Tuesday, August 29, 2017

“Os retornados continuam a viver uma fantasia”


Isabela Figueiredo:

JOSÉ CARIA

É “um tanque de guerra”. Uma voz que dispara. Em 2009, introduziu outra narrativa sobre a experiência colonial. O seu romance “A Gorda” está na lista de cinco candidatos ao prémio da Associação Portuguesa de Escritores

Acabou de dizer que não gosta de fotografias em que o escritor parece bem comportado. Quer explicar?
Sou muito bem disposta, muito descontraída e não me revejo nada naquela ideia de que o escritor tem de ter um ar carrancudo, de que tem de se mostrar sério para granjear seriedade, de que é superior ao comum mortal.
A parte racional não se pode sobrepor ao corpo?
É isso mesmo. Não há separação entre intelecto e corpo. Aquilo que eu sou depende muito do corpo que tenho, e o corpo que tenho depende daquilo que sou. Isso é muito importante.
Se a narrativa colonial dos retornados não tivesse tido uma só versão, a de que os portugueses tratavam bem os africanos, teria escrito “Caderno de Memórias Coloniais”?
Sim. Desde pequena que queria escrever esse livro. Aos 13 anos, quando saí de Moçambique, já tinha consciência de que estava a viver situações limite, muito dramáticas... Havia algo que precisava de ser contado e eu queria contá-lo. Em África, já lia muito; e a parte da escrita é estimulada pelo facto de me ver afastada dos meus pais e dos meus amigos, entre os 13 e os 23 anos. Hoje, penso que os milhares de cartas que lhes escrevi foram importantes para desenvolver a expressão. Havia também o amor e o ódio ao meu pai, desde que percebi que ele não era o homem que eu desejava que fosse. Os gestos do meu pai na forma como interpelava os empregados eram bruscos e brutos. Isso magoava-me, enquanto menina, mesmo sem nenhuma formação além da que tinha em casa. Eu fui uma filha muito amada, o meu pai foi um excelente pai, um homem generoso, mas um mau cidadão: o colonialista.
Até ao “Caderno de Memórias Coloniais” (2009) quase nenhum retornado tinha esse discurso. A narrativa era sempre outra...
Sim, sem dúvida. Para mim, era um grande tabu. Debati-me com um grande dilema. Estou a falar do meu pai, aquele que eu amo e cujo amor não desapareceu.
Esperou que ele morresse?
Sim. Naquela altura senti-me uma traidora. Agora já não. Hoje, acho que fiz um bom serviço ao meu pai. Também tive de o defender, porque as pessoas olham para o meu pai como um monstro, o colonialista monstro. Não acredito em monstros. Na minha escrita não existem vilões absolutos. As pessoas não são totalmente más nem totalmente boas.
Sentiu que tinha aberto uma caixa de Pandora com “Caderno...”?
Quando publiquei o livro, no final de 2009, sabia que estava a publicar algo que não existia e que era perigoso até para mim, mesmo do ponto físico. Disse ao meu editor da altura, Osvaldo Silvestre (Angelus Novus): “Eu tenho medo de ir aos lançamentos. Tenho medo de ser atacada, de que me façam mal...” Eu sabia que ia manchar de tal forma a narrativa dos retornados que não ia passar incólume, e não passei. Se formos ler os fóruns dos jornais da altura é horrível. Chamaram-me coisas muito feias. Foi uma grande mácula a narrativa oficial.
Os retornados viviam uma fantasia?
E continuam a viver. Há aqui uma linhagem de narrativas, histórias contadas segundo uma fantasia colonial. “Aquele tempo era muito bom”. E era, para os brancos! Em África vivia-se numa bolha europeia.
Era o “África Minha”?
Era. E é a mesma bolha na qual se continua a viver hoje. Há brancos e portugueses, negros ou moçambicanos a viver uma vida europeia em Maputo e a ignorar a miséria alheia. Saímos do hotel Polana e temos gente a dormir na rua e a comer dos caixotes do lixo. Sempre foi assim. Mas agora percebo melhor porque sou adulta.
Porque é que escolhe a autobiografia?
Não é autobiografia. Chamemos-lhe uma neoautobiografia. Vamos pegar no Paul Auster. Como é que escreve o Paul Auster? Escreve exatamente como eu. Parte de uma experiência que viveu, verdadeira, e depois ficciona. O “Caderno...” é um livro de memórias e apesar disso tem coisas construídas. É verdade que parte da minha vida real. No caso de “A Gorda”, por exemplo, eu vivi experiências de rejeição. Mas aquela conversa que coloco no livro, e que as pessoas pensam que eu tive no autocarro com o David, essa nunca existiu. Mas fui rejeitada, de facto, por um homem por ser gorda.
“A Gorda”, apesar de ser sobre o corpo e o amor, situa-se de novo no universo dos retornados. Vamos continuar ler livros seus sobre este tema?
Sim. Porque isso marca a minha vida. Toda a gente tem na vida coisas que marcam, fendas. Isso é uma fenda na minha vida e eu não consigo fugir-lhe. Estou sempre a pensar naquele passado, naquela época. De certa forma vou sempre lá ter. Muitos dos meus amigos vieram de lá, e há uma linguagem que partilhamos…
Uma linguagem que exclui...
Nós, retornados, temos uma mania que é absolutamente reprovadora, como acusa uma amiga de Almada que não é retornada. É a de falar à preto uns com os outros. Isto é uma forma de nos identificarmos, como se fosse uma senha. Para as pessoas que estão de fora isto é horrível. Para nós é extraordinariamente irresistível. São momentos de grande intimidade, comunhão, que não se fazem em público.
Qual é o futuro para a palavra retornado?
A palavra retornado vai ficar na história. Vai dizer-se retornados como hoje se diz lutas liberais. Vai designar um conjunto de pessoas e um período histórico.
Ser chamado retornado era violento. A palavra foi evoluindo?
Quando cheguei, em 1975, não queria que ninguém soubesse que eu era retornada. Era um estigma. Na escola, a minha preocupação era apagar esse cadastro, o que foi fácil porque era boa aluna, e os retornados andavam muito à pancada. A evolução da palavra foi muito interessante. No início dos anos 80 o vocábulo já não era muito usado.
Reaparece com a literatura?
Sim, comigo e com a Dulce [Maria Cardoso].
Os estudos pós-coloniais interessam-lhe? 
Não. O que me interessa é escrever, mas acho bem que aproveitem o que escrevo, porque lhes é útil. Interessa-me escrever, viver, e usufruir dos prazeres da vida.
Como é que chega a esta escrita em que cada frase é um disparo?
Eu sou assim. Eu sou um tanque de guerra, como costuma dizer a minha amiga de Almada que me critica por falar à preto. Cada frase é um disparo. Não faço um esforço para falar assim. Não há uma intenção.
José Gil, o filósofo, atribui à sua escrita qualidades literárias e políticas ainda que a considere uma salvação, uma terapia. Concorda?
Concordo absolutamente. Acabei de escrever um conto sobre um situação para a qual não tenho solução, e eu arranjei-lhe solução. É profundamente libertador. Saio vencedora. Isso é bestial.
A literatura é mágica?
É. Tem o poder de criar, transformar, e no meu caso tem o poder de recriar o mundo que eu quero. Tenho poder para transformar o mundo através da palavra. Digo a mim própria todos os dias: “Eu tenho um poder e devo usá-lo”.
O que significa estar na lista de finalistas da APE?
Já ganhei o prémio!! Podem nem mo dar, nem ver o ‘dinheirinho’, mas já ganhei. Fui uma das cinco escolhidas entre 80 a 90 romances.

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