIMO não imaginou, ou negou-se a admitir, que o anseio das massas não fosse o de integrar uma nação comunista, o de construir uma sociedade igualitária e sem classes. Socorrendo-se de um modelo gnóstico secularizado, não conseguiu por esta via tornar realidade o sonho de identidade nacional. Uma nova oportunidade se abriu com o Acordo de Paz. Só em democracia, a identidade nacional poderia e teria que ser determinada.
As razões da paz
Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão
clama da Terra até Mim.
Gén 4, 10
Tal como sucedera já no período de instigamento e enraizamento do conflito, no decorrer do período de formação da conjuntura que levou ao processo e ao posterior acordo de paz cruzaram-se múltiplos factores, internos e externos que, não obstante pressionassem no sentido de uma resolução, eram travados e diminuídos pelos rancores de anos de guerra. A inexistência de um mediador adiava ainda mais o diálogo. A Comunidade de Santo Egídio, respeitada pelas partes beligerantes, viria a ser a peça que desbloquearia o impasse.
Em Moçambique sentia-se a progressiva perda de legitimidade do governo causada pela acção debilitante da guerrilha, com repercussões aos níveis económico, militar, político e humanitário17. No plano externo, também o fim da Guerra-Fria, as vagas de refugiados e a possibilidade de alastramento da catástrofe humanitária aos países vizinhos pressionavam no sentido de um acordo de paz18. Tanto a situação internacional, como a interna eram propícias ao início do diálogo, que, todavia, demoraria ainda vinte e sete meses a frutificar. Com efeito, até ao final das negociações subsistiu o mesmo problema: a RENAMO exigia um diálogo de igual para igual, enquanto a FRELIMO se assumia como a única detentora do poder legítimo. Esta pedra de tropeço arrastou o acordo de paz para além do desejável, sacrificando as vidas de milhões de moçambicanos atingidos pela guerra, pela fome resultante da seca e pela falta de acesso à ajuda humanitária19.
O processo de paz acabou por ser levado a bom termo pela Comunidade de Santo Egídio com o apoio do governo italiano e do Vaticano, através de uma equipa de mediação composta pelos seguintes elementos representantes:
• D. Jaime Gonçalves, Arcebispo da Beira e Presidente da Conferência Episcopal Moçambicana; o único moçambicano;
• Mario Raffaelli, membro socialista do governo italiano que trabalhara durante seis anos como subsecretário responsável pelo pelouro africano do Ministério dos Negócios Estrangeiros;
• Andrea Riccardi (Fundador da Comunidade) e D. Matteo Zuppi, da Comunidade de Santo Egídio.
Quer a Igreja Católica, quer a Comunidade de Santo Egídio, quer ainda a esquerda política italiana mantinham relações de longa data com este país da África austral. Aliás, os contactos da FRELIMO com a esquerda italiana são anteriores à própria independência20. Já em 1970, Marcelino dos Santos viajara até Roma para se encontrar com Paulo VI. Nos anos oitenta, a Itália aumentava a ajuda económica a Moçambique, transformando-se num dos seus maiores doadores, gesto reconhecido pela FRELIMO21. O próprio PCI viria a ajudar a conter os excessos anti-clericais dos seus camaradas moçambicanos.
Os laços da Igreja Católica com Moçambique remontam à época dos Descobrimentos, sendo, como ficou dito, a única religião com expressão territorial22. Aquando da sua visita ao país, entre os dias 16 e 18 Setembro de 1988, o Santo Padre, recordando a força desses mesmos laços, mostrou-se preocupado com a situação do conflito e salientou a necessidade de a Igreja contribuir para a sua resolução - sempre, no entanto, respeitando o que é de César:
A história conhecida de Moçambique anda intimamente ligada à presença da Igreja. Mesmo com limitações, ela quis e quer contribuir para tecer essa história. Por sua natureza, a Igreja respeita as instituições e a sua autoridade (cf. Ped. 2, 13 ss.). Ela não aspira a gerir os assuntos temporais nem aspira a substituir-se a uma determinada política. A sua contribuição específica é sempre a de fortalecer as bases espirituais e morais da sociedade: é um serviço que visa consciencializar e formar, esclarecendo e apontando para os imperativos éticos e, se houver necessidade, denunciando os desvios e os atropelos à dignidade do homem23.
A mensagem de João Paulo II ia no sentido de que todos abraçassem a causa do homem 24; seria exactamente este o espírito que a Comunidade de Santo Egídio assumiria nas negociações de paz.
Já pouco depois da independência, a referida Comunidade se envolveria progressiva e gradualmente na questão moçambicana. D. Jaime Gonçalves contactara-a em 197625. Na década de 80, a organização estava já no país, conseguindo a libertação de vários sacerdotes e freiras capturados pela RENAMO. Em 1984 enviara ajudas regulares, gesto que se repetiu em 1985 e 1988. Em 1989, o próprio A. Riccardi interveio no V Congresso da FRELIMO (Julho de 1989)26. A Comunidade coordenara, além disso, projectos de desenvolvimento da agricultura e da indústria têxtil. A perspectiva com que se envolveu na resolução do conflito foi humanitária e não política. A atitude desinteressada de todo o valor que não o humano grangeara-lhe o reconhecimento e a estima de ambas as partes. Durante o seu envolvimento no processo de paz, quando a maior parte da comunidade internacional equacionava ainda o conflito moçambicano com relação ao apartheid, acreditando que este não se resolveria enquanto a situação sul-africana permanecesse, ela ousou apostar na causa do homem.
Pela sua acção concreta, e de acordo com o que de mais profundo se encontra na perspectiva cristã, a Comunidade de Santo Egídio sobressaía cada vez mais como um mediador possível para o conflito. Em 1985, chegou mesmo a preparar um encontro surpresa de Samora Machel com João Paulo II27 e, em 1987, a audiência que seria concedida pelo Papa a Joaquim Chissano, então de visita a Roma. Contudo, marcados por um poder colonial em que a Igreja se aliara ao estado, não permitindo, pelo receio do aparecimento de tendências nacionalistas, que os negros assumissem altos cargos eclesiásticos, os governantes moçambicanos não viam na Igreja Católica um elemento que contribuísse para a superação da crise.
