segunda-feira, 20 de abril de 2015

Um genocídio disfarçado na África do Sul

Em 2008, a imagem de um cidadão moçambicano mergulhado em chamas, com um polícia branco empunhando um extintor para o tentar salvar, trouxe à superfície a interacção da ironia e do extremo da crueldade humana de tal forma que nos poderíamos interrogar sobre se haverá algo mais de que o Homem seria incapaz de fazer. Imagens idênticas repetem-se hoje na cidade sul-africana de Durban, onde há três semanas a população local tem estado envolvida numa guerra para expulsar do país cidadãos negros oriundos de outros países africanos. Destes ataques já resultaram seis mortes e não há sinais de que a situação venha a abrandar tão cedo. A ironia prende-se com o facto de que o polícia branco, que há mais de vinte anos simbolizava o terror do sistema do apartheid contra a luta dos negros pela sua liberdade, surge hoje a tentar salvar o homem negro da selvajaria a que este é sujeito por outros negros simplesmente pelo facto de ser estrangeiro. De forma cíclica, todos os anos, a África do Sul é apossada por manifestações violentas contra a presença de estrangeiros africanos, resultando em mortes. Geralmente, estas manifestações intensificam-se durante, ou a medida em que o país se aproxima do inverno, uma época em que os pobres na África do Sul sentem com maior intensidade a sua pobreza, devido às precárias condições de habitação em que a maioria vive. Apesar de possuir a economia mais sofisticada do continente africano, a África do Sul tem chocantes níveis de pobreza e de desigualdades sócio-económicas entre a sua população negra. O analfabetismo, o semi-analfabetismo e o desemprego são a característica principal entre a maioria das populações negra e mestiça do país, o que causa uma frustração que depois conduz a um elevadíssimo nível de consumo de drogas e álcool. Esta situação deve-se, em grande parte, a um legado do antigo sistema do apartheid, que apesar de todos os esforços dos últimos 20 anos levará tempo a ser erradicado. Os factores internos da África do Sul interagem com uma forte pressão que está a ser exercida sobre o país por parte de cidadãos africanos oriundos de todo o tipo de países, incluindo alguns que podem ser caracterizados como estados falhados. A presença de muitos estrangeiros pobres, concorrendo para o acesso a recursos com pessoas mais pobres do que elas próprias, conduz a uma tensão quase permanente e que resulta no tipo de manifestações violentas de xenofobia como as que têm estado a registar-se nas últimas semanas na província do KwaZulu Natal. Em parte, a xenofobia é um acto de auto-rejeição; consistindo de africanos, eles próprios produto de várias décadas de imigração, que se revoltam contra os novos imigrantes, naquilo que já assumiu a designação de “afrofobia”. Na essência, a África do Sul é uma comunidade de imigrantes. Desde 1910 e até 1994, a África do Sul era uma União de quatro repúblicas, nomeadamente o Cabo, Natal, Orange Free State e Transval. Antes disso, e com a descoberta de ouro em Transval, foi introduzido um sistema de mão-de-obra migratória, na base do qual eram recrutados trabalhadores a partir das outras repúblicas e ainda dos países vizinhos como o Botswana, Lesotho, Malawi, Moçambique e Zimbabwe. É assim que os trabalhadores provenientes de outras partes da África do Sul eram também considerados imigrantes na República do Transval, e sujeitos ao mesmo tipo de ataques de xenofobia de que hoje são vítimas cidadãos oriundos de outros países africanos. Com uma gritante falta de quadros nacionais para fazer mover a sua economia, a África do Sul hoje depende, em grande medida, da contribuição técnica e científica de cidadãos de outros países africanos que nos primeiros anos da sua independência investiram muito na educação, mas cujas economias são relativamente fracas se comparadas com a da África do Sul. São estes emigrantes/estrangeiros, que juntamente com outros que para aquele país se dirigem à procura de melhores oportunidades, com os seus impostos contribuem significativamente para o dinheiro que os sul-africanos fazem filas todos os meses para receber na forma de subsídios sociais. Por outro lado, muitos países africanos e vizinhos da África do Sul contribuem significativamente para o crescimento da economia sul-africana como compradores dos seus produtos ou através do uso dos territórios destes países como pontos de trânsito para as suas exportações. Por isso, não há justificação para a humilhação a que os estrangeiros são sujeitos, especialmente nas fronteiras terrestres por parte de funcionários da migração e da polícia, que muitas vezes actuam nas regiões fronteiriças como se estivessem numa situação de guerra. Apesar do seu nível sofisticado, a economia sul-africana nunca estará em condições de suster só por um dia uma acção de retaliação que conduzisse ao encerramento das suas fronteiras terrestres. Cidadãos destes países alimentam a economia sul-africana de uma forma que se fosse devidamente quantificada, faria com que os promotores desta xenofobia pensassem duas vezes. Os sul-africanos não podem querer o nosso dinheiro mas ao mesmo tempo não quererem os nossos cidadãos dentro das suas fronteiras. O governo da África do Sul tem a obrigação de garantir a segurança de todos aqueles que se encontram no interior das fronteiras do seu país, incluindo estrangeiros. A polícia, como em qualquer parte do mundo civilizado, deve tomar conta dos imigrantes ilegais e agir com base nas leis nacionais que tratam da imigração ilegal. Não se pode permitir que seres humanos sejam tratados com tamanha selvajaria, mesmo atendendo a que alguns tenham cometido o crime de entrar para um país estrangeiro sem qualquer tipo de documentação oficial. O que está a acontecer na África do Sul põe em causa todo um projecto de integração regional e de cooperação em África. Um verdadeiro genocídio está em marcha e as autoridades daquele país devem ser chamadas a assumir as suas responsabilidades. 

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