III JORNADAS LUSO-FRANCESAS EM CIÊNCIAS SOCIAIS ‘’Um mundo de crises’’1
Alomorfias da Paz: seus contornos até a actual crise político-militar em Moçambique
Autor: Dércio Tsandzana (Mestrando em Ciência Política, Sciences Po Bordeaux - França)
1Universidade de Coimbra, 28/10/2016
2 RESUMO Moçambique conseguiu a Paz há 24 anos, concretamente a 4 de Outubro de 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), assinado pelo então Presidente de Moçambique, Joaquim Chisssano e presidente da Renamo, Afonso Dhlakama. Na presente comunicação procuro através de uma perspectiva histórica abordar os caminhos trilhados por Moçambique para o alcance da paz, uma vez que o país é assolado neste momento por uma crise político-militar. Concretamente, procuro fazer uma radiografia de alguns momentos e aspectos marcantes que contribuíram para o actual momento de crise que se vive em Moçambique. Destaca-se ao longo do texto a existência de dois actores cruciais que continuam a ser as peçaschave para o alcance da paz, nomeadamente a Frelimo (Governo do dia) e a Renamo (maior partido da oposição). Ademais, o artigo procura mostrar as questões que imperam para que o país não esteja ainda em paz. Levantando-se a hipótese de que o país regrediu no processo da preservação da Paz devido ao clima de desconfiança mútua que se vive entre os actores acima referidos, bem como a existência de altos níveis de desigualdade (partilha das riquezas e bens sociais), consubstanciado pelas fragilidades verificadas no processo da descentralização do país. De igual forma, o texto vai enunciar e estudar as condições do diálogo para a resolução do problema que se pretende discutir.
3 I. INTRODUÇÃO De acordo com a chamada para as presentes jornadas, o debate sobre as “crises”, não é uniforme nem consensual. Aquilo que é ou não crítico depende da perspectiva em que a realidade é olhada e vivida, e da posição em que se encontra quem a olha e a vive. Além disso, aquilo que para uns é encarado como uma crise, para outros é perspectivado como uma oportunidade. Mendes (2005)2, no seu texto intitulado Subsídios para uma teoria das crises políticas, faz uma abordagem sobre os vários entendimentos que podemos ter do significado de uma crise, com destaque para a arena política, em particular. No mesmo texto, traz-se uma abordagem teórica de Pearson (1988)3 sobre as três dimensões assumidas pela crise: Por um lado, uma perspectiva meramente técnica que nos remete para a dinâmica estrutural, infra-estrutural, técnica e operativa de um sistema, onde se salientam e perspectivam os fenómenos, apelando às variáveis definidoras físicas e técnicas. Por outro lado encontramos outras duas perspectivas em que o objecto de análise transcende a materialidade técnica objectiva e se fixa na realidade humana associada aos fenómenos disruptivos: uma perspectiva psicológica pura em que a análise se centra nos aspectos cognitivos individuais associados aos fenómenos, na análise psicológica das suas dimensões e na explicação individualizada dos seus efeitos e consequências. Há ainda uma perspectiva sócio-política na qual a crise é encarada como uma quebra colectiva do sentido partilhado e da estruturação dos papéis sociais e onde se verifica uma transformação, ainda que marginal da ordem social, da liderança e dos valores e crenças tidas como comuns (Mendes, 2005). Na nossa abordagem será utilizada a última perspectiva, no sentido em que vai olhar para o país numa dimensão social e política, tendo como base os actores que contribuem para o processo da Paz em Moçambique, suas fragilidades e pontos fortes. 2 António Mira Marques Mendes - 4º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Portugal 3 Pearson C. M. Reframing Crisis Management, Academy of Management Review, Janeiro, 1998
4 Para o caso de Moçambique, encontramos que este é um país que conheceu, tal como outros países Africanos, vários momentos conturbados da sua criação como Estado, tendo em conta o seu passado histórico. Este sempre se mostrou como um processo inacabado e nesse percurso não faltam momentos de crise ou de dificuldades que coloquem em causa essa construção. No que a paz diz respeito, sustento-me em Brazão Mazula, que no seu livro “A Universidade na lupa de três olhos: ética, investigação e paz”, lançado em 2015, faz uma análise sobre os 20 anos de Paz em Moçambique e questiona se é possível eliminar a apetência ou tendência de solução dos conflitos por via da guerra? A resposta é possível com forte vontade política. No mesmo livro, Mazula coloca várias interrogações sobre as euforias que podem ter surgido com o momento. A partir de Adorno (apud Mazula 2015), o autor revela que as duas décadas de paz construíram uma consciência moçambicana madura, enraizada e cidadã, de que os motivos que haviam levado ao “horror” da guerra dos dezasseis anos não se justificam mais. Pode-se afirmar que durante os vinte anos prevaleceu a racionalidade da convivência na diferença das opções ideológicas e partidárias, uma vez que adoptado o “pluralismo de expressão e organização políticas democráticas”, no espírito do Protocolo II do Acordo Geral de Paz. A presente comunicação vai se sustentar no Acordo Geral de Paz (AGP) que, segundo o autor que temos vindo a citar acima, o mesmo foi construído num misto de aproximação antropológica com diálogo estratégico passivo, pois é difícil de entender como um dos ex-beligerantes ou os dois, decorridos vinte anos de Paz, pretendam romper com o compromisso de privilegiar o método de diálogo e de colaboração mútua na solução dos problemas do país, constantes dos Protocolos I e II do AGP. Por outro lado, dão a entender que o diálogo não foi necessariamente comunicativo. O desafio é de construção ou consolidação de confiança mútua (Mazula, 2015). Assim, procuro abordar os caminhos titubeantes que Moçambique vem atravessando no processo da consolidação da Paz, num momento delicado em que o país regista uma grave crise políticomilitar, aliado a crise económica e social generalizada. Diante dos pressupostos acima, percebe-se que a abordagem da crise política em Moçambique e consequente falta de Paz deve ser analisada não só sob o pressuposto da existência ou ausência da guerra, mas, também da falta de confiança entre os principais actores e das diferenças sociais que podem agudizar a existência de um conflito.
5 II. CONTEXTUALIZAÇÃO A Paz da reconciliação ou acordo do desacordo?
A palavra reconciliação pode ter vários significados, dependendo do contexto. No contexto da teologia Cristã, é um elemento de salvação referente aos resultados da expiação. A reconciliação é o fim da separação entre Deus e a Humanidade causada pelo Pecado Original. Mas, para a presente comunicação olha-se para este capítulo numa perspectiva política do termo, onde procuro entender se houve ou não reconciliação entre as partes envolvidas no processo de paz. O fim da guerra colonial e a proclamação da Independência (25 de Junho de 1975) marcou um dos momentos mais marcantes em Moçambique, contudo, essa fase viria a conhecer um revês político muito grande quando em Fevereiro de 1976 iniciava uma guerra de agressão que foi movida pela Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) contra o Governo liderado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e já em 1980 dava-se a cessação do apoio da exRodésia (actual Zimbabwe) à Renamo. Passada esta fase, um dos primeiros passos para a pacificação e alcance da Paz em Moçambique deu-se a 16 de Março de 1984, tendo como protagonistas o Governo da Frelimo e o Governo da África do Sul, na assinatura do Acordo de Incomati, que pressupunha a cessação de apoio por parte da África do Sul para a Renamo e de Moçambique para o ANC. Mas, só depois de várias tentativas de aproximação e mediação, particularmente intensas durante o ano de 1989, foi apenas no ano seguinte que se iniciaram as conversações directas que iriam culminar com a assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma.
A 19 de Outubro de 1986 morre o primeiro Presidente moçambicano, Samora Machel, num acidente de viação, uma morte que 30 anos depois permanece com causas aparentemente desconhecidas e que trouxe um desafio para o processo de Paz em Moçambique, visto que sucede numa altura em que o país via-se numa situação instável e inseguro.