Para superar o impasse era necessário: que ambas as partes, uma vez convencidas de que só a união dos esforços traria a riqueza, a paz e o progresso a Moçambique, mostrassem flexibilidade suficiente para cooperar; o estabelecimento de regras para o diálogo; que a FRELIMO admitisse uma alternativa ao modelo de estado marxista monopartidário; um mediador diplomático para o conflito, que conseguisse ajudar a construir uma nova relação entre as partes, possibilidade apenas concretizável se a mediação fôr suficientemente hábil e capaz de criar uma linguagem à vez neutra e comum. Ao longo da sua acção, a ambição dos mediadores centrou-se na construção de um outro modus vivendi e na remoção de distorções, sem, no entanto, alimentarem ilusões de conseguirem, em tão pouco tempo, mudar o coração de milhões de moçambicanos. Era, por isso, urgente começar a fazê-lo desde logo, armando-se com a maior paciência. Andrea Riccardi, o fundador da Comunidade e também um dos mediadores deste processo, fez o seguinte balanço a respeito da criação de uma outra relação entre as partes beligerantes:
Não é verdade que os povos procurem a guerra pela guerra. Batem-se porque já não vêem, ou não querem ver, outras vias. Estive durante dois anos e meio em contacto com guerrilheiros moçambicanos. Porque se batiam eles? Porque não viam alternativa ao combate. E tinham acabado por se habituar à guerra. Mas depois assisti, durante as negociações, à transformação do homem bélico em homem político. [...] A criação (ou recriação) do homem político: eis o grande problema da paz. Não é, evidentemente, forçoso que os protagonistas se reconciliem, podem continuar a detestar-se, mas manter relações tensas é uma coisa, andar aos tiros é outra. [...] Aqueles homens [da Renamo] vinham do mato, tudo o que sabiam fazer era a guerra, a arma dos desesperados 28.
O processo de paz de Moçambique revelou-se tortuoso, com várias negociações abortadas pelo caminho29. Andrea Riccardi abriu a primeira sessão da primeira ronda de conversações apontando, desde logo, o nó instigador do conflito - o problema da identidade - lembrando-lhes que, acima de tudo, eram moçambicanos divididos que deveriam cooperar por um Moçambique melhor. Evocando o Papa João XXIII, estabeleceu duas regras fundamentais para o sucesso do diálogo: as partes deveriam concentrar-se naquilo que as unia, não naquilo que as separava e renunciar à violência como meio de obtenção dos seus fins.
A acção desenvolvida pela Comunidade de Santo Egídio não pode ser compreendida senão em função da especificidade da sua mundividência. Mesmo quando luta pelo fim das desigualdades sociais e pela paz, a sua acção só superficialmente é política, pois que os seus fundamentos se enraízam numa vivência sólida de uma outra compreensão do mundo e do lugar que nele ocupa a mediação diplomática30.
Nascida em Roma no ano de 1968 e reconhecida em 1986 pela Santa Sé, a Comunidade de Santo Egídio, filha do espírito de inovação presente no Concílio do Vaticano II, é formada por leigos e sacerdotes. Profundamente impregnada do espírito ecuménico, vivem no seu seio comunidades católicas, protestantes e ortodoxas, em mais de sessenta países. Enraizando-se na prática - iniciada em 1973 e nunca até hoje interrompida - da oração 31 e na acção social, desenvolveu-se após o choque que os seus membros experimentaram perante aquilo que a cidade burguesa procurava ocultar: a existência do Terceiro mundo em Roma. Andrea Riccardi, um historiador nascido em 1950, era então estudante universitário. Teve uma educação flexível32 e, ao princípio, o seu percurso não se aproximava do da prática oficial da Igreja. A sua formação teológica foi sobretudo autodidacta, tendo estudado teólogos católicos, protestantes e ortodoxos. Sentindo necessidade de melhorar a situação dos pobres dos subúrbios e vivendo no meio da agitação da época, interessou-se pela filosofia da esquerda política; mas os debates pareciam-lhe sempre demasiado abstractos e a própria Igreja também lhe parecia longínqua. Aliás, esta desagradava a muitos jovens por estar comprometida com o poder político: «O facto de os padres perguntarem durante a confissão: “Em quem vota?”, caía mal»33. Riccardi queria fazer algo pelo mundo, descobrir a via do concreto e encontrou-a no Evangelho. Profundamente marcada pelo franciscanismo 34, a Comunidade de Santo Egídio nasceu como um movimento de purificação da própria Igreja. No princípio, estes jovens não puseram a questão de sair de Roma; tinham que mudar o seu mundo; não iam mudar o mundo dos outros sem mudar o seu. Como justificar, então, o empenho que demonstraram nos processos de paz de Moçambique, da Guatemala e da Argélia? De facto, não foi por mero acaso que a Comunidade se envolveu nas Relações Internacionais. Embora estes envolvimentos sejam pontuais, eles encontram a sua justificação na perspectivação da guerra como a mãe de todas as pobrezas, destruidora da comunidade de irmãos de que todos fazemos parte35.
A Comunidade de Santo Egídio, reafirme-se, empenhou-se assim na procura da resolução deste conflito numa perspectiva apolítica, tendo como único objectivo o resgate da dignidade de cada ser humano dilacerado por aquela guerra civil, e assumindo como seu valor maior a evangelização, concretizada no auxílio aos mais desfavorecidos e na oração conjunta, agregadora do colectivo social. Ensinou-nos que existem outros modos possíveis de fazer a paz36, e que outras ONG’s e associações podem vir a assumir um papel cada vez mais importante na cena internacional. Onde alguns observadores políticos anteviam o fracasso, fruto do amadorismo de uma equipa mediadora, cuja inexperiência frustraria a sua boa vontade para resolver um conflito tão intenso, a Comunidade de Santo Egídio, persistindo, suportando a tensão da demora37 por acreditar que a paz não pode ser imposta, só podendo advir da vontade de ambas as partes, ganhou a aposta de colocar o país a caminho de uma paz duradoura38.
Efectivamente, porém, esta paz duradoura não foi ainda plenamente conseguida. Dez anos após as primeiras eleições livres, se não há a assinalar retrocessos na situação política, tal não significa que exista uma paz efectiva em Moçambique, dado que esta «[...] implica a superação das causas da guerra e a autêntica reconciliação entre os povos»39. A paz não resulta da apatia, da resignação ou da consecução de um equilíbrio periclitante, mas da actividade consciente e intencional para um estado mais próximo da felicidade que todo o homem procura:
A paz não é unicamente a ausência de guerra, nem se reduz a um mero equilíbrio de forças adversas, nem provém de um domínio despótico, mas define-se, com razão e propriedade, obra da justiça. É fruto de uma ordem inscrita na sociedade humana pelo seu Divino Fundador e que os homens, sempre desejosos de uma justiça mais perfeita, hão-de fazer amadurecer. [...] a paz jamais é uma coisa adquirida de uma vez para sempre, mas tem de continuamente estar em construção 40.
