Raras são as cidades que têm claro o processo da sua fundação. O Rio tem. Para a maioria das cidades, é óbvia a razão da sua designação. Para o Rio, não. A conjugação dessas duas premissas faz do Rio um paradoxo que a sua realidade confirma a cada passo
“[…] escolhi um sítio que parecia mais conveniente para edificar nele a cidade de são sebastião, o qual sítio era de um grande mato espesso, cheio de muitas árvores grossas, em que se levou assaz de trabalho em as cortar e alimpar o dito sítio e edificar uma cidade grande cercada de trasto de vinte palmos de largo e outros tantos de altura, toda cercada de muro por cima com muitos baluartes e fortes cheio d’artilharia. E fiz a Igreja dos padres de Jesu […], e a sé de três naves também telhada e bem consertada, fiz a casa da câmara sobradada, telhada e grande, a cadeia, as casas dos armazéns e para a fazenda de sua alteza sobradadas e telhadas e com varandas, dei ordem e favor ajuda com que fizessem outras muitas casas telhadas e sobradadas.”
in Instrumento dos Serviços Prestados por Mem de Sá, 1570, Cartório dos Jesuítas, Torre do Tombo.
Por carta de 1 de Junho de 1553 ao rei D. João III, o primeiro governador do Brasil, Tomé de Souza, maravilhado com a baía da Guanabara na visita que ali fizera meio ano antes, mandou-lhe “o debuxo dela” e sintetizou o que viu da forma seguinte: “Tudo e[ra] graça o que se dela pode dizer, senão que pinte quem quiser como deseje um Rio, isso tem este de Janeiro.”
Já em 1531, Pero Lopes de Souza, relator da armada de Martim Afonso de Souza, escrevera “este Rio é mui grande, tem dentro oito ilhas e assim muitos abrigos”. Ambos os excertos dão-nos conta não só das excepcionais qualidades do local, como do facto de durante as primeiras décadas de visitas os portugueses terem tomado a baía como a foz de um rio, cunhando-lhe assim um topónimo que acabou designando o povoado cuja fundação ocorreu há precisamente 450 anos. Ninguém sabe ao certo quem instalou esse equívoco (Américo Vespúcio, Gaspar Coelho, Cristóvão Pires, Fernão de Magalhães?), e com ele a invocação do mês em que é natural que tal tenha ocorrido.
A poente de cabo Frio, no único trecho da costa brasileira que corre paralelo ao Equador e a meia centena de quilómetros a norte do Trópico de Capricórnio, o recorte e a envolvente da baía da Guanabara (“água penetrante” em tupi) são únicos: 140 quilómetros de perímetro, 30 de profundidade e 26 de largura máximos contrastam com o pouco mais de quilómetro e meio da boca balizada pelos morros de Santa Cruz a este e do Pão de Açúcar e de São João (outrora Cara de Cão) a oeste. O entorno é de serras e morros com vertentes abruptas recortando terrenos planos e férteis, bem como lagoas que, tal como a baía, foram ricas em peixe.
Além do deslumbramento provocado por esse quadro natural profusamente florestado, que em finais de quinhentos o padre Fernão Cardim descreveu como parecendo “que quem a pintou foi o supremo pintor e arquitecto do mundo, Deus Nosso Senhor”, a baía apresentava-se pois como um local ideal para instalação humana com fácil defesa, pelo que é óbvia a recomendação de Tomé de Souza na já referida carta ao rei: “V. A. deve mandar fazer ali uma povoação honrada e boa.” Assim aconteceria e Guanabara e Rio, que afinal e respectivamente são baía e cidade, continuam a fazer jus ao maravilhamento de Pero Lopes e Tomé de Souza, que a descreveram antes de qualquer instalação europeia.