Em 1992, concretamente a 4 de Outubro, entra em cena Joaquim Alberto Chissano, o então presidente da República de Moçambique (1986-2005), e Afonso Dhlakama, presidente da Renamo, que encontrando-se em Roma sobre a presidência do governo italiano, na presença do
6 ministro dos negócios estrangeiro da República italiana e na presença de Robert Mugabe, Ketumile Masire, George Saitoti, Roelof Botha, John Tembo, Ahmed Haggag, assinavam o Acordo Geral de Paz (AGP), que mais tarde viria a ser transformado em lei4. De acordo com o próprio AGP, aceitaram como obrigatório os seguintes documentos que constituem o acordo: • Protocolo 1 (dos princípios fundamentais) • Protocolo 2 (dos critérios e das modalidades para formação e reconhecimentos dos partidos políticos) • Protocolo 3 (dos princípios e das leis eleitorais) • Protocolo 4 (das questões militares) • Protocolo 5 (das garantias) • Protocolo 6 (cessar fogo) • Protocolo 7 (da conferência dos doadores) Aceitaram igualmente como partes integrantes do acordo de paz de Moçambique os seguintes documentos: • Comunicado conjunto do dia 10 de Julho de 1990; • Acordo de 1 de Dezembro de 1990; • Declaração do governo da República de Moçambique e da Renamo sobre os princípios orientadores de ajuda humanitária, assinando em Roma, aos 16 de Julho de 1992; • Declaração conjunta assinada em Roma, aos 7 de Agosto de 1992. O principal objectivo do AGP foi de pôr termo ao sistema mono-partidário que oficialmente, acabara já em janeiro de 1990 e iniciava, deste modo, o sistema multipartidário, democrático, onde a última voz a ressoar é a do povo. A busca do entendimento consistia na superação das divergências, permitindo a consolidação da identidade nacional. As partes comprometiam-se, assim, respeitar a unidade nacional como todo estruturado, a identidade e a legitimidade das eleições multipartidárias, bem como os princípios de democracia internacionalmente reconhecidos e a estabilidade política como garantia do desenvolvimento sócio-económico. Este facto deu então espaço para que dois anos depois, concretamente entre 27 a 29 de Outubro de 1994, se realizassem as primeiras eleições presidenciais e legislativas, ganhas pela Frelimo. 4 Lei n.º 13/92 de 14 de Outubro
7 Porém, os resultados obtidos pela Renamo nas eleições de 1994 e o equilíbrio entre esta e a Frelimo surpreenderam muitos analistas e a própria Frelimo, para quem este movimento não podia ter uma base social interna e seria apenas um instrumento de desestabilização criado e dirigido pelos regimes da Rodésia e África do Sul (Brito, 2014).
O AGP foi um acordo que, tal como mostramos acima, apresentava uma série de compromissos a serem respeitados pelas partes envolvidas, mas que a realidade mostra a existência de escamoteamento de alguns desses princípios, o que agudiza sobremaneira o processo da paz em Moçambique. A título de exemplo, a integração das forças residuais da Renamo no exército moçambicano sempre foi um tema inacabado e por conseguinte o desarmamento da Renamo também. Assim, fica claro que um dos objectivos deste acordo não foi alcançado e as partes continuam desavindas, daí pode-se depreender que o AGP é um acordo do desacordo.
A Paz das Eleições e a crise interna da Renamo Passados alguns anos de (aparente) prosperidade e reconhecimento como um dos países que melhor soube preservar a Paz, Moçambique viria em 2012 a ser assolado pelo início de uma profunda crise política que minou e tirou todo o brilho que o país construiu em mais de duas décadas, desde 1992. Os processos eleitorais são cobertos de reivindicações e desconfianças desde 1994, nos quais a Renamo sente-se como injustiçada e roubada em quase todos os processos. Em 1998, a Renamo decidiu boicotar as primeiras eleições autárquicas. Se for verdade que havia problemas com a alteração dos rumos da descentralização decidida pela Frelimo, assim como com a lei eleitoral e a composição dos órgãos de gestão eleitoral, não é menos verdade que, na impossibilidade de alterar o curso dos eventos, teria sido lógico optar por conquistar o máximo de municípios possível, para obter uma base de governação local a partir da qual se encontraria numa posição mais favorável para consolidar a sua influência no seio do eleitorado. Outro caso interessante foi o processo de negociações que se seguiu à contestação dos resultados eleitorais de 1999. A Renamo, que exigia, entre outras reivindicações, o direito de nomear os governadores nas seis províncias onde tinha obtido uma maioria de votos, acabou por rejeitar uma proposta de compromisso e abandonou as negociações, perdendo ao mesmo tempo a
8 possibilidade que estava em negociação de propor nomes para fazerem parte de conselhos de administração de empresas do sector público. (Brito, 2014) A crise iniciada em 2012 surge em virtude do aproximar dos pleitos eleitorais autárquicos de 20 de Novembro de 2013 nos quais a Renamo boicotou (mais uma vez) a sua participação por considerar que os processos eleitorais em Moçambique, tal como referimos no início deste capítulo, são todos viciados e com o sistema eleitoral vigente na altura ela (a Renamo) não ganharia as eleições. No rol das reivindicações constava a partidarização da lei eleitoral, nomeadamente uma presença maioritária dos partidos com representação parlamentar na Comissão Nacional de Eleições (CNE) e menor peso da sociedade civil, o que a Frelimo não aceitou na altura, embora essa mesma sociedade civil fosse representada por organizações fortemente partidarizadas. Para além da questão eleitoral, a crise surgiu em virtude de a Renamo e o próprio Dhlakama encontrarem-se num momento de crise interna e que precisavam, de alguma forma, ressurgir para mostrar o seu poderio político. No meio dos dois proeminentes actores, já havia surgido em 2009 uma das maiores atracções políticas, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM). Este partido, formado na Beira, capital de Sofala, na região centro de Moçambique, em Março de 2009, resultou da expulsão de Daviz Simango da Renamo pelo líder desta formação, Afonso Dhlakama (Chichava, 2010). Com rompimentos atrás de rompimentos, o diálogo não surtiu o efeito desejado e o parlamento acabaria por aprovar em definitivo a lei que viria a regular as eleições autárquicas de 2013 e gerais (presidenciais e legislativas) de 2014, perante divergências entre as três bancadas parlamentares. Desta forma, as eleições tiveram como principais partidos: a Frelimo e o Movimento Democrático de Moçambique que concorreram em todas as autarquias. Na mesma época, a Renamo reeditava a estratégia de pressão política, através do uso da força militar, um facto que fez com que as eleições autárquicas decorressem num clima de medo e tensão e criando expectativas alarmantes para as eleições gerais que seriam a 15 de Outubro do ano seguinte, visto que as eleições deviam decorrer em todo o país, incluindo nos locais onde Renamo protagonizava ataques armados. Por outro lado, pode-se dizer que a Renamo começou as suas operações militares, sempre como uma táctica defensiva.
9 Numa abordagem sugerida por Tsandzana (2015)5, existem dois níveis que norteiam a paz das eleições. O primeiro nível diz respeito aos actores onde encontramos um cenário semelhante ao de 1992, no qual os actores são os mesmos, ou seja, o partido Frelimo que comanda os destinos do país e a Renamo, maior partido da oposição, facto que só aconteceu após se converter em partido político em 1992. Foram esses actores que sentaram (mais uma vez) à mesa do diálogo para resolver os diferendos políticos que opunham os dois beligerantes, algo que aconteceu sem abertura para opiniões diversas que não envolvam somente os políticos, sob o risco de estar-se a discutir assuntos que só deverão, no final do dia, beneficiar as duas partes num assunto de interesse e dimensão nacional. O segundo nível refere-se aos comandos do diálogo, onde verificamos duas velocidades. Por um lado encontramos um diálogo ''moribundo'' que se fez sentir em mais de cem rondas negociais no Centro de Conferências Joaquim Chissano, e a outra velocidade que era impulsionada pelas lideranças de cada um dos partidos, se assim o desejassem. Um dado sui generis em todo este processo é o facto dos ataques armados entre as partes não terem cessado enquanto decorria o diálogo, tendo até se verificado o assalto à base militar da Renamo em 2013. No mesmo diapasão, aproximavam-se as eleições gerais e o início da campanha eleitoral e para permitir que a Renamo participasse do processo, o Governo instruiu o partido no poder para aceitar a reivindicação sobre o pacote eleitoral colocado pela Renamo, bem como amnistiar todos actores que participaram do conflito. Este cenário deu resultado ao Acordo de Cessação das Hostilidades Militares (ACHM), assinado no dia 5 de Setembro pelo então Presidente da República Armando Guebuza e o presidente da Renamo, Afonso Dhlakama. Na ocasião anunciava-se a criação de um fundo da paz para moldar a nova realidade que o país conhecia6. A Paz das eleições pode ser descrita num cenário em que se procurou a todo custo em 2014 alcançar-se uma suposta Paz para que permitisse a Renamo e o seu líder participarem do processo eleitoral que se avizinhava. Assim, o que vimos foram eleições que mesmo dentro do novo pacote eleitoral que permitiu a “paridade” nos órgãos de gestão e administração eleitoral a todos os níveis. O que se assistiu foi um processo titubeante, com erros que roçam a falta de 5 O artigo faz uma abordagem do momento conturbado vivido por Moçambique desde 2013 e procura traçar duas linhas para explicar essa realidade. 6 Jornal Notícias (9 de Setembro de 2014)
