Wednesday, February 24, 2016

O Chamado “Centro de Reeducação” de Ruarua (2 – conclusão)

6. Depoimentos

Atanásio Afonso Kantelu

O primeiro lugar de assassinatos ou martírios em Cabo Delgado foi o famoso centro conhecido pelo nome de ‘Moçambique D’, situado em Muatide – Lialaquete, não longe do rio do mesmo nome e da presente ‘Aldeia Comunal de Muatide’. Sob a chefia do carrasco – Agostinho Henriques Lagos Lídimo, mais conhecido pelo nome de ‘Lagos Lidimo’ – centenas de inocentes moçambicanos perderam a vida ou nos abrigos subterrâneos por falta de ar puro, esfomeados, enforcados nas árvores ou por espancamentos.

O julgamento nesse centro era feito da seguinte maneira. Quando um prisioneiro era para lá levado, o mesmo era conduzido para uma destacada árvore, notando-se uma corda (laço), amarrada num dos ramos com um nó bem preparado naquele laço. Por baixo da árvore colocavam uma mesa bem alta. Uma vez para lá conduzida, a vítima era mandada subir para cima da mesa, colocando-se-lhe em volta do seu pescoço o nó da gravata assassina. Feita esta operação, então começavam os assassinos a interrogar a vítima. Se o acusado negasse as acusações que lhe faziam, os carrascos tiravam a mesa onde o acusado se encontrava parado e desta forma o laço começava a apertar a garganta da vítima até que ela, através dos sinais dos braços ou da cabeça, desse a entender aos carrascos que iria confessar tudo, apenas para escapar a incómoda morte – a de morrer enforcado.
De qualquer das maneiras, a probabilidade da vítima sair com a vida em ‘Moçambique D’ no tempo do Lagos Lídimo era de 30 a 40 por cento. Após a transferência de Lagos Lídimo para os serviços nacionais de inteligência, o seu lugar foi tomada pelo Zacarias Zacarias (ZZ) e após a transferência deste pelo ‘Vatenda’.
Os esqueletos de todos aqueles que foram mortos em ‘Moçambique D’ estão mesmo em Muatide e se não fosse pela grande mata de densa vegetação que já os esconde, os mesmos poderiam ser vistos por qualquer indivíduo, pois quando um prisioneiro morria, um grupo de prisioneiros composto de seis a oito elementos era escolhido para preparar uma cova de não mais de meio metro de profundidade, finda a qual a vítima era levada. Sendo a cova pouco funda, já de noite as hienas desenterravam o corpo e festejavam na carne do morto. Assim, os carrascos não permitiam que os ossos fossem de novo enterrados, ficando a descoberto centenas e centenas de esqueletos.
Qualquer elemento do povo em Muatide sabe onde o campo existiu e onde os esqueletos se encontram. Se ele não lhe mostra, não é porque não sabe, mas porque receia a Frelimo, pois o próprio povo não cultiva naquele zona onde se espalhou os tais esqueletos humanos. Após o povo ter-se revoltado contra as habituais práticas desumanas, os frelimistas decidiram então transferir o Centro de ‘Moçambique D’ para Ruarua e ao mesmo tempo, acabar com o nome de ‘Moçambique D’, que já era o terror do povo.
Ruarua era o lugar propício, já que estava situado muito longe das povoações – exactamente na antiga povoação de Machómue, não longe do Rio Omba. Não terminaram aqui as suas práticas anteriores, pois logo cedinho abriram, ou construíram abrigos num lugar chamado ‘Likeni’ situado aproximadamente 3 ou 4 km do Centro Geral Ruarua.
Alguns dos companheiros, que perderam a vida aqui, onde os prisioneiros não eram autorizados a usar calças ou panos com excepção de ‘underwears’, foram: Jorge Jovêncio, natural de Maputo, enterrado vivo em 1977; Artur Catine, de Inhambane, enforcado em 1977; Kubangamwali e irmão Chuka, de Cabo Delgado, espancados até à morte, 1977; Saidi Mitava, de Cabo Delgado, espancado até à morte, 1977, Domingos Raposo, da Beira, espancado até à morte, 1977; Luís João, de Maputo, fuzilado em 1978, etc.
Já aqui, os carrascos obrigavam os prisioneiros a fazerem covas mais fundas, pois não queriam que o povo viesse algum dia a revoltar-se de novo contra as suas práticas. O cemitério aqui está mesmo atrás do ‘Likeni’ – entre a antiga machamba de arroz do centro e muito perto da montanha Litibula.
Em suma, a vida nesses centros era um inferno – trabalhos forçados mais de 9 horas por dia nas machambas de arroz ou milho, a acarretar água para os ‘senhores polícias’, a construir casas, desses senhores polícias, etc. Refeição diária uma só – composta de milho cozido sem sal (Manganhola) e não suficiente para qualquer prisioneiro; falta de cuidados médicos; espancamentos ou fuzilamentos; nudez e sem qualquer julgamento, mesmo que estivesse lá detido ou preso por anos.
Foto: José Pinto de Sá (Público Magazine, № 277 – 25.6.95)

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