A área era fartamente habitada por população nativa, os tamoios, que além de um considerável grau de organização tinham grande propensão, preparação e prontidão para combater. Desde muito cedo era também frequentada por franceses que com eles pactuaram e comerciavam, pondo em causa a exclusividade de que os portugueses, baseados no Tratado de Tordesilhas, se arrogavam detentores. O combate à presença francesa nas costas brasileiras desenvolveu-se nas mais diversas frentes, incluindo a diplomática, o que não evitou que por eles fosse gizado e posto em execução o projeto colonial designado “França Antártica”, precisamente destinado à Guanabara e liderado por Nicolas Durand de Villegagnon. Este, em 1555, instalou um forte com uma colónia (Forte Coligny), uma verdadeira testa de ponte francesa na ilha que hoje conserva o seu nome e que quase está fundida com o aterro entretanto feito para o Aeroporto Santos Dumond. Era um avanço intolerável que os portugueses apenas lograram contrariar cinco anos volvidos sob o comando do terceiro governador do Brasil, Mem de Sá. Sem capacidade imediata para ocupar o local e perante a forte oposição dos tamoios industriados pelos franceses, os portugueses limitaram-se a destruir o forte e os franceses dispersaram-se pela região, pelo que a ameaça não cessou. Ajudaram os tempos difíceis que então se viviam em França.
Era óbvio que a neutralização do projecto francês passava pela fixação de uma instalação portuguesa, uma cidade. Depois de muitos o pedirem, incluindo os jesuítas, em 1563 D. Catarina, rainha e regente na menoridade de D. Sebastião, deu ordens nesse sentido a Estácio de Sá, sobrinho do governador, dotando-o de uma pequena armada que seria aumentada já no Brasil. Ao fim de dois anos de preparativos, hesitações e dificuldades, a armada por ele chefiada e integrando um grupo de duas centenas de efectivos (que incluiu temiminós e tamoios inimigos dos da Guanabara) entrou naquela baía e, no dia seguinte, 1 de Março de 1565, fundaram a cidade de São Sebastião no Rio de Janeiro.
Foi a segunda cidade real fundada no Brasil, 16 anos depois da fundação de Salvador da Bahia de Todos-os-Santos. A integração no topónimo do nome do jovem rei sob a forma do seu santo patrono veio adensar a referência ao mês de Janeiro, pois D. Sebastião nascera a 20 de Janeiro, precisamente no dia em que o calendário católico celebra aquele guerreiro-mártir. A decisão terá sido tomada em Lisboa, pois a imagem do santo de madeira policromada que pertenceu à paroquial primitiva, depois à catedral e que hoje está na igreja capuchinha da Tijuca, foi levada na armada fundacional de Estácio de Sá, provavelmente posta ao cuidado do ainda noviço jesuíta e primeiro cronista da cidade, José de Anchieta, o “apóstolo do Brasil”. Junto dela estão também o padrão de fundação da cidade e a lápide funerária de Estácio de Sá.
Materialmente, aquela instalação primitiva da cidade de São Sebastião era pequena, provisória e de cariz assumidamente militar, num local exíguo escolhido a preceito junto à entrada da baía, abrigado pelos morros do Pão de Açúcar e da Urca, junto a São João. Se pela reacção concertada dos tamoios e franceses a preocupação defensiva era permanente, a verdade é que desde logo entrou em funcionamento o sistema político-administrativo de um novo município colonial (à imagem dos da metrópole), incluindo instituições, cargos e dação de chãos e sesmarias de um território que paulatinamente se foi reconhecendo. O processo foi voluntariamente apoiado por portugueses instalados noutros pontos do Brasil, designadamente da capitania de São Vicente, que disso foram sendo recompensados.
Porém, o sucesso da fundação da cidade e do domínio português da Guanabara continuava a depender da anulação da presença dos franceses e, assim, do apoio em estratégia e armamento que prestavam aos numerosos e aguerridos tamoios. Desta vez, a Coroa demorou menos tempo a reagir, enviando uma armada que foi reforçada na sede do governo (Salvador da Bahia), incluindo a participação de gente de outras capitanias e a chefia do próprio governador, Mem de Sá. Dois dias depois de chegada à Guanabara, uma vez mais a 20 de Janeiro (o dia de São Sebastião de 1567), a força portuguesa atacou com sucesso a principal posição forte dos tamoios e franceses, situada no que é hoje o Morro da Glória, e dias depois conquistou-se a outra posição na actual ilha do Governador, bem maior e mais no interior da baía e onde hoje está o Aeroporto Tom Jobim (ou do Galeão). Estácio de Sá ficou gravemente ferido nos combates, acabando por morrer cerca de um mês depois.