10 profissionalismo à todos os níveis (desaparecimento de editais; boletins de voto incompletos; enchimento de urnas), falta de preparo dos partidos políticos e uma desorganização organizada generalizada de todo o processo. A Paz da estabilidade? Debalde, o tempo mostrou que o processo da pacificação de Moçambique não seria sanado com o assinar de mais acordo. A realidade actual prova-nos que mesmo com a “paridade” eleitoral, a Renamo não ganhou as eleições e a crise política intensificou-se. Como consequência, o conflito armando entre as forças governamentais e os homens armados da Renamo intensificava-se no centro do país. Na mesma altura, a Renamo a recusar os resultados eleitorais, exigindo que lhe fosse permitida a governação nas províncias nas quais ganhou as eleições: Sofala, Manica, Tete e Zambézia no centro do país e Nampula e Niassa, no norte do país. Particularmente, o período que se viveu logo a seguir a eleição de Filipe Nyusi como Presidente da República, foi manchado por duas tentativas de assassinato ao líder da Renamo7, bem como a tentativa fracassada de desarmar forçosamente a Renamo, o que se mostrou como uma prática que em nada resolveria a questão da Paz no país. De volta a mesa do diálogo, iniciou-se uma nova maratona de busca da Paz tendo já como actores, Filipe Nyusi, presidente eleito que assumiu a Paz como o seu grande desafio8, e mais uma vez Afonso Dhlakama, candidato derrotado. Sob o cume de governar as seis províncias nas quais saiu-se vencedora, a Renamo queria a todo custo que o Governo da Frelimo aceitasse essa pretensão. Foram então escalonados de forma prioritária três pontos de agenda: (1) a governação das províncias ganhas pela Renamo; (2) despartidarização do Estado e (3) desarmamento da Renamo e consequente integração nas forças armadas, que voltaram a ter os mesmos actores de 1992. Desde Abril de 2015, em rondas progressivas a dialogar, pouco foi alcançado no concreto e o 7 O primeiro ataque deu-se no dia 9 de Setembro de 2015 e o segundo teve lugar no dia 25 do mesmo mês na zona centro do país 8 ‘’ (…) A Paz, condição primária para a estabilidade política, desenvolvimento económico, harmonia e equidade social. Estas conquistas são sólidas por serem abraçadas por todos os Moçambicanos. Mas nenhuma conquista pode ser considerada definitiva. (…) Um governo que privilegie a paz, a paz e ainda a paz e promova o diálogo acima de disputas domésticas pelo poder…’’ - 15 de Janeiro de 2015
11 rompimento foi o cenário vivido até Maio de 2016 com a constituição de novas equipas do diálogo político. Nada em concreto mudou o cenário, mas abriu-se com as reivindicações da Renamo um novo capítulo de debate político sobre a descentralização no país. Este é um tema que tem vindo a ser estudado em larga escala por alguns académicos moçambicanos. Forquilha (2007) procurou analisar o impacto das reformas de descentralização no processo de governação local, argumentando que existem, entre outros, dois factores importantes que concorrem para o fraco impacto das reformas em curso: a influência da trajectória do “Estado patrimonializado” no processo de governação local e o fenómeno da reprodução, pelas elites no poder a nível local, de práticas autoritárias do passado nos novos espaços constituídos no âmbito das reformas de descentralização. Segundo Faria e Chichava9, umas das críticas que é feita ao processo de descentralização em Moçambique prende-se com o princípio de gradualismo na municipalização que é visto instância como manobra política para não se municipalizarem aquelas autarquias que nada ou pouco representam os interesses do partido no poder. Adicionalmente, verifica-se uma disparidade na canalização de fundos do nível central para os Municípios, onde chegamos a verificar que municípios pequenos no poder da Frelimo beneficiam de grande apoio se comparado com outros sob o poder da oposição, como são os casos de alguns municípios da província de Gaza dominados pelo partido no poder, comparado com a Cidade da Beira que é dominado pela oposição. Um dos grandes debates até à data é sobre o tipo de descentralização que se pretende para o país. Há clivagens e conflitos quanto ao processo de democratização e descentralização, que se acentuaram ou tornaram visíveis com o fim do processo de paz e o evoluir do processo de democratização (Faria e Chichava, 1999). Ainda que o processo de descentralização tenha tido origem no seio da Frelimo antes de os doadores terem elegido a descentralização como prioridade ou condição da ajuda a Moçambique, é significativa a resistência no seio da Frelimo quanto à necessidade da descentralização e 9 Num artigo intitulado “Descentralização e cooperação descentralizada em Moçambique”, os autores fazem uma análise comparativa incluindo outros estudos de caso (Ghana e Mali) sobre os desafios da descentralização em África
12 sobretudo as divergências quanto ao tipo de descentralização, os benefícios e desvantagens da mesma, e quanto à sua evolução: clivagens entre centralizadores e não-centralizadores quanto ao grau de descentralização; clivagens entre estruturas superiores e de base da Frelimo e conflitos de liderança no partido. Faria (idem) defende que alguns, particularmente no seio da Frelimo e da administração, defendem que a descentralização comporta sérios riscos para a manutenção da unidade do Estado (receios de regionalismos e separatismos) e para a multiplicação aos níveis regional e local das vicissitudes da administração central (burocracia falta de capacidade, corrupção). A descentralização económica, política e administrativa implica necessariamente mudanças significativas na distribuição e níveis de poder, pelo que pode ser uma potencial fonte de conflito. Para a Renamo, principal força da oposição num sistema praticamente bipartidário, a descentralização comportaria, em princípio, uma grande vantagem: a de lhe abrir as portas do poder, ainda que a nível local. Imbuído no mesmo espírito de governação autárquica, após promessas em comícios e tentativas falhadas, a Renamo acabou adiando a sua opção de poder governar forçosamente e regressava à mesa do diálogo para discutir uma possibilidade de se aprofundar a verdadeira descentralização no país, com destaque para a eleição de Governadores Provinciais, diferentemente do que acontece agora com a indicação presidencial. Procedeu-se então a um novo modelo de diálogo com a indicação de duas novas equipas negociais, e sob orientação directa dos seus líderes. Assim, as questões de forma começavam a ganhar corpo, com destaque para a definição de uma nova agenda ao mais alto nível e a inclusão dos mediadores internacionais para o diálogo. A agenda para a Paz voltava a ser desenhada e a Renamo regressava a sua intenção de governar as províncias nas quais venceu como ponto central do diálogo e por sua vez o Governo levantava o desarmamento da Renamo como elemento fulcral do diálogo. Em meio a toda a incerteza sobre os camimhos para a paz, levantou-se um novo debate que estava a ser negligenciado no país, a descentralização. Um debate que começou a ser assumido como central para a resolução do problema da representação e partilha de poder, dois pontos centrais reclamados pela Renamo. Assim, mediadores aceites, o diálogo para a Paz avança até ao
13 preciso momento que se publica esta comunicação10, mas, nada se pode ter como garantia de que será desta em que a Paz pode ser estabilizada, se partirmos do pressuposto que o modelo permanece o mesmo, ou seja, com dois actores principais e com mediadores internacionais tal como foi no passado, o que pode nos fazer referir que estamos diante de ‘’uma paz entre a Frelimo, a Renamo e os estrangeiros’’, visto que a base de apoio dos dois maiores partidos não é nem a metade da população moçambicana. Contudo, a pressão no actual modelo de diálogo surge de todos os lados e tem uma ligação económica, visto que o Governo precisa da Paz para poder estabilizar a economia que se ressente com uma crise aguda devido às dívidas ocultas contraídas pelo anterior Governo e que ditaram a suspensão de todo tipo de apoio internacional pelos doadores. Essas dívidas são segundo Michel Cahen11, a demostração do início de uma segunda ‘’Guerra em Moçambique’’. Outro dado que mina o processo da conquista da Paz é o assassinato de Jeremias Pondeca (8 de Outubro), membro do Conselho de Estado e da comissão mista de negociações para a paz que era tido como uma das figuras fundamentais na equipa que prepara o encontro entre Filipe Nyusi Afonso Dlhakama. Aliado a este assassinato, cresce a desconfiança da existência de esquadrões da morte que são tidos como grupos de criminosos mandatados por facetas políticas para amedrontar ou eliminar fisicamente membros de partidos políticos (Renamo e Frelimo) ou de cidadãos que pensam de forma diferente e/ou independente ao regime governamental do dia. Paradoxalmente, a Renamo continua a ter nas armas o seu trunfo de pressão político e o seu desarmamento completo não se antecipa como um processo fácil e rápido e enquanto isso os ataques contra civis não cessam e a insegurança generalizada cresce em todo o país.
