OPINIÃO
A milhas do Syriza, pode-se saudar a mudança que o Syriza trouxe a um mundo estagnado e pantanoso, maldoso e desigual. Não preciso de explicar mais nada, pois não?
Uma das coisas que a vitória do Syriza e o conjunto de eventos posteriores têm mostrado é a sua importância para todo o espectro político da Europa. Neste sentido, os gregos podem falhar em tudo, que nada será de novo igual nem na Grécia, nem na Europa.
Quando um acontecimento gera tão intensos sonhos e pesadelos, estamos perante a história. Pode ser uma nota de pé de página, um parágrafo de meia dúzia de linhas, mas ficará na história da Europa. Embora não esteja certo, admito que possa vir a ser o mais importante momento europeu depois da unificação alemã.
Há quem considere que nada disto tem importância, até pela irrelevância da Grécia no conjunto das economias da União Europeia, ou pelo seu papel de minúsculo David face ao Golias alemão. Mas David matou Golias apenas com uma funda... Seja como for, mais do que não ter importância, é o desejo de que não tenha importância e o mundo volte ao conforto do habitual. Como em todo este texto se verá, um dos efeitos do caso grego é multiplicar o mundo dos desejos, e isso é já, em si mesmo, uma poderosa vitória simbólica.
Mas olhe-se para o mapa de Europa, a que se deve acrescentar alguma da história da Europa. A Grécia está nos Balcãs, por si só um sítio muito pouco recomendável. Um pouco mais acima e a leste arde cada vez com mais vigor a guerra civil ucraniana, talvez o mais perigoso conflito internacional dos dias de hoje. Ao seu lado está um tradicional inimigo, a Turquia, o fim da Europa e o princípio da Ásia. Alguém pensa que a Grécia possa ser esmagada e humilhada sem consequências na sua política externa e na geopolítica da região?
Os adversários do Syriza, que são os “ajustadores inevitáveis”, sabem que se deu um ponto sem retorno. Nós sabemos disso e eles sabem que nós sabemos que eles também sabem. Mas um ponto sem retorno não significa que o caminho seja unívoco, apenas que as coisas já não voltam para trás. Mesmo que, no fim de tudo isto, o Syriza seja varrido da governação, os gregos remetidos para uma maior pobreza, e os alemães e os seus aliados e colaboracionistas tenham conseguido domar a “revolta” grega, a paz podre destes últimos anos não mais voltará.
No passado, ainda próximo, havia uma maneira de acabar com a aventura do Syriza: ajudar os “coronéis” a fazer um golpe de Estado. Pode parecer impossível, mas as forças armadas gregas vão ser o lugar de um complexo choque de lealdades. Por um lado, há uma forte componente nacionalista na vitória do Syriza – o aspecto mais negligenciado nas análises que privilegiam o “ideológico” no extremismo do Syriza – e não há grego que não se sinta insultado pela prepotência alemã e pelos seus diktats à Grécia. Isso coloca os militares mais perto do governo, mesmo que possa ser tido como um governo de perigosa ideologia “comunista”.
Por seu lado, os militares gregos são “militares NATO” impregnados de uma forte cultura vinda da Guerra Fria, e podem reagir a uma viragem governamental pró-russa que se venha a dar de conveniência e de desespero, e que representa de facto uma das margens de manobra para que o Syriza pode ser empurrado. Podem também achar que a fragilização da Grécia representa oportunidades para o seu adversário histórico, a Turquia, que pode ter a tentação de explorar este momento difícil. Há um largo contencioso, incluindo um conflito territorial sobre as ilhas gregas do mar Egeu, entre a Grécia e a Turquia, a somar aos conflitos mais a norte com a Macedónia, perdão, a FYROM, e com o Epiro albanês. Se reduzirmos o actual conflito grego apenas à sua dimensão da dívida, da troika, das imposições alemãs, e não virmos o resto, cometemos um sério erro de análise.
Por isso, o Syriza dá origem a um grande feixe de desejos, que penetram na linguagem política, muitas vezes levando os seus sujeitos a confundirem o que desejam com a realidade. Há sonhos pró-Syriza, e pesadelos anti-Syriza, e estão aí à solta nos discursos, nos artigos, nos debates, nas redes sociais, nos blogues. Há, do lado dos defensores da “inevitabilidade”, abalados pela singularidade de um partido de fora do “arco governativo” ideológico ter ganho as eleições, um desejo central: que o Syriza falhe. Que, pura e simplesmente, tudo corra mal, haja novas eleições e volte a Nova Democracia a governar a Grécia, reconstituindo-se o mundo como “nós” o conhecemos, familiar, habitual, “inevitável”. Se isso acontecer, o mundo volta aos eixos, ou seja, à “inevitabilidade.
