segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Diálogo exclusivo com Luaty Beirão: “Não percebi o porque é que fizeram isso comigo”


Luanda - Integra do extracto do diálogo entre o Preso político Luaty Beirão e o jurista Albano, no dia 8 do corrente mês, na cadeia de alta segurança de calomboloca, na província do Bengo.
Fonte: AP 
Introdução e comentário:
Apesar da extrema cordialidade e generosidade do Director da Prisão de Alta Segurança de Calomboloca não foi permitida a entrada de telemóveis e outros meios pessoais que não sejam um único documento. É uma clara regra de segurança admissível numa penitenciária de tão elevado nível. Por isso, a conversa que se segue resulta de um esforço de memória sobre o diálogo com Luaty Beirão ao longo de uma visita feita na qualidade de amigos e pessoas que cruzaram os caminhos na base de uma empatia natural e estando a defender ideais de reforma do Estado para que melhor se adapte as necessidades de todas as gerações de angolanos.
O que atrai e é superior em Luaty Beirão, é o sentido de verticalidade moral que erradia em todas as suas acções, vindo disso um profundo sentimento de solidariedade e uma clara convicção suportada por uma expressiva inteligência muito rara em jovens da sua idade. Tão cara é a personalidade deste jovem, que não é possível privar com ele sem que se lhe ganhe a confiança e o companheirismo de tão naturalmente solidário que é. E o que é curioso em Luaty Beirão é em como um ateu convicto como é, chega ter mais fé do que os mais fervorosos religiosos, tal como é curioso que as suas feições se assemelhem a imagem de Jesus Cristo tal como é perfeitamente pintado sobre telas sacras.
É evidente que a conversa aqui expressa não representa se quer 15% de tudo quanto falamos. São apenas resquícios de uma memória ainda fresca e não é completamente fiel à letra dos argumentos expendidos. Mas exprime claramente o espírito do que foi falado. O diálogo assumido por mim, é apresentado no plural considerando a participação de outras pessoas. Por razões de protecção de direitos de personalidade das partes intervenientes, o diálogo não faz referência de qualquer delas.
Estando num estado de manifesta debilidade física, Luaty Beirão foi trazido até nós com apoio de agentes da guarda prisional. Depois de um demorado abraço, a conversa entre nós fluiu:
ALBANO PEDRO: Sabes, Luaty, viemos de emergência por ter recebido uma mensagem que dizia que estavas em estado crítico de saúde.
LUATY BEIRÃO: Agradeço a vossa visita. Nem sei como é que conseguiram que eu fosse solto da cela em que me encontro. Estou há 20 dias sob castigo e estou proibido de receber visitas. Fico muito feliz por terem conseguido que isto acontecesse…!
ALBANO PEDRO: Não somos os únicos, tens mais visitas a aguardarem lá fora.
LUATY BEIRÃO: Porque é que não entram?
ALBANO PEDRO: Infelizmente foi aberta uma excepção apenas para nós, dada a urgência que temos em falar sobre a tua greve de fome!
LUATY BEIRÃO: Ah, ok !(arrastou os dedos trémulos sobre o cabelo escuro descuidado)
ALBANO PEDRO: Como é que te sentes?
LUATY BEIRÃO: Muito mal. Hoje acordei com tonturas. Mas o resto está tudo bem. Continuam com o plano da concertação? É que precisamos encontrar um equilíbrio entre o poder e o povo. Precisamos de continuar a pensar na necessidade de reduzir os conflitos na sociedade. Não podemos continuar a viver numa situação em que as boas intenções das pessoas não são levadas em conta. Eu nem compreendi porque é que nos prenderam…!
ALBANO PEDRO: Continuamos sim a pensar numa estratégia de aproximação entre a sociedade e o poder político. Já começamos a sentir mais vontade de dialogar em toda a sociedade. Acho que a vossa prisão despertou a sociedade para os exageros que têm acontecido e os excessos de zelo desnecessários. Participamos nas jornadas parlamentares dos partidos da oposição realizadas há semanas e sentimos a manifestação dessa vontade pelos partidos políticos. Nas recomendações finais ficou a ideia da necessidade de diálogo com o partido no poder. Só não sabemos se entre os partidos políticos isso tem pernas para andar. Mas foi bom ouvir isso dos próprios líderes dos partidos políticos.