10 28 de Outubro, Universidade de Coimbra - Portugal 11 "Significa que desde 2012, quando a segunda Guerra estava só a começar, o Poder já tinha escolhido a via militar". "O esforço de rearmamento começou naquele momento, não é de hoje em dia". – Africa Monitor (20.10.2016)
14 III. O QUE FALHOU? Partindo do pressuposto que a finalidade de um diálogo não é apenas dialogar, mas sim o conhecimento da verdade (em filosofia), ou a resolução de um problema (em outras ciências humanas), encontramos em Moçambique um cenário que em nada contribui para a pacificação do país, caracterizado pela desconfiança permanente que se regista entre os principais dois actores, Frelimo e Renamo, embora existam três grandes forças políticas. Aliado a isso, recorremos à história e percebemos que são actores com um passado de guerra e caracterizado pelo uso da força para o alcance dos seus objectivos políticos. O recurso a violência traduz a incapacidade dos protagonistas construírem consensualmente as regras de base da convivência democrática nas condições específicas de Moçambique. O processo da Paz em Moçambique continua imperada no uso de uma linguagem de crispação que mostra a falta de abertura por não se poder prever o que pode suceder ao abrir mão do que cada actor possui como trunfo político, ou seja, tanto o Governo, como a Renamo, não estão claros do que vai ser o futuro da paz no país. Aliado ao que foi dito anteriormente, a Renamo continua a ser um partido que com o avançar do tempo não conseguiu se reinventar ou acomodar-se ao sistema político nacional, visto que continua a ser um partido que encontra nas armas uma alternativa para exercer a sua influência política. Outro dado de realce que impera para a Paz em Moçambique preza-se com a existência de alas políticas radicais de cada uma das partes, visto que tanto dentro do Governo assim como por parte da Renamo existem aqueles que preferem ver o país na guerra, do que mostrar fragilidade política em qualquer cedência. Dito de outra forma, há quem acredite, por exemplo, que a propalada solução Savimbi12 é a melhor opção para o diferendo da Paz, ou seja, assassinar Dhlakama pode ser a salvação do actual momento, mas já foi provado tanto no reinado de Armando Guebuza, como no de Filipe Nyusi que está opção não é certeira. Continua a não existir capacidade e vontade política de fazer-se cedências em nome da Paz, tudo devido ao primeiro elemento levantado neste capítulo que se fundamenta na desconfiança existente entre os 12 Jonas Malheiro Savimbi (Munhango, Bié, 3 de Agosto de 1934 — Lucusse, Moxico, 22 de Fevereiro de 2002) foi um político e guerrilheiro angolano e líder da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) durante mais de trinta anos. Foi morto em combate a 22 de fevereiro de 2002, perto de Lucusse na província do Moxico, após uma longa perseguição efectuada pelas Forças Armadas Angolanas.
15 dois actores, bem como a pressa de se pretender resolver o problema de forma parcial e não conjuntural por forma a acomodar os interesses políticos e económicos que favoreçam a Renamo e o Governo do dia. Alguns analistas acreditam que o falhanço da Paz em Moçambique deveu-se mesmo a má implementação do AGP, por exemplo, Joseph Hanlon13 reparou numa entrevista que o acordo de paz foi assinado quando ninguém sabia que Moçambique tinha recursos minerais. Dhlakama e seus generais querem uma fatia. Além disso, Dhlakama sempre quis algum poder político – em particular o poder de nomear governadores ou outras figuras.
13 Joseph Hanlon (nascido em 1941) é um cientista social e professor titular de Política de Desenvolvimento e Prática na Universidade Aberta, Milton Keynes, Reino Unido. Residiu em Moçambique por períodos consideráveis e é uma das pessoas mais experientes no mundo de língua Inglês sobre os assuntos correntes daquele país e história ao longo das últimas décadas.
16 IV. CONCLUSÃO O presente artigo nos mostra, por um lado, que em Moçambique não tinha um ‘’verdadeiro’’ acordo de paz, se não, acordo de ‘’trégua’’, por isso a Paz continua até hoje efémera Um acordo de Paz sem democratização, gerido por um regime que criou fossos de exclusão muito elevados. Ademais, o processo pela Paz em Moçambique não pode continuar a basear-se nos mesmos moldes alcançados de 1992 com apenas dois actores políticos, visto que o contexto político, económico e social mostra-se alterado. A revisão da Constituição da República e as eleições de 2019 podem, dessa forma, reservar mudanças profundas na forma de eleição dos governadores, uma vez que a eleição directa dos governadores provinciais pelos cidadãos é um sinónimo de maior legitimação do poder. Esta realidade ganha maior consistência pelo facto do Presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, ter designado recentemente uma equipa de trabalho14 para analisar o processo da descentralização no país, na óptica do partido Frelimo, com vista a tornar mais interventiva a participação do cidadão. Aliado a esse pressuposto é preciso destacar a recente entrevista de Michel Cahen15, um dos principais historiadores e politólogos sobre Moçambique que não vê solução para a crise política moçambicana até às próximas eleições legislativas, em 2019. Para Cahen, a comunidade internacional "em geral ainda prefere a manutenção do poder da Frelimo", ignorando sinais de degradação dentro do movimento, por considerar o partido "habituado" a gerir a relação com as grandes multinacionais, o que é "melhor para o capitalismo internacional". Avança dizendo que apesar dos esforços de democratização da sociedade civil moçambicana "hoje em dia, na partilha internacional do poder, as condições não estão reunidas" para uma maior democratização. De acordo com Brito (2014), a trajectória dos dois principais partidos, a Frelimo e a Renamo, desde a celebração do AGP e os desenvolvimentos recentes que se traduziram na entrada na cena política de um novo actor, o MDM, mostram que a consolidação da paz em Moçambique é um 14A equipa é constituída por membros da Comissão Política, Comité Central e outros quadros seniores especializados em matéria de Administração Pública e Poder Local. (Jornal Notícias) - 09/06/2016 15 Michel Cahen é Director de Investigação do Centro Nacional de Pesquisa Científica de França, Investigador associado na Escola de Altos Estudos Hispânicos e Ibéricos da Casa de Velasquez, em Madrid e Investigador convidado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
17 verdadeiro desafio. Cada um dos actores tem, logicamente, interesses diferentes e não parece que qualquer um deles tenha a capacidade suficiente para se impor eliminando os restantes. Fica, pois, a alternativa da convivência dentro de regras e práticas aceitáveis por todos, o que significaria avançar no sentido da democratização do sistema político, da formulação de mecanismos adequados de representação dos interesses dos cidadãos e do respeito pelas normas instituídas, o que está em contradição total com a crise que o país vive actualmente, centrada numa confrontação armada entre o governo da Frelimo e a Renamo. Aliado a isso, persiste o grave e antigo problema da partilha de poder dentro do próprio Governo, visto que a confiança política continua a ser determinante para a ocupação de alguns cargos de poder, uma fórmula exclui em grande parte alguns actores importantes que se sentem à margem do sistema político. Por fim, o problema da descentralização mostra-se como o ponto fulcral para o imbróglio da Paz, tendo em conta que uma grande franja dos cidadãos não se sente representado pelo actual modelo de eleição dos seus governantes. Contudo, este facto não pode significar divisão do país como é advogado por algumas facções defensoras do regime do dia, mas sim, maior representatividade e uma genuína participação política e cívica.
18 V. BIBLIOGRAFIA 1. AWEPA. (1993). Acordo geral de Paz de Moçambique de 1992. Maputo: T. Hansma - Revista militar (s/d). Conflitos internos: resolução de conflitos. 2. BRITO, Luís, Uma reflexão sobre o processo de Paz: Desafios para Moçambique: 2014, IESE, 2014, Maputo, (pp. 23 - 39) 3. CHICHAVA, Sérgio, Movimento Democrático de Moçambique: uma nova força política na democracia moçambicana, Cadernos do IESE, Maputo, 2010 4. FARIA, Fernanda et al, Descentralização e cooperação descentralizada em Moçambique, Maputo, 1999 5. MAZULA, Aguiar, Quadro institucional dos distritos municipais: Autarquias Locais em Moçambique - Antecedentes e Regime Jurídico, Maputo, 1998 6. MAZULA, Brazão, A Universidade na lupa de três olhos: Ética, Investigação e Paz, Imprensa Universitária, Maputo, 2015, p. 74 7. MENDES, A. M. M. (2005, Setembro). Subsídios para uma teoria das crises políticas. In SOPCOM 2005: 4º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (pp. 765-774) 8. THOMPSON, J.B., Political Scandal: Power and Visibility in the Media Age, Polity Press, London, 2000 Pesquisas na Internet a) Entrevista à Joseph Hanlon: Macua Blogs (02.02.2016) - http://bit.ly/29a1AvX b) Entrevista à Michel Cahen : Africa Monitor (20.10.2016) - https://goo.gl/IBnjGe c) Entrevista à Joseph Hanlon : Macua Blogs (02.02.2016) - https://goo.gl/DMY5qB d) FARIA, Fernanda et al, ‘’Descentralização e cooperação descentralizada em Moçambique,’’ Maputo, 1999 – Artigo disponível em - http://bit.ly/2975LIe e) FORQUILHA, Salvador, Remendo Novo em Pano Velho: O Impacto das Reformas de Descentralização no Processo da Governação Local em Moçambique - Conferência Inaugural do IESE “Desafios para a investigação social e económica em Moçambique”, Maputo, 2007 – Artigo disponível em - http://bit.ly/294qCyu f) TSANDZANA, Dércio: “Cenário político moçambicano: Percurso e perigos”, Maputo, 2015 - Artigo disponível em - https://goo.gl/m9nRiT
19 Legislação I. Constituição da República de Moçambique (CRM), 2004 II. Acordo Geral de Paz, Lei n.º 13/92 de 14 de Outubro III. Acordo sobre a Cessação das Hostilidades Militares, Lei n.º 29/2014 de 9 de Setembro
Alomorfias da Paz: seus contornos até a actual crise político-militar em Moçambique
Autor: Dércio Tsandzana (Mestrando em Ciência Política, Sciences Po Bordeaux - França)
1Universidade de Coimbra, 28/10/2016
2 RESUMO Moçambique conseguiu a Paz há 24 anos, concretamente a 4 de Outubro de 1992, com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP), assinado pelo então Presidente de Moçambique, Joaquim Chisssano e presidente da Renamo, Afonso Dhlakama. Na presente comunicação procuro através de uma perspectiva histórica abordar os caminhos trilhados por Moçambique para o alcance da paz, uma vez que o país é assolado neste momento por uma crise político-militar. Concretamente, procuro fazer uma radiografia de alguns momentos e aspectos marcantes que contribuíram para o actual momento de crise que se vive em Moçambique. Destaca-se ao longo do texto a existência de dois actores cruciais que continuam a ser as peçaschave para o alcance da paz, nomeadamente a Frelimo (Governo do dia) e a Renamo (maior partido da oposição). Ademais, o artigo procura mostrar as questões que imperam para que o país não esteja ainda em paz. Levantando-se a hipótese de que o país regrediu no processo da preservação da Paz devido ao clima de desconfiança mútua que se vive entre os actores acima referidos, bem como a existência de altos níveis de desigualdade (partilha das riquezas e bens sociais), consubstanciado pelas fragilidades verificadas no processo da descentralização do país. De igual forma, o texto vai enunciar e estudar as condições do diálogo para a resolução do problema que se pretende discutir.
