A ciência está mal na Pérola do Índico. Ou melhor, está a ficar cada vez mais órfã. Órfã de quem tem a obrigação de a defender. Chego a esta constatação através da observação da forma como estamos a abordar a questão dos desmaios de alunas em algumas escolas. A coisa começou há alguns anos com o caso de Quisse Mavota em Maputo (na altura escrevi textos sobre o assunto com o título “os desmaios da razão” numa tentativa inútil de defender a ciência) e continua agora com os desmaios que ocorrem na Manhiça. O mesmo grupo de especialistas (que incluem pessoal da AMETRAMO) está aí a passear a sua perplexidade e profundo desconhecimento da ciência. Alguns cientistas sociais que compõem esse grupo de especialistas renderam-se a sua própria ignorância com recurso a uma suposta impotência científica perante o que torna a África diferente de todos e de tudo. Um espectáculo confrangedor.
Há vários equívocos na abordagem deste assunto. O primeiro revela má formação epistemológica. A ciência não tem solução para tudo, nem se arroga esse privilégio. A ciência é um método de obtenção de conhecimento que reconhece os seus limites. Isto é fundamental. A ciência não se deslegitima quando reconhece não entender uma determinada coisa e, por isso, não ter solução para ela. Deslegitima-se quando se rende sem nenhuma ideia do tipo de dificuldades que está a ter com o entendimento dum determinado problema. A questão em relação ao caso dos desmaios é a seguinte: o que é que os “especialistas” não estão a entender? E para a gente discutir esta questão com utilidade a gente precisa de saber como eles estão a abordar o problema, isto é se a sua metodologia é adequada ou não. Pela forma como alguns deles são citados por aí duvido que estejam a abordar o problema devidamente. Quando alguns deles dizem que há certas coisas que necessitam de outro tipo de racionalidades para serem entendidas estão a rasgar os seus diplomas universitários em público.
Ao contrário da ciência, essas outras racionalidades que eles elevam a outros patamares têm explicação para tudo. Essa é que é a grande diferença. As meninas desmaiam porque os espíritos dos donos da terra onde foi construída a escola não foram consultados. Vamos supor que isto faça sentido. Ok, e agora, como funciona exactamente esse processo de selecionar meninas (e só meninas), fazê-las desmaiar (sem, contudo, perderem a consciência como uma psicóloga do Ministério da Saúde constatou aquando do caso de Quisse Mavota, o que é uma maneira de dizer que na verdade não desmaiaram…), e isto repetidamente? Algumas pessoas que consideram esta “explicação” razoável (e autêntica) dão-se por satisfeitas apesar de não terem respostas para estas questões essenciais. Como funciona tudo isto? Se disserem que não sabem, funciona apenas, então estamos perante um horrível atestado de ignorância.
O segundo equívoco é de natureza lógica. Por ser importante até tem nome. Chama-se apelo à ignorância e consiste na ideia de que não ter provas para a não existência de alguma coisa é prova de que ela existe. Estão meninas a desmaiar, a ciência não sabe porque elas desmaiam, a racionalidade africana superior diz que é por causa de espíritos, a ciência diz que não, mas não sabe como provar isso, logo, os desmaios acontecem por causa dos espíritos. Deus existe pelo simples facto de o agnóstico não poder provar a sua não existência. É grave. Eleva-se a ignorância ao estatuto de saber. O único que dá plausibilidade à versão africana é o facto de a ciência não ter explicação. Não são os méritos dessa explicação. Também seria difícil entender essa explicação porque muitos que falam sobre estas matérias têm um conhecimento deficiente (pelo menos a julgar pelo que dizem por aí) do pensamento africano e, pior, sabem pouco sobre a ciência. Isso não os impede de tirar conclusões definitivas lá do alto da sua perplexidade. Sem um conhecimento da visão do mundo por detrás desse pensamento “africano” e sem algumas leituras na área da filosofia da ciência, metodologia das ciências sociais, etc. é muito complicado concluir sobre os limites da ciência e a superioridade de outras abordagens. No fundo, é até desonesto do ponto de vista intelectual. É nestes momentos que me lembro com saudades dum curandeiro de Chicumbane com quem mantive longas conversas lá para os finais dos anos noventa no âmbito dum trabalho de pesquisa sobre a religião e que me disse quão bom seria que as igrejas e os curandeiros se unissem para combater a superstição. Mal sabia ele que essa superstição andava aí camuflada em diplomas universitários.
O terceiro equívoco mereceu a atenção especial dum grande filósofo africano, na verdade, o meu filósofo preferido, nomeadamente Kwasi Wiredu, do Gana. Uma vez insurgiu-se contra uma comparação feita por um filósofo e antropólogo inglês, Robin Horton, entre a ciência e o pensamento tradicional africano. E com razão. Porque comparar ciência com pensamento tradicional e não pensamento tradicional africano com pensamento tradicional europeu? E o problema está aí mesmo. Muitas vezes, o que os nossos desformados nacionais querem ver como uma especificidade africana é apenas uma manifestação local dum fenómeno universal. A ciência é tão europeia quanto também nossa, tem as suas formas e contextos de aplicação e quando falha não é porque está a lidar com algo “africano”. Há bem pouco tempo os aldeões bem pertinho da cidade suíça onde trabalho bloquearam a estrada nas suas aldeias no meio de acusações de feitiçaria. Os jornais populares estão aqui também cheios de anúncios de gente que cura tudo, mas isso não é nenhuma manifestação de africanidade. É de perplexidade, uma perplexidade que precisa de ser entendida sob o risco, como pode acontecer em Moçambique, de privarmos crianças que sofrem de alguma psicose dos cuidados que deviam receber para regressarem ao seu desenvolvimento normal. E tudo isso em nome duma africanidade mal entendida.
Finalmente, faz-se confusão entre espiritualidade e ciência e colocam-se essas duas coisas num patamar competitivo que não faz justiça as suas especificidades. Eu ofereço tabaco aos meus defuntos, participo em cerimónias familiares de evocação de espíritos, etc., mas sei separar isso do meu lado científico e não vejo necessariamente uma contradição. Há muita gente que precisa também do lado espiritual para levar uma vida equilibrada. Propor a espiritualidade como alternativa à ciência, a alternativa que vai suprir as lacunas da ciência, é não entender cada uma dessas duas coisas. É, de novo, perplexidade. Pode ser, por exemplo, que a “explicação” “tradicional” para os desmaios ajude as pessoas a lidarem com uma situação incompreensível, mas isso é diferente de dizer que essa explicação é a explicação. De resto, se me faz bem pensar que não sou promovido onde trabalho por causa das drogas que o meu colega andou a esconder no meu gabinete e com isso evito pensar no meu próprio desempenho tudo bem. Não vai ser por isso que as drogas vão ser a explicação.
Enfim, eu considero esta situação triste e lamentável. E aqui nem falei dum pormenor importante que nenhum de nós está a considerar. A “ciência” que falhou na Manhiça é a ciência representada pelos especialistas que foram enviados para lá. Sobre a idoneidade científica dum deles (pelos seus depoimentos) tenho as minhas reticências. Mas antes de falarmos do falhanço da ciência devíamos também perguntar se ela foi bem representada nessa equipa? Foi a ciência que falhou ou foram esses cientistas? Devíamos também perguntar se vivemos numa sociedade preparada para aceitar os resultados do trabalho científico, resultados esses que podem consistir na ideia de que não temos resposta.
O nosso ensino superior está em muito maus lençóis. Juro pelos espíritos dos meus antepassados.
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