LUATY BEIRÃO: Procurar equilíbrios. É necessário. A sociedade não pode continuar a mergulhar em conflitos sociais cada vez mais profundas. Estamos a pressionar para que aceite dialogar connosco. Você sabe disso. E as nossas manifestações são pacíficas por isso mesmo. Olha, comecei a escrever umas notas sobre a TEORIA DO PERDÃO para avançarmos para uma fase em que os angolanos têm que se perdoar mutuamente e promover harmonia entre si. Essa teoria não é para achar culpados e meter na cadeia. É para que as pessoas saibam apenas o que as pessoas fizeram e depois tudo se perdoa. É a melhor forma de recomeçarmos essa sociedade. Mas era para enriquecer aquele documento sobre a concertação politica e económica que nós elaboramos da outra vez. Lembras-te?
ALBANO PEDRO: Claro. E continuamos a enriquecer com novas ideias.
LUATY BEIRÃO: E só não entendo porque nos confundem com gente de má fé. Nós devíamos ser aproveitados para ser a ponte entre o poder e o povo. Mas ninguém quer saber de nós. Ninguém quer dialogar…É muita pena!
ALBANO PEDRO: Falando da tua greve de fome. Não achas que devias suspendê-la?
LUATY BEIRÃO: Suspendê-la para quê? Hoje fiz 18 dias desde que deixei de comer e já não me resta muito tempo de vida!
ALBANO PEDRO: Conhecendo como és, sabemos que não é fácil demover-te das tuas convicções. Mas não achas que a tua greve de fome seria mais eficaz se a fizesses na fase do julgamento que é a altura propícia para a tua defesa?
LUATY BEIRÃO: Albano, eu sei que está tudo perdido. Para um processo que vem sendo viciado desde o inicio, não me parece prudente esperar que eu venha a ser inocentado, mesmo sendo realmente inocente em relação as acusações. Então o que pretendo é estar provisoriamente livre para estar com a minha família pela última vez e enquanto aguardo pelo julgamento. Se o crime admite liberdade provisória porquê é que não me libertam? Nem se quer estou a pedir para não ser julgado e condenado. Isso é outra fase. Quero apenas gozar dessa liberdade que a lei me permite par estar com a minha família. E depois me conformo com o tempo de condenação que eles darem!
ALBANO PEDRO: Mas com essa greve de fome nem se quer chegas a fase de julgamento, que é o verdadeiro momento da defesa dos teus ideais e do contágio ao público, porque as pessoas estão curiosas em ouvir da vossa própria voz, o que se passou realmente para serem presos. Se não chegas ao julgamento, aí o movimento revolucionário perde liderança…!
LUATY BEIRÃO: Oh, Albano, você sabe que eu detesto esse nome. Não me fale em movimento revolucionário e eu não sou líder de nada!
ALBANO PEDRO: Luaty, a chefia escolhe-se. Mas a liderança de um indivíduo flui entre os membros do grupo de forma natural. Ela impõe-se por si mesma através da admiração que os outros nutrem pelos valores que defende e pelo sentido de coerência que manifestas. Estivemos na área do bloco em que estás encarcerado e percebemos que todos os reclusos e muitos dos guardas prisionais admiram muito a tua verticalidade e sentem-se tocados pela causa que defendes. Isso é liderança…!
LUATY BEIRÃO: Albano, sabes que sempre defendi que os grupos não devem ter líderes. Eu acho que sou igual a qualquer um e faço o que posso e devo fazer!
ALBANO PEDRO: Seja como for, acabas sendo a pessoa com a maior ascendente moral sobre os outros. A tua verticalidade acaba impondo isso, mesmo. Percebe-se que aqui um generalato em que estás no topo…!