Nesta campanha, os franceses presentes ou foram mortos ou feitos prisioneiros, o que descomprimiu consideravelmente a ameaça que constituíam aos interesses portugueses, mas sem a qual, como se viu, não teria havido qualquer pressa para fundar a cidade e dominar a região. Contudo, o combate prosseguiria, pois em toda a região do cabo Frio a presença francesa continuava forte, tal como o entendimento comercial e militar com os tamoios, o que, aliás, levaria ao seu extermínio (por morte e dispersão) numa acção cruel levada a cabo em 1575.
É extraordinário constatar em documentação coeva como logo no dia 11 de Março seguinte decorreu uma cerimónia de juramento “nas casas do Tesouro d’El-Rei” no Morro do Castelo, ou seja, no local para onde a cidade se mudara com carácter definitivo. Já houve quem defendesse, sem provar, que tal mudança ocorreu no dia 1 de Março, o que não só é simbólico, como não erra por muito. A verdade é que o treslado ocorreu entre a derrota dos franceses em finais de Janeiro e o início de Março. Estamos necessariamente a falar de instalações e equipamentos muito simples, e de instituições cujo acervo seria mínimo e por isso fácil de mudar da, desde então, cidade velha para a nova e definitiva instalação urbana.
O excerto do Instrumento dos Serviços Prestados por Mem de Sá que serve de epígrafe a este texto relata bem o ímpeto (re)fundacional com que o governador do Brasil presidiu à construção da cidade de São Sebastião sobre o Morro do Castelo. A par das características defensivas naturais (elevação, flancos em escarpa, rodeado de pântano e lagoa, situação penetrante na baía com boa vista para a barra), área suficiente para acolher as instituições do poder civil e religioso, além de algum casario, e uma boa exposição às brisas e ao sol (virado a norte no hemisfério sul), o local tinha no flanco norte, frente a um bom varadouro, uma várzea que permitiria ensanchar a cidade e, para o interior, aceder a terrenos férteis para o seu sustento agrícola. Bem próxima estava a foz do pequeno rio da Carioca, onde desde o início os portugueses iam fazer aguada, o que por certo cedo terá criado uma propensão para a eleição da zona como local ideal para a implantação definitiva da cidade.
A semente urbanística lançada no Morro do Castelo ou Outeiro de São Sebastião, como então era designado, germinou conforme o previsível. A Igreja de São Sebastião, a câmara, a cadeia, o colégio dos jesuítas e mais algumas poucas dependências civis e casas particulares cedo lotaram o espaço disponível no exíguo morro muralhado em forma de tridente. Por isso, a cidade, que cedo prosperou, desceu e espraiou-se ordenadamente pela várzea drenada e nivelada para o efeito. Uma “baixa” que chegou a estar circunscrita num rectângulo balizado, além do Morro do Castelo, pelos morros interiores de Santo António (ocupado pelo conjunto franciscano a partir de 1608) e da Conceição (ocupado sucessivamente pela ermida, convento, paço episcopal e forte), e o ribeirinho Outeiro de São Bento (coroado pelo complexo beneditino a partir de 1590).
Esse perímetro é hoje o coração do centro, área que apesar de esventrada por sucessivas operações, como as aberturas das avenidas Barão do Rio Branco em 1904 (norte-sul) e Presidente Vargas em 1944 (este-oeste), não apagou o arruado e o essencial da toponímia coloniais. Nessa estrutura urbana, do edificado colonial restam igrejas e conventos, bem como o Paço Imperial, espaços públicos e alguns monumentos.
Seguindo o que simbolicamente se apresenta como um destino marcado, o morro e o conjunto de espaços, sistema defensivo e equipamentos ali construídos entre 1565 e 1570 sob a tutela de Mem de Sá, que consubstanciaram a instalação definitiva da cidade real de São Sebastião da Guanabara ou do Rio de Janeiro, desapareceram num processo encetado na década de 1920, com o qual se adicionou à Baixa carioca a zona baixa que foi a base do próprio morro, e outra do aterro em que foi processado permitindo a implantação do aeroporto. Destino confirmado pela “substituição natural” do topónimo São Sebastião, talvez induzida pelo misterioso e mítico desaparecimento do jovem rei em nome e com o nome do qual se fundou a cidade que hoje é, (misteriosa e) maravilhosamente, o Rio de Janeiro.
Arquitecto, Universidade de Coimbra
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