Na realidade, apesar da modelar contribuição da Comunidade de Santo Egídio, as bases do conflito moçambicano ainda permanecem. O desenvolvimento económico continua a centrar-se no sul do território. Os líderes da FRELIMO pretendem beneficiar do nível de vida do ocidente sem terem em conta que isso exige uma transformação da totalidade do tecido social moçambicano e um desenvolvimento integral do país; a inflexibilidade demonstrada para com a oposição, quando esta alcança altos resultados eleitorais, é demonstrativo disto mesmo41. Cada uma das diferentes identidades presentes em Moçambique assume a forma de partido político, com a RENAMO e a FRELIMO à cabeça. Este facto, frequentemente escamoteado pelos media ocidentais, continua a ser o verdadeiro fomentador de conflitos, agravados pelas questões das sucessões dinásticas das elites africanas42.
O problema da paz identifica-se com o problema da formação, ou melhor, da conquista de uma identidade moçambicana, a qual se só se conseguirá a partir da conjugação de esforços de cooperação entre todos os que habitam em Moçambique e da construção de uma unidade económica nacional, o mais possível autónoma. Este processo, de que nós, europeus, já nos esquecemos, mas que encontramos, do mesmo modo, na raiz das nossas actuais nacionalidades, demorará, evidentemente, pelo menos algumas décadas, tantas, talvez, como as que levará a União Europeia a constituir-se efectivamente, na medida da resolução dos seus conflitos.
Conclusão
Então o pai disse-lhe:
“Filho, estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado.”
Lc 15, 31 - 32
O processo de paz moçambicano não pode apenas explicar-se pela simples equação entre os factores externos e internos que pressionavam as partes para um acordo. No plano externo, por exemplo, poder-se-ia alegar que, com o fim da Guerra-Fria, nem a FRELIMO, nem a RENAMO estariam em condições de perpetuar o confronto, dado não haver já quem armasse ambas as facções.
Essa e outras explicações do mesmo tipo, porém, esbateriam e diminuiriam a importância real da acção desenvolvida pela Comunidade de Santo Egídio. De facto, com ou sem apoios, a guerra poderia ter continuado, embora com menos meios, até à necessidade de intervenção de forças da ONU, ou, mesmo após o acordo, a situação haver regredido numa espiral de auto-destruição, de violência irracional. O cessar desta não é explicável senão pela própria vontade dos homens de a travar. Daí que se fale em causas da guerra e em razões da paz. Com efeito, a guerra não tem propriamente razões, enquanto motivações de carácter racional (não se confunda razão com calculismo, este não passa de justificação irracional do apetite, inclusivé do do poder em si mesmo). A guerra surge apenas quando, numa conjuntura adversa, se é arrastado pelo predomínio da perspectiva particular, individual ou de grupo. Só a paz, e nunca a guerra, pode ser o produto da livre escolha humana.
Este o sentido profundo da luta da Comunidade de Santo Egídio pela inculcação de um espírito que permita realizar a metáfora do filho pródigo. O que supõe a dimensão da ordem supra-temporal do perdão.
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* Trabalho orientado pelo Major Prof Doutor Francisco Proença Garcia no Seminário de «Ética e Relações Internacionais», leccionado no curso de Mestrado em «Filosofia da Acção», na Universidade Católica Portuguesa.
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** Professora assistente convidada da Área Científica de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa.
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1 A dificuldade da formação de uma identidade nacional agudiza-se na medida em que uma parte significativa das diferentes culturas em jogo define a identidade, não a partir do indivíduo, mas das estruturas grupais. Isto traduz, segundo Ali Mazrui, a posição marginalizada de África no mundo, alienada de si própria. Compara, por isso, o refugiado africano com o próprio Estado que o obriga a refugiar-se: ambos se encontram desenraizados [Cf. Ali A. Mazrui, «The African State as a Political Refugee», in AAVV, African Conflict Resolution, The U.S. Role in Peacemaking, 1ª ed., Washington D. C., United States Institute of Peace, ed. by David R. Smock e Chester A. Crocker, 1995, p. 9]. Este facto suscita uma outra questão, igualmente complexa, que é a de saber se a descolonização terá sido verdadeiradeiramente um movimento de autodeterminação dos povos, ou, pelo contrário, a cruel e sangrenta desintegração das estruturas coloniais [Cf. idem, pp. 10 e 11].
2 Conceito dos mais complexos, tanto do ponto de vista filosófico como do científico, a indefinição da identidade é frequentemente apontada como origem de problemas vários, individuais e colectivos. Uma identidade em crise tanto pode significar um momento de renovação, como um sintoma de degradação espiritual e psicológica. Se definirmos, como o faz Fernando Amaro Monteiro, a identidade colectiva como: «[...] aquela fisionomia colectiva (jurídica, política, social e cultural) que permanece através da evolução das sociedades e procura, inclusive no próprio desgaste destas, as soluções que lhes garantam ou dinamizem a existência» [ Cf. Fernando Amaro Monteiro, O Islão, o Poder e a Guerra (Moçambique 1964 - 1974), 1ª ed, Porto, Universidade Portucalense, 1993, p. 52], então era exactamente isto que faltava à multi-étnica sociedade moçambicana e que Samora Machel procurou criar. Não existia ainda uma nação, na medida em que não havia ainda uma cultura comum e, logo, nenhuma base política ou jurídica que pudesse, deste modo, agregar e configurar, social e culturalmente, os diversos grupos. Consoante a natureza do problema, o indivíduo moçambicano assumia-se, tal como ainda hoje, enquanto membro de determinada etnia, ou como membro de uma religião específica e, se necessário, na cena internacional, como cidadão de Moçambique.