LUATY BEIRÃO: (Risos). Eu percebo aonde queres chegar. Mas olha a decisão da greve de fome foi tomada em grupo. Eu nem se quer queria toma-la porque achava que era uma medida extrema. Mas a maioria acabou optando porque concluímos que enquanto não nos libertassem ninguém pararia com a greve de fome!
ALBANO PEDRO: Mas os outros pararam de fazer greve de fome.…!
LUATY BEIRÃO: Sei que pararam. Mas a minha decisão está tomada. Já não posso recuar. É minha palavra dada ao grupo!
ALBANO PEDRO: Mas em nome do grupo devias parar…!
LUATY BEIRÃO: Não faz qualquer sentido. Onde fica a minha honra? Saiba que a minha própria mãe esteve cá e implorou para que eu parasse com a greve. A minha esposa trouxe a minha filha para o mesmo objectivo. Se para as pessoas mais prezadas da minha vida eu não abri excepção, faz algum sentido eu parar com a greve agora, que já nem posso comer e estou muito debilitado? Eu já fiz o meu pedido a família para quando morrer ser cremado e ter as cinzas atiradas ao mar!
ALBANO PEDRO: Não temos palavras para tanta elevação moral e firmeza de espírito!
LUATY BEIRÃO: Olha que ao longo desse tempo que estou em greve, hoje foi a primeira vez que senti falha no sistema nervoso central. Sinto falhas na memória e as vezes não sinto as pernas. Não me parece que eu venha a resistir mais 2 dias!
ALBANO PEDRO: Tens bebido água?
LUATY BEIRÃO: Tenho. Parece ser água com soro…Não sei bem!
ALBANO PEDRO: Disseram-nos que já tinhas sido encaminhado para o Hospital-Prisão de São Paulo para internamento…!
LUATY BEIRÃO: Chegaram a levar-me em companhia de mais presos. Mas acabei sendo o único que não saiu da viatura e voltou a regressar para aqui. Não percebi o porque é que fizeram isso comigo!?
ALBANO PEDRO: Aqui te é permitido ler?
LUATY BEIRÃO: Posso. Tenho lido alguns livros. A minha esposa trouxe-me uma Bíblia Sagrada…!
ALBANO PEDRO: Ainda, bem que tens a Bíblia Sagrada. Se não a tivesses nós traríamos uma na próxima visita…?
LUATY BEIRÃO: Já li a Bíblia Sagrada debaixo para cima. Já li a maioria dos livros todos do Velho Testamento e todos os livros do Novo Testamento e fiz anotações e tudo. Temos tido missas, vem um pastor ou um padre para essas coisas. Mas sabes que não acredito em Deus. Como é que vou acreditar num Deus que mata os próprios filhos, que se vinga …! (risos)
ALBANO PEDRO: …Que se arrepende. Qualquer dia ainda acorda e diz que o homem já não vai para o paraíso porque está fechado! (risos)
LUATY BEIRÃO: Vê lá meu! (risos)
ALBANO PEDRO: (risos) Olha a tua história me faz lembrar a do filho de Winston Churchill, o estadista britânico da 2ª guerra mundial. O Pai era crente mas o filho não. Um dia o pai pediu a um pastor para que persuadisse o filho a ler a Bíblia Sagrada. E então o pastor conseguiu aproximar-se ao filho e propôs que lesse apenas duas ou três páginas. Caso não gostasse do que leria podia devolva-lo. Aconteceu que o filho leu toda a Bíblia Sagrada e inclusive fez anotações, tal como fizeste na tua. O pastor entusiasmado com a sua vitória sobre o filho, regressou vários dias depois, curioso em saber se tinha gostado. O filho pôs-se a rir e respondeu: “Afinal é este Deus que vocês adoram? Tão sádico, homicida, vingativo, rancoroso…não acredito que se possa acreditar num ser tão cruel” (risos)1
LUATY BEIRÃO: Vê lá meu! (risos)
ALBANO PEDRO: É claro que Deus não pode ser entendido dessa forma. Não se pode conceber um Deus com emoções e todos os defeitos humanos tal como vem escrito na literatura sacra. Há uma hermenêutica mais profunda que nos coloca diante de um Deus que torna o próprio mal e o bem como partes que concordam num todo harmonioso e elevam a sua verdadeira estatura de regulador universal. Se Deus é amor, faz algum sentido que ele mande matar o seu povo de forma sádica e homicida tal como vem no velho Testamento? Se Deus é todo-poderoso que sentido faz haver um outro ser chamado diabo que o contraria? Alguma coisa está errada na hermenêutica Bíblica Sagrada. Por isso, eu entendo que Deus é a combinação do bem e o mal e tudo que acontece tem alguma coerência lógica que entendermos a Bíblia para além das palavras. A tua situação por exemplo é parecida com a história do Job.