3 I. INTRODUÇÃO De acordo com a chamada para as presentes jornadas, o debate sobre as “crises”, não é uniforme nem consensual. Aquilo que é ou não crítico depende da perspectiva em que a realidade é olhada e vivida, e da posição em que se encontra quem a olha e a vive. Além disso, aquilo que para uns é encarado como uma crise, para outros é perspectivado como uma oportunidade. Mendes (2005)2, no seu texto intitulado Subsídios para uma teoria das crises políticas, faz uma abordagem sobre os vários entendimentos que podemos ter do significado de uma crise, com destaque para a arena política, em particular. No mesmo texto, traz-se uma abordagem teórica de Pearson (1988)3 sobre as três dimensões assumidas pela crise: Por um lado, uma perspectiva meramente técnica que nos remete para a dinâmica estrutural, infra-estrutural, técnica e operativa de um sistema, onde se salientam e perspectivam os fenómenos, apelando às variáveis definidoras físicas e técnicas. Por outro lado encontramos outras duas perspectivas em que o objecto de análise transcende a materialidade técnica objectiva e se fixa na realidade humana associada aos fenómenos disruptivos: uma perspectiva psicológica pura em que a análise se centra nos aspectos cognitivos individuais associados aos fenómenos, na análise psicológica das suas dimensões e na explicação individualizada dos seus efeitos e consequências. Há ainda uma perspectiva sócio-política na qual a crise é encarada como uma quebra colectiva do sentido partilhado e da estruturação dos papéis sociais e onde se verifica uma transformação, ainda que marginal da ordem social, da liderança e dos valores e crenças tidas como comuns (Mendes, 2005). Na nossa abordagem será utilizada a última perspectiva, no sentido em que vai olhar para o país numa dimensão social e política, tendo como base os actores que contribuem para o processo da Paz em Moçambique, suas fragilidades e pontos fortes. 2 António Mira Marques Mendes - 4º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Portugal 3 Pearson C. M. Reframing Crisis Management, Academy of Management Review, Janeiro, 1998
4 Para o caso de Moçambique, encontramos que este é um país que conheceu, tal como outros países Africanos, vários momentos conturbados da sua criação como Estado, tendo em conta o seu passado histórico. Este sempre se mostrou como um processo inacabado e nesse percurso não faltam momentos de crise ou de dificuldades que coloquem em causa essa construção. No que a paz diz respeito, sustento-me em Brazão Mazula, que no seu livro “A Universidade na lupa de três olhos: ética, investigação e paz”, lançado em 2015, faz uma análise sobre os 20 anos de Paz em Moçambique e questiona se é possível eliminar a apetência ou tendência de solução dos conflitos por via da guerra? A resposta é possível com forte vontade política. No mesmo livro, Mazula coloca várias interrogações sobre as euforias que podem ter surgido com o momento. A partir de Adorno (apud Mazula 2015), o autor revela que as duas décadas de paz construíram uma consciência moçambicana madura, enraizada e cidadã, de que os motivos que haviam levado ao “horror” da guerra dos dezasseis anos não se justificam mais. Pode-se afirmar que durante os vinte anos prevaleceu a racionalidade da convivência na diferença das opções ideológicas e partidárias, uma vez que adoptado o “pluralismo de expressão e organização políticas democráticas”, no espírito do Protocolo II do Acordo Geral de Paz. A presente comunicação vai se sustentar no Acordo Geral de Paz (AGP) que, segundo o autor que temos vindo a citar acima, o mesmo foi construído num misto de aproximação antropológica com diálogo estratégico passivo, pois é difícil de entender como um dos ex-beligerantes ou os dois, decorridos vinte anos de Paz, pretendam romper com o compromisso de privilegiar o método de diálogo e de colaboração mútua na solução dos problemas do país, constantes dos Protocolos I e II do AGP. Por outro lado, dão a entender que o diálogo não foi necessariamente comunicativo. O desafio é de construção ou consolidação de confiança mútua (Mazula, 2015). Assim, procuro abordar os caminhos titubeantes que Moçambique vem atravessando no processo da consolidação da Paz, num momento delicado em que o país regista uma grave crise políticomilitar, aliado a crise económica e social generalizada. Diante dos pressupostos acima, percebe-se que a abordagem da crise política em Moçambique e consequente falta de Paz deve ser analisada não só sob o pressuposto da existência ou ausência da guerra, mas, também da falta de confiança entre os principais actores e das diferenças sociais que podem agudizar a existência de um conflito.
5 II. CONTEXTUALIZAÇÃO A Paz da reconciliação ou acordo do desacordo?
A palavra reconciliação pode ter vários significados, dependendo do contexto. No contexto da teologia Cristã, é um elemento de salvação referente aos resultados da expiação. A reconciliação é o fim da separação entre Deus e a Humanidade causada pelo Pecado Original. Mas, para a presente comunicação olha-se para este capítulo numa perspectiva política do termo, onde procuro entender se houve ou não reconciliação entre as partes envolvidas no processo de paz. O fim da guerra colonial e a proclamação da Independência (25 de Junho de 1975) marcou um dos momentos mais marcantes em Moçambique, contudo, essa fase viria a conhecer um revês político muito grande quando em Fevereiro de 1976 iniciava uma guerra de agressão que foi movida pela Resistência Nacional Moçambicana (Renamo) contra o Governo liderado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e já em 1980 dava-se a cessação do apoio da exRodésia (actual Zimbabwe) à Renamo. Passada esta fase, um dos primeiros passos para a pacificação e alcance da Paz em Moçambique deu-se a 16 de Março de 1984, tendo como protagonistas o Governo da Frelimo e o Governo da África do Sul, na assinatura do Acordo de Incomati, que pressupunha a cessação de apoio por parte da África do Sul para a Renamo e de Moçambique para o ANC. Mas, só depois de várias tentativas de aproximação e mediação, particularmente intensas durante o ano de 1989, foi apenas no ano seguinte que se iniciaram as conversações directas que iriam culminar com a assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma.
A 19 de Outubro de 1986 morre o primeiro Presidente moçambicano, Samora Machel, num acidente de viação, uma morte que 30 anos depois permanece com causas aparentemente desconhecidas e que trouxe um desafio para o processo de Paz em Moçambique, visto que sucede numa altura em que o país via-se numa situação instável e inseguro.