3 Cf. Francisco Proença Garcia, Análise Global de uma Guerra, Moçambique: 1964 - 1974, Prefácio de Adriano Moreira e Pósfácio de Fernando Amaro Monteiro, 1ª ed., Lisboa, Prefácio, 2003, p. 66. Cf. também idbidem (itálicos nossos): «Para a Organização das Nações Unidas, todos os povos tinham direito à livre autodeterminação. Contudo, a ONU nunca conseguiu definir o que entende por “povo”. Não tendo em linha de conta referenciais objectivos, ignorou a preparação e o grau de maturidade (tendo por padrão a cultura ocidental) das populações abrangidas, nos territórios em causa, para a independência. Em nenhum território se procedeu em conformidade com a resolução A/1541 (XV), onde a Assembleia Geral estabeleceu a obrigação de informar quando o território fosse geograficamente separado e distinto, étnica e culturalmente, da potência administrante». Ainda a respeito do movimento de autodeterminações coloniais, Francisco Garcia assinala a falta de transparência da ONU, que «[...] influía, de acordo com os interesses do momento, nas decisões tomadas, com as consequências daí advindas, excepto, claro está, para eventuais... autodeterminações das ilhas Havai, das Repúblicas islâmicas sob controlo soviético e mesmo de territórios ainda hoje sob pavilhão francês (como a Nova Caledónia, a Reunião, etc.). Como é natural, a Moral, porque voltada aí para a Política, era para interpretar a favor da Força. Seria absurdo interpelar os EUA ou a URSS sobre autodeterminações em falta.» [Cf. idem, p. 292].
4 Esta é a questão avançada por C. Geffray no estudo antropológico que realizou sobre as causas do conflito armado, na medida em que se torna difícil a compreensão, durante a escalada deste, da estranha capacidade que um grupo de mercenários apresenta para conquistar em pouco tempo a conivência de uma boa parte da população rural [Cf. Christian Geffray, A Causa das Armas, Antropologia da Guerra Contemporânea em Moçambique, trad. Adelaide O. Ferreira, 1ª ed., Porto, Ed. Afrontamento, 1991, p. 9].
5 Cf. João Bernardo Honwana, The United Nations and Mozambique: A sustainable Peace?, 1ª ed., Lisboa, Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais, 1996, p. 9: «There is solid evidence of important external influences on the war in Mozambique; the Cold War Politics at a global level and the Rhodesian and South African involvement regionally, just as can be little doubt about the presence of domestic factors of conflict: a fragile national cohesion, typical in multi-ethnic and pluricultural post-colonial states, coupled with a growing disenchantment on the part of certain sectors of the society with Frelimo’s policies.»
6 Cf. idem, p. 15.
7 Cf. idem, p. 16: [...] it is fair to say that FRELIMO’s policies, the war itself and FRELIMO’s increasingly militaristic and authorian reponses to it, paved the way for the transformation of RENAMO from an instrument of external aggression into the strongest expression of internal opposition.
8 Samora Machel procurou criar a identidade moçambicana, para lá de toda a discriminação, étnica ou religiosa, anulando as referências a qualquer factor gerador de divisões. Para Machel, a identidade moçambicana estava para além de questões de cor e de raça (refira-se, a este, respeito a singularidade das ex-colónias portuguesas - uma tarefa interessante e necessária seria a de analisar as bases culturais portuguesas no seu comportamento em África, tentando compreender de que modo contribuíram para uma base identitativa diferente da da restante África Negra): [Cf. Margaret Hall e Tom Young, Confronting Leviathan, Mozambique since Independence, 1ª ed., Londres, Hurst & Company, 1997, p. 83].
9 Quando entrou para a ONU, Moçambique foi solicitado no sentido de colaborar na aplicação das sanções económicas àquele país, tendo correspondido entusiasticamente ao pedido. Detendo uma posição privilegiada (controla as saídas para o mar de muitos países, através das grandes linhas de caminho de ferro que terminam fora das suas fronteiras), conseguiu colocar a Rodésia numa situação económica vulnerável.
10 A expressão é de J. B. Honwana in op. cit., p. 13.
11 Cf. Ken Flower, in C. Geffray, op. cit., p. 12: Ken Flower, chefe dos Serviços Secretos da Rodésia, declararia: «Eu comecei a pensar se não teria criado um monstro que estava agora fora de controlo». Efectivamente, a guerrilha já tinha ganho a sua consistência interna. Debilitada após a morte do seu líder, André Matsangaíssa, em 1979, não se desmantelou. Afonso Dhlakama assumiu a liderança em 1980.
12 Os chefes tradicionais abraçaram a RENAMO, encarando-a, não como um exército introdutor de uma situação anómica, mas antes como a esperança de um estado mais justo. O orgulho dos moçambicanos foi profundamente ferido pelo afastamento das autoridades tradicionais, pilar de sustentação da(s) sua(s) identidade(s). Considerados como instrumentos do poder colonial, os chefes tradicionais, ridicularizados e diminuídos, não podiam, por exemplo, candidatar-se a deputados.
13 É interessante notar que, apesar das políticas anti-religiosas praticadas pela FRELIMO, o partido teve, na sua fase inicial (1962-1970), influência do protestantismo, pela via de Eduardo Mondlane. Até 1982, o regime mostrou uma forte repulsa pela religião em geral, em especial pela Igreja Católica, símbolo da repressão colonial. Ser crente de uma religião bastava, aliás, para não se poder ser membro da FRELIMO. Durante a presidência de Samora Machel cometeram-se graves desrespeitos: queimaram-se Bíblias e o próprio Presidente entrou calçado numa mesquita. Todavia, passados os primeiros tempos de governação, a sua atitude tornou-se mais flexível. Pedia aos líderes religiosos a sua colaboração na construção da identidade nacional, lembrava-lhes os tempos do colonialismo: aos católicos, que as primeiras ordenações de padres negros só aconteceram em 1950; aos muçulmanos, que haviam sido considerados estrangeiros na sua própria terra, apenas porque tinham uma crença diferente. O importante era que essas religiões se perspectivassem como Moçambicanas e não como representantes de um qualquer outro interesse estrangeiro. Esta regra garantiria a independência, a liberdade e o recto uso da liberdade religiosa. Moçambique seria de todos os moçambicanos, independentemente da sua religião [Cf. Samora Machel, «Documents from a meeting in Maputo between the Mozambican Party and state leadership and representatives of religious organizations in Mozambique», in Suplemento do Boletim n.º 78 da AIM, Maputo, Agência de Informação de Moçambique, 1982, p. 39]. Ao invés, era conhecida a atitude favorável dos dirigentes da guerrilha para com qualquer culto, tradicional ou não. Efectivamente, a RENAMO estimulava a religião tradicional, a crença nos espíritos e nos curandeiros. O próprio André Matsangaíssa foi morto em combate, apesar de um medium lhe haver assegurado a vitória. Mas o aspecto místico da guerrilha atingiu o seu expoente máximo na escolha da língua dos guerrilheiros: o idioma ndau, da etnia ndau. Um dos motivos mais importantes dessa escolha [cf. M. Hall e T. Young, op. cit., p. 182.] foi a crença em que os ndau tinham capacidade de se vingarem após a morte. É, pois, visível a articulação da escassa acção política da RENAMO com o respeito à religião e às autoridades tradicionais (a guerrilha nas zonas libertadas praticava um sistema de governação indirecta), qualificada por M. Hall e T. Young como uma linguagem política específIca, ainda que fora dos padrões ocidentais. [Cf. idem, p. 176].