LUATY BEIRÃO: Já li. Um tipo que tinha tudo e por causa de uma discussão entre Deus e o diabo acabou perdendo tudo só porque Deus deu ordens ao Diabo para testar a sua fé! (risos)
ALBANO PEDRO: Parece ser duas entidades (Deus e diabo) em conflito. Mas a história de Job é uma alegoria que exprime o conflito que ocorre na nossa própria consciência. O que se passou é que era a própria consciência de Job em conflito de fé. Estava ele na luta entre defender os seus ideais e a família ou bens materiais. É essa a hermenêutica subjacente nesse livro. E então aconteceu que ao escolher os seus princípios morais (sua fé) acabou perdendo a família e os bens materiais. Empobreceu e apanhou lepra. Vinham amigos para demovê-lo dos princípios e ele não aceitava, até que um dia apareceu alguém que se sentou ao lado sem lhe contrariar num mero acto de solidariedade. E a firmeza nos princípios foi tal que quando já estava prestes a morrer de tanto mal causado pela doença. As circunstâncias alteraram favoravelmente, sobreviveu e isso tornou ainda mais forte a sua convicção (risos)!
LUATY BEIRÃO: Ok!
ALBANO PEDRO: E no seu caso, os princípios morais impuseram-se igualmente. Preferiste sacrificar a família e os bens materiais para salvaguardares os teus princípios morais (a tua fé). E estás neste estado de debilidade física que não é diferente de uma doença como a lepra. Já vieram muitos amigos para tentar dissuadir-te. Hoje que estás há dois dias do prazo de resistência fisiológica razoável viemos nós. E pela primeira vez tens pessoas que concordam com os teus princípios! (risos)!
LUATY BEIRÃO: Então acreditas no destino?!
ALBANO PEDRO: Claro. Sou determinista e não causalista!
LUATY BEIRÃO: Nesse caso acreditas que o que estou a fazer é algo predestinado. Tinha que fazê-lo?
ALBANO PEDRO: Se isto é tão forte em si. É porque foste preparado para isso. E se nós aparecemos nessas circunstâncias é porque alguma vontade suprema nos guiou e pretende que tudo termine, porque já deste provas bastantes da tua fé nos teus princípios!
LUATY BEIRÃO: Olha a primeira vez que eu ia acreditando em Deus foi quando sai de Portugal a pé até Angola?
ALBANO PEDRO: De Portugal à Angola, a pé?
LUATY BEIRÃO: A pé, de carro, de burro, mas tudo a boleia. Foi depois de terminar a formação na Europa. Decidi sair de Portugal passando pelo Tânger e seguindo por vários países africanos até chegar a Luanda. Não fui assaltado em toda a viagem até chegar no Sambizanga quando já estava uns quilómetros de casa (risos). Mas o que me impressionou foi quando cheguei aos Camarões. Eu não tinha aonde dormir e pedia ajuda a pessoas e não via ninguém interessado. E era a primeira vez que não sentia solidariedade nenhuma. Eu já estava sem alternativas, quando de repente apareceu um tipo que simpatizou-se comigo e disse que era angolano e vivia há 15 anos no país. Foi ele que me acolheu e tive até uma grande refeição. Foi uma experiencia muito forte na minha vida!
ALBANO PEDRO: Realmente é uma experiência extraordinária. Quando já estavas no limite das tuas possibilidades, surgiu a solução!
