sábado, 12 de março de 2016

Cavaco e o cavaquismo (I)

OPINIÃO


“Agora acabou mesmo”, terá dito. Assim o esperamos. Quando se completarem, dentro de mês e meio, 42 anos de democracia em Portugal, 21 - isto é, metade - terão sido vividos com Cavaco Silva em lugares de topo do Estado: ao mais longo ciclo de governos consecutivos do mesmo primeiro-ministro (1985-95) acrescentou-se outra década, correspondente aos dois mandatos presidenciais de 2006-16. Antes, Cavaco fora já o homem das Finanças de Sá Carneiro, no primeiro governo da AD (1980), nomeado para “ajustara economia ao ciclo político-eleitoral”, isto é, manipular a política económica para ganhar eleições, aquilo em que Cavaco se “revelaria exímio”, segundo Sousa Franco (“A economia”, in Portugal, 20 anos de democracia, 1993). E precisamente o contrário do que nos quis convencer todo este tempo: que nunca governou com os olhos nas sondagens ou nas eleições. Encher os seus discursos de tiradas moralistas que contradizem muito do que ele fez e foi é um dos seus traços de caráter.
Dir-me-ão que é coincidência, mas a verdade é que ele chegou à chefia do Governo seguindo o mesmo percurso de Salazar: começando pela pasta das Finanças. É a partir dela que se controla toda a Administração Pública, é para lá que convergem os interesses todos de quem, nas elites económicas, precisam da cumplicidade ou da tolerância do Estado. Estávamos em janeiro de 1980, Cavaco tinha 40 anos, um ano mais que Salazar quando este, em 1928, é convidado pelos militares para o Governo. A direita tinha ganho pela primeira vez as eleições, cinco anos depois do 25 de Abril. Quando, depois de Camarate, Balsemão substituiu Sá Carneiro, Cavaco abandonou o governo. Hoje é fácil perceber que aquele ano no poder lhe deixara ambições (outra coisa que ele negou sempre). Com o apoio de Eurico de Melo e Santana Lopes, conspirou dois anos seguidos contra Balsemão, levando à sua queda no verão de 1981, mas foi, uma vez mais, preterido ao vê-lo reconstituir governo logo a seguir.
O homem cujos panegiristas juram ser vítima do “preconceito social e cultural da esquerda e direita bem pensantes” (Paulo Rangel, PÚBLICO, 8.3.2016) partilhava a mesma geração com Sá Carneiro e com Balsemão (todos tinham entre 34 e 39 anos no 25 de Abril), mas, ao contrário deles, não podia dizer que havia tido alguma militância minimamente liberal contra a ditadura, ou sequer ter participado naquilo que ele próprio chamaria o combate contra “uma  ditadura marxista e coletivista” que, sempre segundo ele, se tentara impor em 1975. Uma espécie de virgindade politica que o ajudou a ser o primeiro à direita a reunir, mais do que Sá Carneiro ou Freitas do Amaral, um consenso generalizado entre aqueles que nunca se reviram no 25 de Abril e na democracia. Por algum motivo Kaúlza de Arriaga terá percebido nas eleições de 1987, as da primeira maioria absoluta de Cavaco, “o primeiro passo de salvação e recuperação nacionais” (Guerra e política. Em nome da verdade, 1988). Sendo certo que a direita adotara antes dele um primeiro projeto de reversão global do legado revolucionário em que se originou a nossa democracia, foi ele  política e historicamente, o campeão do revanchismo contra o 25 de Abril. Sá Carneiro tinha querido “Um governo, uma maioria, um Presidente”, mas fracassaria no seu confronto com Eanes (que, contudo, havia sido o seu candidato em 1976). Mais grave, tinha querido passar por cima de todas as regras e rever a Constituição por referendo, sem passar pelo Parlamento, mas seria já o seu sucessor, Balsemão, a chegar a acordo com o PS na primeira revisão constitucional, em 1982, para eliminar o Conselho da Revolução, que, último órgão de soberania diretamente herdeiro do 25 de Abril, e apesar de tomado pelos militares conservadores nomeados por Eanes, ainda era uma “força do bloqueio” daqueles projetos. Seria, contudo, só em 1989, já com Cavaco, que se eliminaria a maioria do programa económico (nacionalizações, setor empresarial público, Reforma Agrária, controlo operário) que a Constituição de 1976 prescrevia. Claro que ela fora aprovada pelo então PPD (incluído o então deputado constituinte Marcelo Rebelo de Sousa), mas, para Cavaco, ela não passava de um documento eivado de “coletivismo” redigido sob a “ameaça de totalitarismo de Estado [que se] instalou em Lisboa” (discursos de 1988 e 1990). Mais longe da origem da democracia portuguesa não se podia estar.
O homem que tanto fala de lealdade e de amplos consensos politicos rompeu o Bloco Central com o PS mal chegou à liderança do PSD, forçando novas eleições, que ganhou com a mais pequena das vitórias eleitorais (29,8% dos votos). Sabia que valia a pena arriscar um governo minoritário: mesmo que a direita não tivesse maioria parlamentar, a esquerda estava mais dividida que nunca pela irrupção do PRD e pela teimosia de Soares em querer ser candidato presidencial; acima de tudo, esmagada a força de trabalho por dois resgates do FMI (1978-79 e 1983-84), regressada a pobreza às ruas e às casas, mas ainda com a banca nacionalizada, o banco central e a política cambial nas mãos do Estado e uma maré de fundos europeus que começariam a fluir dois meses depois do seu regresso ao Governo, Cavaco sabia que disporia das condições que nenhum antecessor seu havia disposto.
Foi, desde o início, um teimoso da autovimização - o que Sócrates, vinte anos depois, tentaria imitar. O seu “deixem-nos trabalhar!” adaptava-se quer à curta fase (1985-87) de governo minoritário (orçamentos alterados na Assembleia, ...), quer aos oito anos de maiorias absolutas em que as suas queixas contra o Tribunal Constitucional e o de Contas, ou contra os vetos presidenciais, diziam bem de quanto ele é avesso à lógica mais básica da divisão de poderes de todo o constitucionalismo. O seu “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas” ocupa, neste sentido, o mesmo lugar simbólico do “Sei muito bem o que quero e para onde vou!” de Salazar. Cavaco, mais do que qualquer outro líder da direita portuguesa desde 1974, quis encarnar aquilo de que não prescinde nenhum projeto autoritário: um decisionismoque não reconhece legitimidade a obstáculos legais, no seu caso, ainda por cima, envernizado de competência técnica (um catedrático à frente do Governo, exatamente como Salazar e Caetano).
O homem que garante que “para serem mais honestos do que eu tinham que nascer duas vezes” rodeou-se nesses dez anos de uma clique de oportunistas que teve no BPN a sua representação mais acabada. O seu governo não consolidou apenas um padrão de co-gestão do Estado pelos novos oligarcas. Ele inverteu em tudo quanto pôde do projeto emancipador do 25 de Abril e abriu o caminho que nos trouxe, via privatizações, financeirização e euro, até ao estado desgraçado em que estamos.

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