Em 1992, concretamente a 4 de Outubro, entra em cena Joaquim Alberto Chissano, o então presidente da República de Moçambique (1986-2005), e Afonso Dhlakama, presidente da Renamo, que encontrando-se em Roma sobre a presidência do governo italiano, na presença do
6 ministro dos negócios estrangeiro da República italiana e na presença de Robert Mugabe, Ketumile Masire, George Saitoti, Roelof Botha, John Tembo, Ahmed Haggag, assinavam o Acordo Geral de Paz (AGP), que mais tarde viria a ser transformado em lei4. De acordo com o próprio AGP, aceitaram como obrigatório os seguintes documentos que constituem o acordo: • Protocolo 1 (dos princípios fundamentais) • Protocolo 2 (dos critérios e das modalidades para formação e reconhecimentos dos partidos políticos) • Protocolo 3 (dos princípios e das leis eleitorais) • Protocolo 4 (das questões militares) • Protocolo 5 (das garantias) • Protocolo 6 (cessar fogo) • Protocolo 7 (da conferência dos doadores) Aceitaram igualmente como partes integrantes do acordo de paz de Moçambique os seguintes documentos: • Comunicado conjunto do dia 10 de Julho de 1990; • Acordo de 1 de Dezembro de 1990; • Declaração do governo da República de Moçambique e da Renamo sobre os princípios orientadores de ajuda humanitária, assinando em Roma, aos 16 de Julho de 1992; • Declaração conjunta assinada em Roma, aos 7 de Agosto de 1992. O principal objectivo do AGP foi de pôr termo ao sistema mono-partidário que oficialmente, acabara já em janeiro de 1990 e iniciava, deste modo, o sistema multipartidário, democrático, onde a última voz a ressoar é a do povo. A busca do entendimento consistia na superação das divergências, permitindo a consolidação da identidade nacional. As partes comprometiam-se, assim, respeitar a unidade nacional como todo estruturado, a identidade e a legitimidade das eleições multipartidárias, bem como os princípios de democracia internacionalmente reconhecidos e a estabilidade política como garantia do desenvolvimento sócio-económico. Este facto deu então espaço para que dois anos depois, concretamente entre 27 a 29 de Outubro de 1994, se realizassem as primeiras eleições presidenciais e legislativas, ganhas pela Frelimo. 4 Lei n.º 13/92 de 14 de Outubro
7 Porém, os resultados obtidos pela Renamo nas eleições de 1994 e o equilíbrio entre esta e a Frelimo surpreenderam muitos analistas e a própria Frelimo, para quem este movimento não podia ter uma base social interna e seria apenas um instrumento de desestabilização criado e dirigido pelos regimes da Rodésia e África do Sul (Brito, 2014).
O AGP foi um acordo que, tal como mostramos acima, apresentava uma série de compromissos a serem respeitados pelas partes envolvidas, mas que a realidade mostra a existência de escamoteamento de alguns desses princípios, o que agudiza sobremaneira o processo da paz em Moçambique. A título de exemplo, a integração das forças residuais da Renamo no exército moçambicano sempre foi um tema inacabado e por conseguinte o desarmamento da Renamo também. Assim, fica claro que um dos objectivos deste acordo não foi alcançado e as partes continuam desavindas, daí pode-se depreender que o AGP é um acordo do desacordo.
A Paz das Eleições e a crise interna da Renamo Passados alguns anos de (aparente) prosperidade e reconhecimento como um dos países que melhor soube preservar a Paz, Moçambique viria em 2012 a ser assolado pelo início de uma profunda crise política que minou e tirou todo o brilho que o país construiu em mais de duas décadas, desde 1992. Os processos eleitorais são cobertos de reivindicações e desconfianças desde 1994, nos quais a Renamo sente-se como injustiçada e roubada em quase todos os processos. Em 1998, a Renamo decidiu boicotar as primeiras eleições autárquicas. Se for verdade que havia problemas com a alteração dos rumos da descentralização decidida pela Frelimo, assim como com a lei eleitoral e a composição dos órgãos de gestão eleitoral, não é menos verdade que, na impossibilidade de alterar o curso dos eventos, teria sido lógico optar por conquistar o máximo de municípios possível, para obter uma base de governação local a partir da qual se encontraria numa posição mais favorável para consolidar a sua influência no seio do eleitorado. Outro caso interessante foi o processo de negociações que se seguiu à contestação dos resultados eleitorais de 1999. A Renamo, que exigia, entre outras reivindicações, o direito de nomear os governadores nas seis províncias onde tinha obtido uma maioria de votos, acabou por rejeitar uma proposta de compromisso e abandonou as negociações, perdendo ao mesmo tempo a
8 possibilidade que estava em negociação de propor nomes para fazerem parte de conselhos de administração de empresas do sector público. (Brito, 2014) A crise iniciada em 2012 surge em virtude do aproximar dos pleitos eleitorais autárquicos de 20 de Novembro de 2013 nos quais a Renamo boicotou (mais uma vez) a sua participação por considerar que os processos eleitorais em Moçambique, tal como referimos no início deste capítulo, são todos viciados e com o sistema eleitoral vigente na altura ela (a Renamo) não ganharia as eleições. No rol das reivindicações constava a partidarização da lei eleitoral, nomeadamente uma presença maioritária dos partidos com representação parlamentar na Comissão Nacional de Eleições (CNE) e menor peso da sociedade civil, o que a Frelimo não aceitou na altura, embora essa mesma sociedade civil fosse representada por organizações fortemente partidarizadas. Para além da questão eleitoral, a crise surgiu em virtude de a Renamo e o próprio Dhlakama encontrarem-se num momento de crise interna e que precisavam, de alguma forma, ressurgir para mostrar o seu poderio político. No meio dos dois proeminentes actores, já havia surgido em 2009 uma das maiores atracções políticas, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM). Este partido, formado na Beira, capital de Sofala, na região centro de Moçambique, em Março de 2009, resultou da expulsão de Daviz Simango da Renamo pelo líder desta formação, Afonso Dhlakama (Chichava, 2010). Com rompimentos atrás de rompimentos, o diálogo não surtiu o efeito desejado e o parlamento acabaria por aprovar em definitivo a lei que viria a regular as eleições autárquicas de 2013 e gerais (presidenciais e legislativas) de 2014, perante divergências entre as três bancadas parlamentares. Desta forma, as eleições tiveram como principais partidos: a Frelimo e o Movimento Democrático de Moçambique que concorreram em todas as autarquias. Na mesma época, a Renamo reeditava a estratégia de pressão política, através do uso da força militar, um facto que fez com que as eleições autárquicas decorressem num clima de medo e tensão e criando expectativas alarmantes para as eleições gerais que seriam a 15 de Outubro do ano seguinte, visto que as eleições deviam decorrer em todo o país, incluindo nos locais onde Renamo protagonizava ataques armados. Por outro lado, pode-se dizer que a Renamo começou as suas operações militares, sempre como uma táctica defensiva.
9 Numa abordagem sugerida por Tsandzana (2015)5, existem dois níveis que norteiam a paz das eleições. O primeiro nível diz respeito aos actores onde encontramos um cenário semelhante ao de 1992, no qual os actores são os mesmos, ou seja, o partido Frelimo que comanda os destinos do país e a Renamo, maior partido da oposição, facto que só aconteceu após se converter em partido político em 1992. Foram esses actores que sentaram (mais uma vez) à mesa do diálogo para resolver os diferendos políticos que opunham os dois beligerantes, algo que aconteceu sem abertura para opiniões diversas que não envolvam somente os políticos, sob o risco de estar-se a discutir assuntos que só deverão, no final do dia, beneficiar as duas partes num assunto de interesse e dimensão nacional. O segundo nível refere-se aos comandos do diálogo, onde verificamos duas velocidades. Por um lado encontramos um diálogo ''moribundo'' que se fez sentir em mais de cem rondas negociais no Centro de Conferências Joaquim Chissano, e a outra velocidade que era impulsionada pelas lideranças de cada um dos partidos, se assim o desejassem. Um dado sui generis em todo este processo é o facto dos ataques armados entre as partes não terem cessado enquanto decorria o diálogo, tendo até se verificado o assalto à base militar da Renamo em 2013. No mesmo diapasão, aproximavam-se as eleições gerais e o início da campanha eleitoral e para permitir que a Renamo participasse do processo, o Governo instruiu o partido no poder para aceitar a reivindicação sobre o pacote eleitoral colocado pela Renamo, bem como amnistiar todos actores que participaram do conflito. Este cenário deu resultado ao Acordo de Cessação das Hostilidades Militares (ACHM), assinado no dia 5 de Setembro pelo então Presidente da República Armando Guebuza e o presidente da Renamo, Afonso Dhlakama. Na ocasião anunciava-se a criação de um fundo da paz para moldar a nova realidade que o país conhecia6. A Paz das eleições pode ser descrita num cenário em que se procurou a todo custo em 2014 alcançar-se uma suposta Paz para que permitisse a Renamo e o seu líder participarem do processo eleitoral que se avizinhava. Assim, o que vimos foram eleições que mesmo dentro do novo pacote eleitoral que permitiu a “paridade” nos órgãos de gestão e administração eleitoral a todos os níveis. O que se assistiu foi um processo titubeante, com erros que roçam a falta de 5 O artigo faz uma abordagem do momento conturbado vivido por Moçambique desde 2013 e procura traçar duas linhas para explicar essa realidade. 6 Jornal Notícias (9 de Setembro de 2014)