LUATY BEIRÃO: Então se está escrita que vou passar por isso então só me resta manter-me firme. Se sobreviver será vontade de Deus ou seja o que for, se não então também é vontade dele.
ALBANO PEDRO: Percebo que não é fácil contrariar os próprios princípios, mas terás de compreender que se não resistes até a fase do julgamento, no mínimo tens de escrever algo em tua defesa para que possamos utilizar como o teu desejo póstumo em termos de ideais perseguidos e justificar as tuas nobres visões sobre o Estado e povo.
LUATY BEIRÃO: Não sei. Já não leio em condições. Estou a perder a visão… (Suspiro profundo)!
ALBANO PEDRO: Se queres que aceitemos a tua morte, no mínimo prometa-nos que vais fazer apontamentos em tua defesa. Em defesa da causa que sempre defendeste para que ela não se perca no esquecimento contigo mesmo…!
LUATY BEIRÃO: Está bem, Albano. Vou fazer algum esforço. Mas compreenda que nessa altura é quase sobre-humano… (Suspiro profundo)! Mas devo reconhecer que desde que estou aqui preso nunca tive tanto tempo de conversa com uma visita. É extraordinário o que vocês conseguiram e estou profundamente grato por isso!
N.B: Ao longo do diálogo de cerca de 3 horas, percebia-se que o esforço de Luaty Beirão em manter a conversa vinha do próprio espírito entusiasmado pela nossa presença, que lhe permitiu abrir-se e expor-se tão a vontade como se desabafasse para a sua própria alma. Mesmo com a visível fraqueza do corpo chegava a dar gargalhadas em volta dos vários temas que tratamos. Embora ateu, a alma divina estava nele. Claro é apenas ateu porque não crê no Deus sádico tal como não creio. E essa alma fazia a sua parte sobrenatural num corpo fragilizado. Infelizmente, receio que tudo isso se repercuta negativamente na sua saúde já debilitada. Mas foi concerteza um diálogo necessário e uma momento impar na própria vida de Luaty Beirão. Pois, percebi que acabou saindo com uma nova fé e com um Deus renovado na sua percepção.
(P.S: Depois de ter deixado a prisão, longas horas depois de conter as fortes emoções que me provocaram a imagem deplorável e a integridade impar de Luaty Beirão, e percebendo nele uma jóia rara a desaparecer, explodi em choros e lágrimas, como nunca mais me aconteceu desde o fim da infância.)
Conversa havida no dia 08 de Outubro de 2015.

O “caso” Luaty Beirão é um reflexo da política de Savimbi - José Ribeiro

Luanda - A posição da oposição angolana liderada pela actual direcção da UNITA contra o espírito de unidade e reconstrução nacional presente nos acordos de paz do Luena começou com a decisão de Samakuva de pôr fim ao GURN. Esta atitude de renegação mantém-se inalterável até hoje, mas ao contrário do que pensa o líder da oposição, ou quem interpreta a realidade por si, tem prejudicado muito mais o país do que o MPLA e o seu líder.
Fonte: Jornal de Angola
As lições da democracia em Angola
Quem percebe bem isto que acabo de afirmar são as igrejas angolanas, mas estas, porque atravessadas também pela influência das direcções dos partidos políticos, pouco ou nada podem fazer para chamarem à razão as almas desavindas. Até talvez nem convenha, como dizia o meu mestre, sempre céptico com asserções definitivas. O melhor é concentrarem-se no evangelho e na salvação das almas, que o país também precisa.
Abandonando o quadro institucional da reconciliação nacional balizado no Luena, a oposição liderada pela UNITA de Isaías Samakuva quis com isso abrir o seu espaço de ataque à governação, seguindo modelos exógenos e académicos, sem entender no que se metia. Só que alargou tanto o seu campo de crítica que se afastou do nível da sensatez política e caiu no extremo perigoso, chegando a assumir contornos que se aproximam do passado.