14 Os jovens eram facilmente aliciáveis: o governo privilegiava os que eram naturais do sul do país na entrada nas universidades. À independência seguiu-se um intenso fluxo migratório da juventude do norte do país para as grandes cidades, concentradas no sul. A situação económica, porém, não se encontrava ainda suficientemente fortalecida para poder absorver tanta mão-de-obra. Temendo as consequências sociais deste fluxo, as autoridades lançaram, em 1983, a “operação produção”, que consistiu na deslocação dos jovens desempregados para as suas terras natais, ou para outras onde fossem julgados necessários. Humilhados e frustrados por não lhes ter sido dada a oportunidade de decidir o rumo da sua vida, nem sempre estavam, além disso, dispostos a reintegrar-se no sistema tradicional, ao mesmo tempo que eram objecto da desconfiança dos chefes locais, que rejeitavam estes «contaminados pelo mundo de fora» por poderem pôr em causa a coesão grupal. Desenraizados, restavam-lhes poucas saídas, muitas vezes ainda dificultadas: «A única solução para os jovens era inscreverem-se na escola secundária do seu distrito, de maneira a que, detentores de um diploma, pudessem mais tarde ter acesso, pelas vias facultadas pelo Estado, ao mundo urbano... mas nem sequer um décimo dentre eles se conseguiu inscrever.» [Cf. C. Geffray, op. cit., pp. 74 e 75.] A entrada e a permanência na guerrilha, pelo contrário, garantia-lhes um estatuto social elevado: beneficiavam de criados e mulheres, obtidos através do saque ou das populações submetidas, não precisavam de trabalhar, encontravam-se acima da autoridade dos chefes tradicionais, viviam entre iguais, desafiando a autoridade governativa.
15 O caso não passou despercebido à comunidade internacional. Em 1988, o governo norte-americano publica o Relatório Gersony, que viria a estabelecer a imagem profundamente negativa da opinião pública acerca da RENAMO [Cf. Gersony, Robert, Summary of Mozambican Refugee Accounts of Principally Conflict-Related Experience in Mozambique [1988], in www.usaid.gov/regions/afr/conflictweb/reports/ gersony/gersony_mozambique.rtf]. Grave, em termos de Direitos Humanos, tão alheios à guerrilha - e, por isso, indefensáveis como finalidade de acção - como alheios sequer à própria finalidade política que a enformava, era o modo como se processava a recruta. Uma grande parte do exército era constituída por jovens indicados pelas autoridades tradicionais na sua zona de influência; outra era fruto do rapto das investidas nas zonas rurais de todo o país. Os recrutas, voluntários ou cativos, eram sujeitos a experiências de humilhação que visavam torná-los aptos para o combate. No caso destes últimos, eram mantidos sob a vigilância atenta de guardas até à data em que cometessem um crime de sangue suficientemente odioso para inviabilizar o seu regresso a uma vida normal. Primeiramente obrigadas a matar animais e mais tarde pessoas, de preferência da própria família, os jovens (e até as crianças!) não se atreviam a voltar para as zonas controladas pelo governo, conscientes de que seriam julgados e executados como terroristas. Mesmo após a promulgação da «Lei da Amnistia» (1988), muitos dos que voltavam viviam perto da sua própria comunidade, mas ostracizados porque haviam escolhido praticar um acto monstruoso para escapar à morte. Era frequente os representantes da FRELIMO não conseguirem reintegrar os ex-guerrilheiros, da mesma maneira que lhes era impossível conter os excessos de alguns elementos delinquentes das FAM (Forças Armadas de Moçambique) sobre a população civil residente nas zonas que controlavam. [Cf. C. Geffray, op. cit., pp. 139 - 140.] tenebrosa e terrível, a estratégia mostrou-se eficaz. Efectivamente, com a perda do sentido de dignidade, conseguia-se a existência constante de um estado de desespero patológico, garantindo-se, em simultâneo, o alastramento de um estado generalizado de terror.
16 M. Hall e T. Young, op. cit., p. 82: «But there is no reason to suppose that there was a mass support for a programme for revolutionary transformation in anything other than a narrowly anticolonial sense. It is a Western conceit (fully shared by FRELIMO) that people who want medicine or literacy or wells necessarily also want to adopt “modern” (Western) modes of conduct or beliefs».
17 O país era já dependente da ajuda internacional desde 1984, recebendo fundos regulares do FMI e do Banco Mundial. O aparelho militar denotava enfraquecimento e desgaste, pelo que o governo se viu obrigado a pedir auxílio a outros governos - de África, da Europa e da América do Norte e Central - sob a forma de apoio logístico, de armamento e de contingentes militares para proteger os corredores de transportes (no caso do Zimbabwe pedia-se-lhe ainda que se juntasse em ofensivas conjuntas com as FAM). Por conseguinte, a legitimidade do governo encontrava-se ameaçada e sem perspectivas de se reconfirmar, uma vez que a guerrilha estava bem montada e instalada; apesar de ter mais apoios do que a RENAMO (esta, cada vez mais isolada, após a queda da Rodésia branca, contava agora apenas com as ajudas da África do Sul), nunca a conseguiu vencer. Em 1987, o conflito moçambicano atingia dimensões deveras preocupantes: a guerrilha controlava as províncias de Tete, de Nampula e do Niassa, fazendo ainda incursões destrutivas no sul do país.
18 No terreno, vivia-se agora a situação de impasse causada pelo fim da Guerra-Fria; sem ter quem os armasse, nenhum dos exércitos podia vencer. A situação humanitária deteriorava-se, com já cerca de dois milhões de refugiados no Malawi, e ameaçava estender-se àqueles países que só tinham acesso ao mar através de Moçambique. Os corredores de transporte de que o Malawi e o Zimbabwe dependiam, apesar de protegidos simultaneamente por forças militares de ambos e também da Tanzânia, não eram inteiramente seguros.