10 profissionalismo à todos os níveis (desaparecimento de editais; boletins de voto incompletos; enchimento de urnas), falta de preparo dos partidos políticos e uma desorganização organizada generalizada de todo o processo. A Paz da estabilidade? Debalde, o tempo mostrou que o processo da pacificação de Moçambique não seria sanado com o assinar de mais acordo. A realidade actual prova-nos que mesmo com a “paridade” eleitoral, a Renamo não ganhou as eleições e a crise política intensificou-se. Como consequência, o conflito armando entre as forças governamentais e os homens armados da Renamo intensificava-se no centro do país. Na mesma altura, a Renamo a recusar os resultados eleitorais, exigindo que lhe fosse permitida a governação nas províncias nas quais ganhou as eleições: Sofala, Manica, Tete e Zambézia no centro do país e Nampula e Niassa, no norte do país. Particularmente, o período que se viveu logo a seguir a eleição de Filipe Nyusi como Presidente da República, foi manchado por duas tentativas de assassinato ao líder da Renamo7, bem como a tentativa fracassada de desarmar forçosamente a Renamo, o que se mostrou como uma prática que em nada resolveria a questão da Paz no país. De volta a mesa do diálogo, iniciou-se uma nova maratona de busca da Paz tendo já como actores, Filipe Nyusi, presidente eleito que assumiu a Paz como o seu grande desafio8, e mais uma vez Afonso Dhlakama, candidato derrotado. Sob o cume de governar as seis províncias nas quais saiu-se vencedora, a Renamo queria a todo custo que o Governo da Frelimo aceitasse essa pretensão. Foram então escalonados de forma prioritária três pontos de agenda: (1) a governação das províncias ganhas pela Renamo; (2) despartidarização do Estado e (3) desarmamento da Renamo e consequente integração nas forças armadas, que voltaram a ter os mesmos actores de 1992. Desde Abril de 2015, em rondas progressivas a dialogar, pouco foi alcançado no concreto e o 7 O primeiro ataque deu-se no dia 9 de Setembro de 2015 e o segundo teve lugar no dia 25 do mesmo mês na zona centro do país 8 ‘’ (…) A Paz, condição primária para a estabilidade política, desenvolvimento económico, harmonia e equidade social. Estas conquistas são sólidas por serem abraçadas por todos os Moçambicanos. Mas nenhuma conquista pode ser considerada definitiva. (…) Um governo que privilegie a paz, a paz e ainda a paz e promova o diálogo acima de disputas domésticas pelo poder…’’ - 15 de Janeiro de 2015
11 rompimento foi o cenário vivido até Maio de 2016 com a constituição de novas equipas do diálogo político. Nada em concreto mudou o cenário, mas abriu-se com as reivindicações da Renamo um novo capítulo de debate político sobre a descentralização no país. Este é um tema que tem vindo a ser estudado em larga escala por alguns académicos moçambicanos. Forquilha (2007) procurou analisar o impacto das reformas de descentralização no processo de governação local, argumentando que existem, entre outros, dois factores importantes que concorrem para o fraco impacto das reformas em curso: a influência da trajectória do “Estado patrimonializado” no processo de governação local e o fenómeno da reprodução, pelas elites no poder a nível local, de práticas autoritárias do passado nos novos espaços constituídos no âmbito das reformas de descentralização. Segundo Faria e Chichava9, umas das críticas que é feita ao processo de descentralização em Moçambique prende-se com o princípio de gradualismo na municipalização que é visto instância como manobra política para não se municipalizarem aquelas autarquias que nada ou pouco representam os interesses do partido no poder. Adicionalmente, verifica-se uma disparidade na canalização de fundos do nível central para os Municípios, onde chegamos a verificar que municípios pequenos no poder da Frelimo beneficiam de grande apoio se comparado com outros sob o poder da oposição, como são os casos de alguns municípios da província de Gaza dominados pelo partido no poder, comparado com a Cidade da Beira que é dominado pela oposição. Um dos grandes debates até à data é sobre o tipo de descentralização que se pretende para o país. Há clivagens e conflitos quanto ao processo de democratização e descentralização, que se acentuaram ou tornaram visíveis com o fim do processo de paz e o evoluir do processo de democratização (Faria e Chichava, 1999). Ainda que o processo de descentralização tenha tido origem no seio da Frelimo antes de os doadores terem elegido a descentralização como prioridade ou condição da ajuda a Moçambique, é significativa a resistência no seio da Frelimo quanto à necessidade da descentralização e 9 Num artigo intitulado “Descentralização e cooperação descentralizada em Moçambique”, os autores fazem uma análise comparativa incluindo outros estudos de caso (Ghana e Mali) sobre os desafios da descentralização em África
12 sobretudo as divergências quanto ao tipo de descentralização, os benefícios e desvantagens da mesma, e quanto à sua evolução: clivagens entre centralizadores e não-centralizadores quanto ao grau de descentralização; clivagens entre estruturas superiores e de base da Frelimo e conflitos de liderança no partido. Faria (idem) defende que alguns, particularmente no seio da Frelimo e da administração, defendem que a descentralização comporta sérios riscos para a manutenção da unidade do Estado (receios de regionalismos e separatismos) e para a multiplicação aos níveis regional e local das vicissitudes da administração central (burocracia falta de capacidade, corrupção). A descentralização económica, política e administrativa implica necessariamente mudanças significativas na distribuição e níveis de poder, pelo que pode ser uma potencial fonte de conflito. Para a Renamo, principal força da oposição num sistema praticamente bipartidário, a descentralização comportaria, em princípio, uma grande vantagem: a de lhe abrir as portas do poder, ainda que a nível local. Imbuído no mesmo espírito de governação autárquica, após promessas em comícios e tentativas falhadas, a Renamo acabou adiando a sua opção de poder governar forçosamente e regressava à mesa do diálogo para discutir uma possibilidade de se aprofundar a verdadeira descentralização no país, com destaque para a eleição de Governadores Provinciais, diferentemente do que acontece agora com a indicação presidencial. Procedeu-se então a um novo modelo de diálogo com a indicação de duas novas equipas negociais, e sob orientação directa dos seus líderes. Assim, as questões de forma começavam a ganhar corpo, com destaque para a definição de uma nova agenda ao mais alto nível e a inclusão dos mediadores internacionais para o diálogo. A agenda para a Paz voltava a ser desenhada e a Renamo regressava a sua intenção de governar as províncias nas quais venceu como ponto central do diálogo e por sua vez o Governo levantava o desarmamento da Renamo como elemento fulcral do diálogo. Em meio a toda a incerteza sobre os camimhos para a paz, levantou-se um novo debate que estava a ser negligenciado no país, a descentralização. Um debate que começou a ser assumido como central para a resolução do problema da representação e partilha de poder, dois pontos centrais reclamados pela Renamo. Assim, mediadores aceites, o diálogo para a Paz avança até ao
13 preciso momento que se publica esta comunicação10, mas, nada se pode ter como garantia de que será desta em que a Paz pode ser estabilizada, se partirmos do pressuposto que o modelo permanece o mesmo, ou seja, com dois actores principais e com mediadores internacionais tal como foi no passado, o que pode nos fazer referir que estamos diante de ‘’uma paz entre a Frelimo, a Renamo e os estrangeiros’’, visto que a base de apoio dos dois maiores partidos não é nem a metade da população moçambicana. Contudo, a pressão no actual modelo de diálogo surge de todos os lados e tem uma ligação económica, visto que o Governo precisa da Paz para poder estabilizar a economia que se ressente com uma crise aguda devido às dívidas ocultas contraídas pelo anterior Governo e que ditaram a suspensão de todo tipo de apoio internacional pelos doadores. Essas dívidas são segundo Michel Cahen11, a demostração do início de uma segunda ‘’Guerra em Moçambique’’. Outro dado que mina o processo da conquista da Paz é o assassinato de Jeremias Pondeca (8 de Outubro), membro do Conselho de Estado e da comissão mista de negociações para a paz que era tido como uma das figuras fundamentais na equipa que prepara o encontro entre Filipe Nyusi Afonso Dlhakama. Aliado a este assassinato, cresce a desconfiança da existência de esquadrões da morte que são tidos como grupos de criminosos mandatados por facetas políticas para amedrontar ou eliminar fisicamente membros de partidos políticos (Renamo e Frelimo) ou de cidadãos que pensam de forma diferente e/ou independente ao regime governamental do dia. Paradoxalmente, a Renamo continua a ter nas armas o seu trunfo de pressão político e o seu desarmamento completo não se antecipa como um processo fácil e rápido e enquanto isso os ataques contra civis não cessam e a insegurança generalizada cresce em todo o país.