A UNITA desta linha política descomprometeu-se das responsabilidades que teve no estado a que chegou o país, voltando a abandonar lugares na Assembleia Nacional, qualificou o regime de ditadura, incitando à revolta e a manifestações selvagens, elevou o limite da crispação até à hostilidade, usando a Rádio Despertar e o terrorismo mediático das ditas redes sociais, e voltou a conduzir uma diplomacia paralela contra o próprio Estado a que pertence, dando novo alento a antigos “lóbis” savimbistas adormecidos e enfraquecendo a democracia angolana.

Por exemplo, para provar que a imprensa angolana não é independente nem pluralista, a liderança da UNITA evita ao máximo o contacto com os meios de comunicação social. Pela terceira vez consecutiva em vários anos, o pedido de entrevista feito pelo Jornal de Angola a Isaías Samakuva e a Chivukuvuku foi recusado. Mas, naquilo que é um caso de corrupção, o maior partido da oposição disponibilizou dinheiro para pagar o congresso do Sindicato de Jornalistas Angolanos (SJA), que se transformou numa fraude democrática camuflada.
As consequências do tipo de oposição que é feito pela UNITA de Isaías Samakuva são óbvias. É nos momentos de grandes dificuldades e de maior aperto que melhor se conhecem os grandes homens e se vê quem está de facto empenhado em dar solução aos problemas da Nação. Os renegados do espírito dos acordos do Luena rejubilam com as consequências da descida do preço do petróleo para as finanças públicas, quase como se fossem rebeldes interessados num Estado fraco. Nos tempos duros da guerra, o cidadão viu quem esteve a defender a integridade e a soberania nacional e quem não esteve. Nos tempos virtuosos do preço alto do petróleo, toda a gente viu quem esteve a rasgar o território e a fazer obra e quem ficou de braços cruzados a ver a caravana a passar e apenas a criticar.
A intolerância política de que Isaías Samakuva se queixa interessa à própria UNITA, pois permite-lhe aparecer como vítima. Como a mulher que se zanga com o marido e atira o bebé pela janela fora, até é útil para políticos do estilo de um Numa ou Adalberto Júnior, criar mártires na sociedade angolana. O “caso” Luaty Beirão é um reflexo da política daqueles que fizeram a guerra e a propaganda de Savimbi.
A oposição liderada pela UNITA preferiu o caminho do confronto extremado, mas entrou num beco sem saída. Agora dá a entender que deseja voltar ao tempo do acordo de Alvor do fim do império português, da “partilha do poder” de Chester Crocker, dos acordos de Bicesse de Durão Barroso, do Protocolo de Lusaca de Maître Beye, enfim, quer voltar a reduzir o sistema político angolano ao controlo dos antigos movimentos de libertação, recuar aos privilégios que conquistou com o GURN e estupidamente abandonou, agravando a vida de muitos dos seus militantes, e quer uma democracia que lhe seja submissa.
Só que Isaías Samakuva pede o impossível, porque, 40 anos depois da Independência Nacional, novos protagonistas emergiam na cena política angolana, com tanto direito como os velhos, a democracia angolana evoluiu, nasceram novos poderes e o caminho a partir de agora é para a liberdade e a modernidade.
Na democracia à americana, que passei a visitar ultimamente, tentando perceber as diferenças entre o sistema liberal do outro lado do Atlântico e os regimes europeus egoístas, colonialistas, exploradores, chulos e corruptos, tão conhecidos e próximos de nós que já sufocam, o que prevalece acima de tudo é o primado da lei. Se à conduta de hoje da UNITA fossem aplicadas as regras do modelo democrático americano, nesta altura toda a direcção de Samakuva que se esconde por trás das instituições democráticas estaria a contas com a justiça.
Felizmente para esse tipo de oposição, o actual regime político em Angola é moderado, reconciliador, dialogante e sensato, opção política que deu frutos, entronca no espírito do Luena e tem sido fonte de inspiração na resolução de outros conflitos africanos. Em 40 anos de Independência e depois de tantos anos de guerra, essa é uma lição a reter.
* Director do Jornal de Angola


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