19 Mesmo perto do fim do processo, a ajuda humanitária só estava autorizada a entrar nas áreas controladas pela RENAMO por meios aéreos ou por estradas fronteiriças, praticamente intransitáveis, devido ao receio de que o governo aproveitasse essas vias para levar a efeito operações militares.
20 Cf. Fabrizio Dragosei, «Pax romana per il Mozambico» [05/10/1992], in Corriere della Sera, in http://www.santegidio.org/news/rassegna/00000/19921005_corsera_IT.htm: «E il Frelimo prendeva il potere. Per una curiosa coincidenza, i leader del fronte di liberazione avevano stretti legami con l’Italia, col movimento degli studenti, con Lotta continua e Potere operaio. Samora Machel, il primo presidente del Mozambico indipendente, era un frequentatore della sinistra romana; il ministro della Cultura e segretario del Frelimo, Chissano aveva studiato sociologia a Trento assieme a Renato Curcio e Margherita Cagol.»
21 Cf. Samora Machel, in Morozzo della Rocca, Mozambico, Una Pace per l’Africa, Prefazione di Arrigo Levi, Milano, Leonardo Internacional, I libri di Sant’Egidio, 2002, pp. 37, 38: «L’Italia è il nostro primo partner occidentale, che ci a dato grandi prove di amicizia.» Morozzo della Rocca refere ainda que «Gli italiani non investono in Mozambico, malgrado il legame con questo paese che da Roma ha ricevuto la pace» (p. 236) Refere ainda em nota (23, p. 244): «Ma nel commercio estero del Mozambico gli scambi con l’Italia si collocano intorno al 10% annuo.» (Morozzo remete para um estudo dele).
22 A importância que a Igreja Católica assumiu na resolução do conflito resultou não apenas do facto de ser a única religião com expressão territorial, mas também, recorde-se, porque muitos elementos da RENAMO se assumiam (e se assumem) como católicos (Dhlakama, antigo seminarista, é católico), por oposição ao ateísmo frelimista.
23 Cf. João Paulo II, «A Igreja reconhece como seu dever favorecer as legítimas aspirações de paz e de justiça», in L’Osservatore Romano, Vaticano, n.º 39, 25 de Setembro de 1988, p. 2 (506). Itálicos nossos.
24 Cf. ibidem.
25 Os contactos nunca cessaram. Em 1986, D. Jaime Gonçalves pediu à Comunidade que o ajudasse a fazer a paz, como nos conta A. Riccardi, num apontamento manuscrito: «3 maggio. All’improvviso si presenta don Jaime [Gonçalves] alla portineria di Sant’Egidio [...] 4 maggio. Jaime è venuto a Roma per cercare la pace. I vescovi si sentono interpellati. Il paese è in crisi. La RENAMO è passata alla guerriglia urbana con attentati anche a Maputo. Anche il governo e con il fiato corto. Crisi di consenso.» [cf. Morozzo della Rocca, op. cit., p. 77].
26 Cf. idem, p. 105: «Il Mozambico ha ora la forza per vincere la battaglia della pace. È per questo che Ella, Signor Presidente, ha invitatto tutti a lavorare per un processo di pace. Il nostro appoggio convinto, sebbene umile, è per questo processo di pace in qualsiasi sede, vicina o lontana. Siamo convinti che tra mozambicani è possibile capirsi e che il vostro governo ha la forza morale e politica per realizzare una pace generosa.»
27 Cf. idem, p. 42: «Di lì a poco, mentre incrementava attività umanitarie a favore del Mozambico, Sant’Egidio cominciò a prumuovere colloqui riservati tra dirigenti del governo di Maputo e responsabili della Santa Sede. È in questo contesto che si situa l’incontro, il 28 settembre 1985 tra Samora Machel e il papa, in Vaticano. L’udienza, improvvisa ed inattesa, fu organizzata in una triangolazzione tra leaders mozambicani, Sant’Egidio e Vaticano, mentre Samora era in volo da New York allo scalo di Roma.»
28 Cf. Andrea Riccardi, Santo Egídio, Roma e o Mundo, trad. de Gabriela Corte-Real, 1ª ed., Barcelos, Companhia Editora do Minho, 2000, pp. 74 e 75. Itálicos nossos. A leitura da situação de guerra feita por Riccardi situa-se na continuidade da tradição agostiniana: «As próprias guerras [...] são conduzidas tendo em vista a paz, mesmo por aqueles que se dedicam ao exercício da guerra, quer comandando, quer combatendo. Donde se evidencia que a paz é o fim desejado da guerra. Efectivamente, todo o homem procura a paz, mesmo fazendo a guerra; mas ninguém procura a guerra ao fazer a paz.» [Cf. Santo Agostinho, A Cidade de Deus, trad. de J. Dias Pereira, 2ª ed., Lisboa, FCG, 2000, vol. III, Livro XIX, cap. 12,p. 1909. Itálicos nossos.]
29 Aqui se apresenta sumariamente o resumo do processo de paz [para uma percepção mais completa, cf. Morozzo della Rocca, op. cit., cf. também Cameron Hume, Ending Mozambique’s War, The Role of Mediation and Good Offices, 1ª ed., Washington D. C., United States Institute of Peace, 1994; cf. ainda a importante publicação United Nations, The United Nations and Mozambique, 1992-1995, introd. by Boutros Boutros-Ghali, New York, Department of Public Information (United Nations), 1995]. O processo de paz foi precedido por algumas tentativas de diálogo, todas elas mal sucedidas. Saliente-se, todavia, o empenho dos governos do Quénia (na pessoa do seu Presidente, Daniel arap Moi), do Zimbabwe e do Malawi, bem como dos representantes das Igrejas cristãs em Moçambique (o Cardeal Alexandre dos Santos, o Arcebispo D. Jaime Gonçalves, o Bispo Anglicano Dinis Sengulane e o Pastor Jeremias Mucache). As primeiras conversações, agendadas para o dia 12 de Julho de 1989 em Nairobi, não se realizaram devido a uma ofensiva conjunta FAM-Zimbabwe no centro de Moçambique. Em Fevereiro de 1990, Dhlakama, numa visita a Itália para encontros com representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros deste governo conseguida com o apoio da Comunidade de Santo Egídio, declarou que nenhuma das partes poderia sair vitoriosa e que, portanto, era imperativo chegar a acordo. Em Março de 1990, numa visita aos EUA, também Chissano se dizia pronto para iniciar o diálogo. Com o apoio dos governos do Quénia e do Zimbabwe, novas conversações foram agendadas para o dia 12 de Junho de 1990, no Malawi, abortadas, novamente, desta vez por ausência da RENAMO. Com o consentimento e apoio do governo italiano, a Comunidade de Santo Egídio sugeriu então Roma, alternativa aceite por ambas as partes. Só então se pode dar início ao processo de paz.