10 28 de Outubro, Universidade de Coimbra - Portugal 11 "Significa que desde 2012, quando a segunda Guerra estava só a começar, o Poder já tinha escolhido a via militar". "O esforço de rearmamento começou naquele momento, não é de hoje em dia". – Africa Monitor (20.10.2016)
14 III. O QUE FALHOU? Partindo do pressuposto que a finalidade de um diálogo não é apenas dialogar, mas sim o conhecimento da verdade (em filosofia), ou a resolução de um problema (em outras ciências humanas), encontramos em Moçambique um cenário que em nada contribui para a pacificação do país, caracterizado pela desconfiança permanente que se regista entre os principais dois actores, Frelimo e Renamo, embora existam três grandes forças políticas. Aliado a isso, recorremos à história e percebemos que são actores com um passado de guerra e caracterizado pelo uso da força para o alcance dos seus objectivos políticos. O recurso a violência traduz a incapacidade dos protagonistas construírem consensualmente as regras de base da convivência democrática nas condições específicas de Moçambique. O processo da Paz em Moçambique continua imperada no uso de uma linguagem de crispação que mostra a falta de abertura por não se poder prever o que pode suceder ao abrir mão do que cada actor possui como trunfo político, ou seja, tanto o Governo, como a Renamo, não estão claros do que vai ser o futuro da paz no país. Aliado ao que foi dito anteriormente, a Renamo continua a ser um partido que com o avançar do tempo não conseguiu se reinventar ou acomodar-se ao sistema político nacional, visto que continua a ser um partido que encontra nas armas uma alternativa para exercer a sua influência política. Outro dado de realce que impera para a Paz em Moçambique preza-se com a existência de alas políticas radicais de cada uma das partes, visto que tanto dentro do Governo assim como por parte da Renamo existem aqueles que preferem ver o país na guerra, do que mostrar fragilidade política em qualquer cedência. Dito de outra forma, há quem acredite, por exemplo, que a propalada solução Savimbi12 é a melhor opção para o diferendo da Paz, ou seja, assassinar Dhlakama pode ser a salvação do actual momento, mas já foi provado tanto no reinado de Armando Guebuza, como no de Filipe Nyusi que está opção não é certeira. Continua a não existir capacidade e vontade política de fazer-se cedências em nome da Paz, tudo devido ao primeiro elemento levantado neste capítulo que se fundamenta na desconfiança existente entre os 12 Jonas Malheiro Savimbi (Munhango, Bié, 3 de Agosto de 1934 — Lucusse, Moxico, 22 de Fevereiro de 2002) foi um político e guerrilheiro angolano e líder da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) durante mais de trinta anos. Foi morto em combate a 22 de fevereiro de 2002, perto de Lucusse na província do Moxico, após uma longa perseguição efectuada pelas Forças Armadas Angolanas.
15 dois actores, bem como a pressa de se pretender resolver o problema de forma parcial e não conjuntural por forma a acomodar os interesses políticos e económicos que favoreçam a Renamo e o Governo do dia. Alguns analistas acreditam que o falhanço da Paz em Moçambique deveu-se mesmo a má implementação do AGP, por exemplo, Joseph Hanlon13 reparou numa entrevista que o acordo de paz foi assinado quando ninguém sabia que Moçambique tinha recursos minerais. Dhlakama e seus generais querem uma fatia. Além disso, Dhlakama sempre quis algum poder político – em particular o poder de nomear governadores ou outras figuras.
13 Joseph Hanlon (nascido em 1941) é um cientista social e professor titular de Política de Desenvolvimento e Prática na Universidade Aberta, Milton Keynes, Reino Unido. Residiu em Moçambique por períodos consideráveis e é uma das pessoas mais experientes no mundo de língua Inglês sobre os assuntos correntes daquele país e história ao longo das últimas décadas.
16 IV. CONCLUSÃO O presente artigo nos mostra, por um lado, que em Moçambique não tinha um ‘’verdadeiro’’ acordo de paz, se não, acordo de ‘’trégua’’, por isso a Paz continua até hoje efémera Um acordo de Paz sem democratização, gerido por um regime que criou fossos de exclusão muito elevados. Ademais, o processo pela Paz em Moçambique não pode continuar a basear-se nos mesmos moldes alcançados de 1992 com apenas dois actores políticos, visto que o contexto político, económico e social mostra-se alterado. A revisão da Constituição da República e as eleições de 2019 podem, dessa forma, reservar mudanças profundas na forma de eleição dos governadores, uma vez que a eleição directa dos governadores provinciais pelos cidadãos é um sinónimo de maior legitimação do poder. Esta realidade ganha maior consistência pelo facto do Presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, ter designado recentemente uma equipa de trabalho14 para analisar o processo da descentralização no país, na óptica do partido Frelimo, com vista a tornar mais interventiva a participação do cidadão. Aliado a esse pressuposto é preciso destacar a recente entrevista de Michel Cahen15, um dos principais historiadores e politólogos sobre Moçambique que não vê solução para a crise política moçambicana até às próximas eleições legislativas, em 2019. Para Cahen, a comunidade internacional "em geral ainda prefere a manutenção do poder da Frelimo", ignorando sinais de degradação dentro do movimento, por considerar o partido "habituado" a gerir a relação com as grandes multinacionais, o que é "melhor para o capitalismo internacional". Avança dizendo que apesar dos esforços de democratização da sociedade civil moçambicana "hoje em dia, na partilha internacional do poder, as condições não estão reunidas" para uma maior democratização. De acordo com Brito (2014), a trajectória dos dois principais partidos, a Frelimo e a Renamo, desde a celebração do AGP e os desenvolvimentos recentes que se traduziram na entrada na cena política de um novo actor, o MDM, mostram que a consolidação da paz em Moçambique é um 14A equipa é constituída por membros da Comissão Política, Comité Central e outros quadros seniores especializados em matéria de Administração Pública e Poder Local. (Jornal Notícias) - 09/06/2016 15 Michel Cahen é Director de Investigação do Centro Nacional de Pesquisa Científica de França, Investigador associado na Escola de Altos Estudos Hispânicos e Ibéricos da Casa de Velasquez, em Madrid e Investigador convidado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
17 verdadeiro desafio. Cada um dos actores tem, logicamente, interesses diferentes e não parece que qualquer um deles tenha a capacidade suficiente para se impor eliminando os restantes. Fica, pois, a alternativa da convivência dentro de regras e práticas aceitáveis por todos, o que significaria avançar no sentido da democratização do sistema político, da formulação de mecanismos adequados de representação dos interesses dos cidadãos e do respeito pelas normas instituídas, o que está em contradição total com a crise que o país vive actualmente, centrada numa confrontação armada entre o governo da Frelimo e a Renamo. Aliado a isso, persiste o grave e antigo problema da partilha de poder dentro do próprio Governo, visto que a confiança política continua a ser determinante para a ocupação de alguns cargos de poder, uma fórmula exclui em grande parte alguns actores importantes que se sentem à margem do sistema político. Por fim, o problema da descentralização mostra-se como o ponto fulcral para o imbróglio da Paz, tendo em conta que uma grande franja dos cidadãos não se sente representado pelo actual modelo de eleição dos seus governantes. Contudo, este facto não pode significar divisão do país como é advogado por algumas facções defensoras do regime do dia, mas sim, maior representatividade e uma genuína participação política e cívica.
18 V. BIBLIOGRAFIA 1. AWEPA. (1993). Acordo geral de Paz de Moçambique de 1992. Maputo: T. Hansma - Revista militar (s/d). Conflitos internos: resolução de conflitos. 2. BRITO, Luís, Uma reflexão sobre o processo de Paz: Desafios para Moçambique: 2014, IESE, 2014, Maputo, (pp. 23 - 39) 3. CHICHAVA, Sérgio, Movimento Democrático de Moçambique: uma nova força política na democracia moçambicana, Cadernos do IESE, Maputo, 2010 4. FARIA, Fernanda et al, Descentralização e cooperação descentralizada em Moçambique, Maputo, 1999 5. MAZULA, Aguiar, Quadro institucional dos distritos municipais: Autarquias Locais em Moçambique - Antecedentes e Regime Jurídico, Maputo, 1998 6. MAZULA, Brazão, A Universidade na lupa de três olhos: Ética, Investigação e Paz, Imprensa Universitária, Maputo, 2015, p. 74 7. MENDES, A. M. M. (2005, Setembro). Subsídios para uma teoria das crises políticas. In SOPCOM 2005: 4º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (pp. 765-774) 8. THOMPSON, J.B., Political Scandal: Power and Visibility in the Media Age, Polity Press, London, 2000 Pesquisas na Internet a) Entrevista à Joseph Hanlon: Macua Blogs (02.02.2016) - http://bit.ly/29a1AvX b) Entrevista à Michel Cahen : Africa Monitor (20.10.2016) - https://goo.gl/IBnjGe c) Entrevista à Joseph Hanlon : Macua Blogs (02.02.2016) - https://goo.gl/DMY5qB d) FARIA, Fernanda et al, ‘’Descentralização e cooperação descentralizada em Moçambique,’’ Maputo, 1999 – Artigo disponível em - http://bit.ly/2975LIe e) FORQUILHA, Salvador, Remendo Novo em Pano Velho: O Impacto das Reformas de Descentralização no Processo da Governação Local em Moçambique - Conferência Inaugural do IESE “Desafios para a investigação social e económica em Moçambique”, Maputo, 2007 – Artigo disponível em - http://bit.ly/294qCyu f) TSANDZANA, Dércio: “Cenário político moçambicano: Percurso e perigos”, Maputo, 2015 - Artigo disponível em - https://goo.gl/m9nRiT
19 Legislação I. Constituição da República de Moçambique (CRM), 2004 II. Acordo Geral de Paz, Lei n.º 13/92 de 14 de Outubro III. Acordo sobre a Cessação das Hostilidades Militares, Lei n.º 29/2014 de 9 de Setembro
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