A primeira ronda de conversações decorreu entre 8 e 10 de Julho de 1990. A segunda teve lugar entre os dias 11 e 14 de Agosto e nenhuma das delegações estava completa por nesse mesmo momento se travarem combates em Moçambique. As duas primeiras rondas foram marcadas pela ânsia demonstrada pela RENAMO em conseguir o reconhecimento da comunidade internacional. A terceira, prevista para Setembro, não se realizou. Em resposta, os observadores enviaram uma carta a ambas as partes, comunicando-lhes que, se o diálogo não fosse reatado em Novembro, poderiam sentir-se obrigados a emitir uma declaração pública, atribuindo responsabilidades pelo insucesso das negociações. A quarta decorreu entre 29 e 31 de Janeiro de 1991 e nela se desenrolou um debate aceso a respeito da parcialidade ou imparcialidade do trabalho da Joint Verification Comission (JVC). A quinta teve lugar entre 6 de Maio e 7 de Junho e esbarrou nas mesmas pedras de tropeço que as rondas anteriores. Ainda que se tivesse conseguido acordar a Agenda para a Paz, a recusa do governo em incluir nessa agenda os sub-itens pretendidos pela RENAMO teve como consequência um retrocesso na atitude desta perante a legitimidade do governo e, consequentemente, a suspensão do encontro. A tensão manteve-se na sexta ronda, decorrida entre 1 e 7 de Agosto. O rascunho do que poderia vir a ser o primeiro protocolo do acordo de paz proposto pelos mediadores foi recusado por ambas as delegações: pela do governo, argumentando que a intervenção da ONU no processo de implementação do acordo punha em causa a soberania; pela da RENAMO, que se recusava a reconhecer legitimidade ao governo. No dia 18 de Outubro pôde finalmente assinar-se o I Protocolo do Acordo de Paz. Este fixava a legitimidade do governo de Moçambique e acordava no estabelecimento de uma comissão composta por representantes do governo, da RENAMO, da ONU e de outras organizações e governos para supervisionar e monitorizar a implementação do Acordo. A oitava ronda de negociações (decorrida entre Outubro e Novembro) ficou marcada por um gesto desconcertante da delegação da RENAMO. Ainda desajeitada no que se refere a uma atitude concertada e diplomática, demonstrou incompreensão do papel que a equipa de mediação e as partes devem assumir ao entregar na mesa um documento com propostas de resolução inteiramente diferentes daquelas que tinha assinado apenas uma semana antes. Perante o risco do falhanço das negociações, ao mesmo tempo que a delegação do governo ponderava já o regresso a Moçambique, os mediadores consultavam uns e outros no intuito de esboçar um documento que contivesse as últimas propostas da RENAMO numa linguagem neutral, de modo a que o governo as aceitasse. Os seus esforços foram bem sucedidos, tendo a oitava ronda terminado com a assinatura do II Protocolo, o qual firmava os critérios para o reconhecimento dos partidos políticos. Na nona reunião foram resolvidos múltiplos assuntos, o primeiro dos quais foi a lei eleitoral. Superado o impasse sobre quem deveria conduzir o processo das eleições (uma vez mais, o governo afirmava que a participação da ONU implicaria desrespeito pela soberania moçambicana), no dia 20 de Dezembro de 1991, foi feita uma declaração conjunta de ambas as partes, comprometendo-se a realizar eleições - presidenciais e legislativas - um ano após a assinatura do cessar-fogo. Assentaram ainda em que o processo de paz envolveria a ONU e a OUA. Por fim, na última cimeira, resolveram-se as questões que haviam ficado em suspenso, tendo o acordo sido assinado a 4 de Outubro de 1992.
Na demora da resolução do processo - em que todas as questões institucionais foram meticulosamente tratadas - confirmou-se a inconsciência quer da FRELIMO, quer da RENAMO, por igual responsáveis pela mortandade que grassava em Moçambique. Uma vez mais na História da humanidade, o valor da ideia de instituição e os vários interesses em jogo sobrepuseram-se ao valor de cada ser humano afligido pelo conflito.
30 A paz e o amor são vividos como milagres, como a própria conversão o é. Cf. Arrigo Levi, «Prefazione» in Morozzo della Rocca, op. cit., p. 11: «[...] la storia di questa mediazione è dunque anche la storia [...] di una conversione: la conversione di anime indurite da anni e anni di spargimenti di sangue, di odio e di guerra, all’idea della pace e della riconciliazione [...].
[...] una mediazione diplomatica [...] è [...] un’opera di illuminazione cultural ed humana che richiede alla fin fine un atto di fede, da parte di chi lo provoca e di chi lo compie.»
31 A noção do que é contribuir activa e empenhadamente para a paz segundo a Comunidade de Santo Egídio pode surpreender algumas mentes habituadas a equacionar este tipo de processos por relação ao visível e ao palpável. A oração foi e é integrada por todos os membros da Comunidade como um meio de contribuir para a efectivação de um mundo melhor. Durante o processo de paz de Moçambique, a par das actividades exercidas pela Comunidade, sempre se rezou a oração da tarde - e isto porque a cultura da solidariedade é uma só e a promoção da paz um dos seus ramos [cf. Andrea Riccardi, op. cit, pp. 72 e 73]. A Comunidade de Santo Egídio é, desta forma, fiel aos princípios da Santa Sé: «A oração é o vínculo que mais eficazmente nos une: graças a ela, os crentes conseguem encontrar-se lá onde são superadas as desigualdades, incompreensões, rancores e hostilidades, isto é, diante de Deus, Senhor e Paz de todos. Ela, enquanto expressão autêntica do recto relacionamento com Deus e com os outros, é já um contributo positivo para a paz». [cf. João Paulo II, Os crentes unidos na construção da Paz (01/01/1992), in http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/messages/peace/documents/hf_jp-ii_mes_08121991_xxv-world-day-for-peace_po.html]
32 Cf. A. Riccardi, op. cit, pp. 14 e 15: «O ambiente familiar era tolerante, nem religioso, nem laicista, nem anticlerical».
33 Cf. idem, p. 16.
34 Cf. idem, p. 14: «Francisco é um importante companheiro de percurso, sobretudo porque se pretendia leigo, vivendo no meio de todos, a humildade, como “menor” entre os menores. São Francisco é o Evangelho sine glossa, a amizade com os pobres e, nos últimos anos, o diálogo com o Islão em Damieta, ao recusar a lógica do inimigo que caracteriza o espírito de cruzada. Francisco de Assis e a sua história mostram bem como o Evangelho pode ser a fonte de renovação da vida cristã». Itálicos nossos.
35 Cf. Comunidade de Santo Egídio, «La guerra, madre di tutte povertà» [s.d.], in http://www.santegidio.org/it/pace/pace3.htm: «Nella comprensione che la Comunità di Sant’Egidio progressivamente matura sul mondo, conflitto e povertà sono sempre più intimamente legati. Guerra è la “madre di tutte le povertà”, distruttrice dell’impegno umanitario per il futuro di interi popoli, guerra civile in cui i membri di uno stesso popolo non si riconoscono più come fratelli». Itálicos nossos. O que a Comunidade de Santo Egídio entende por guerra civil difere, pois, fundamentalmente, daquilo que a Ciência Política, a Sociologia e as Relações Internacionais entendem. Com efeito, ao limite, o Cristianismo, proclamando a fraternidade universal, não pode senão considerar toda e qualquer guerra como civil, porque fratricida.
36 A Comunidade de Santo Egídio não saiu do quotidiano moçambicano, desenvolvendo actualmente um importante projecto na área da saúde, na prevenção do HIV e apoiando os doentes já infectados com o vírus.
37 A Comunidade procurou que a paz fosse construída a partir de dentro, não por imposição externa, porque só deste modo seria uma paz livremente escolhida e assumida. Cf. Morozzo della Rocca, op. cit., p. 27: «Mentre il processo di pace angolano è stato in certa misura gisato dagli Stati occidentali che fungevano da mediatori, quello mozambicano si caractterizza per la scelta dei mediatori di non imporre alle parti docimenti, soluzioni, scadenze, ma di assisterle nel dialogo (in questo senso il processo di pace del Mozambico aveva un’africanità che quello angolano non aveva.)»
38 A unipolaridade planetária hoje vigente propicia, em teoria, a resolução mais rápida e eficaz de conflitos, nacionais ou internacionais, bem como uma uniformização do sistema democrático; mas, na prática, o número de conflitos aumentou em África. Há que compreender o risco de uniformização que a tentativa de implementação deste tipo de sistema acarreta, a qual se revela muitas vezes, de imediato, na incompatibilidade com as bases culturais de determinado povo. A lentidão torna-se, nesse caso, condição indispensável para o sucesso da transformação. O principal erro da FRELIMO ao procurar instaurar a “sociedade socialista” terá sido a pressa com que procedeu; igual problema se apresenta hoje ao país com a busca de implementação, a breve prazo, de um sistema democrático. A democracia em Moçambique não pode ser ainda vivida plenamente e corre, por conseguinte, risco de regressão, mesmo que esta possa vir a acontecer sob a aparência de um regime democrático e com apoios internacionais.
39 Cf. João Paulo II, Centesimus Annus, n.º 18, in Giorgio Filibeck, Direitos do Homem - de João XXIII a João Paulo II (1958 - 1998), trad. Pe. João Seabra e Isabel Almeida e Brito, 1ª ed.Cascais, Principia, 2000.
40 Cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Gaudium et Spes, n.º 78, in idem.
41 Em Dezembro de 1999 decorreram novas eleições, presidenciais e legislativas, novamente vencidas pela FRELIMO. Nas legislativas, a FRELIMO alcançou 48,54% dos votos (133 assentos) contra 38,81% (117 assentos) da RENAMO, não tendo nenhum outro partido ou coligação concorrente ultrapassado os 5% de votos a nivel nacional [cf. http://www.mozambique.mz/parlamen/index.htm]. Nas presidenciais, a distância entre os dois partidos encurtou, tendo Afonso Dhlakama obtido 47,71% dos votos contra 52,29% de Joaquim Chissano [cf. http://www.mozambique.mz/governo/eleicoes/finais.htm]. A proximidade dos resultados era óbvia; os números sugeriam a descentralização do poder. Segundo o sistema político vigente em Moçambique, resultante da sua Constituição, de tipo centralista, o Presidente nomeia os governadores das províncias, mesmo naquelas em que a oposição tenha alcançado resultados maioritários. Sentindo-se injustiçada, a RENAMO contestou a legimidade do resultado, bem como a transparência do processo eleitoral, apelando, como modo de protesto, a manifestações por parte dos seus apoiantes. Essas manifestações, que decorreram sobretudo no norte, reprimiu-as o governo com brutalidade e autoritarismo. Chissano respondeu negativamente às ambições descentralizadoras da RENAMO, fundamentando a sua recusa com o facto de a constituição moçambicana não ser de tipo federal. Já em Novembro, em Montepuez (Cabo Delgado), ocorreu a maior das situações de violência cometidas deste período de contestação: a morte de cerca de cem pessoas, encerradas numa cela com lotação para dez, durante dois dias, ao sol.
42 A análise antropológica revela-se, na maioria dos conflitos africanos, um precioso auxiliar da análise política. Segundo o antropólogo e estudioso da sociedade moçambicana João Pina Cabral, falta ainda um longo caminho para a paz em Moçambique, na medida em que os conflitos étnicos, em vez de resolvidos, foram encobertos. O poder continua nas mãos dos descendentes de uma aristocracia do sudeste africano, situação atestada pelo casamento de Graça Machel, membro da nova elite do sul de Moçambique, com Nelson Mandela, descendente de um príncipe; por Joaquim Chissano ser bisneto de um dos prinicpais vassalos do Gungunhana; pelo facto de o herdeiro deste ter sido governador de Gaza pela FRELIMO. [Cf. João Pina Cabral, «Será difícil denunciar crimes em Moçambique enquanto a FRELIMO respeitar as regras dos dadores internacionais», in Pública, n.º 373, 20 de Julho de 2003, p. 6] Segundo J. Pina Cabral, a paz só seria consumada se a FRELIMO consentisse na implementação de um modelo político mais descentralizado que conferisse maior autonomia às regiões e, desta maneira, diminuísse as tensões. Assim, a RENAMO poderia governar as muitas regiões em que é maioritária. Contudo, isto implicaria a alteração do sistema político, o que - afirma em simultâneo - não é viável, em virtude de os interesses dos E.U.A. e das potências europeias, em especial das escandinavas, no país não se coadunarem com o modelo federativo.
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