As variantes deste desejo são várias, a começar pelo desejo de que o Syriza abandone de forma explícita e evidente as suas propostas eleitorais, que seja como Hollande, em França. Confundindo o seu desejo com a realidade proclamam que isso já aconteceu, mas seria bom serem mais prudentes, porque não é a explicitude das propostas que conta, mas o saber-se se haverá ou não ganho de causa para os gregos com todo este processo. E, mais importante, ainda, que os gregos estejam convictos de que o obtiveram votando no Syriza e não em qualquer outro partido.
A versão dura é o desejo que o Syriza traia de forma evidente o que prometeu, aceite um acordo de fachada, para que tudo continue na mesma. Que o Syriza apareça aos olhos de todos como um bando de oportunistas, demagogos, irrealistas, que se venderam por um prato de lentilhas, as mesmas lentilhas “inevitáveis” que a Nova Democracia servia e que funcionavam como conforto para governos colaboracionistas como o português.
Aí haveria o desejo de que o Syriza encontrasse aquilo que eles chamam a “realidade” de frente, de preferência sob a forma de um choque frontal com medidas de retaliação, que punam os gregos pelo modo como votaram. É o desejo maldoso de que os gregos sejam punidos com mais austeridade, porque contestaram a austeridade, ou não a aplicaram com a ferocidade que deveria ter tido. Quando o nosso primeiro-ministro diz que os gregos não fizeram o que deviam, como Portugal e a Irlanda, o que está a dizer é que a tragédia que se abateu sobre a Grécia com números assustadores de pobreza, miséria, desemprego, falta de condições de vida mínimas, de desespero, foi pouco. E como eles contestaram esse “pouco” devem ter ainda mais, que é para aprenderem a ser bem-comportados. E por aí adiante, num exercício que Marx chamaria “luta de classes”, que é a pólvora em que esta gente anda a mexer alumiando um fósforo mental para ver o que se passa.
Claro que, do outro lado, há também uma outra série de desejos, nem todos recomendáveis. Um deles é o de que o Syriza faça por “nós” aquilo que não somos capazes de fazer, faça pela esquerda aquilo que ela não é capaz de fazer, usar o mimetismo com o Syriza sem se ser capaz de fazer o lento trabalho de implantação que ele fez. Ou desejar ganhar eleições copiando o Syriza no plano antiausteritário e ignorar os aspectos soberanistas e patrióticos que o fizeram sair da exclusividade extremista.
Ou desejar que Portugal seja a Grécia nas próximas eleições. Iludir-se com a ignorância de que a situação grega (ou até espanhola com o Podemos) não é a situação portuguesa. Em Portugal, as próximas eleições serão muito bipolarizadas e, se o não forem, é porque o PSD-CDS já as ganhou, ou o PS terá apenas uma “vitorinha”. O PASOK na Grécia foi varrido do mapa porque a bipolarização se fez entre o Syriza e a Nova Democracia, como em Espanhao Podemos pode crescer devido às fragilidades do PSOE. Em Portugal, nada disso acontece.
Eu também tenho um desejo simples e modesto, com muito poucas ilusões. Desejo que as coisas corram bem para os gregos, que eles comecem a sair do buraco infernal em que foram colocados, e que possam, pelo seu acto corajoso de votar contra o statu quo, mostrar que a ditadura da “inevitabilidade” é um deserto mental perigoso, útil para se subordinar Portugal aos poderes europeus e alemães, fragilizar a democracia e empobrecer os portugueses. É por isso que a milhas do Syriza se pode saudar a mudança que o Syriza trouxe a um mundo estagnado e pantanoso, maldoso e desigual. Não preciso de explicar mais nada, pois não?
As variantes deste desejo são várias, a começar pelo desejo de que o Syriza abandone de forma explícita e evidente as suas propostas eleitorais, que seja como Hollande, em França. Confundindo o seu desejo com a realidade proclamam que isso já aconteceu, mas seria bom serem mais prudentes, porque não é a explicitude das propostas que conta, mas o saber-se se haverá ou não ganho de causa para os gregos com todo este processo. E, mais importante, ainda, que os gregos estejam convictos de que o obtiveram votando no Syriza e não em qualquer outro partido.
A versão dura é o desejo que o Syriza traia de forma evidente o que prometeu, aceite um acordo de fachada, para que tudo continue na mesma. Que o Syriza apareça aos olhos de todos como um bando de oportunistas, demagogos, irrealistas, que se venderam por um prato de lentilhas, as mesmas lentilhas “inevitáveis” que a Nova Democracia servia e que funcionavam como conforto para governos colaboracionistas como o português.
Aí haveria o desejo de que o Syriza encontrasse aquilo que eles chamam a “realidade” de frente, de preferência sob a forma de um choque frontal com medidas de retaliação, que punam os gregos pelo modo como votaram. É o desejo maldoso de que os gregos sejam punidos com mais austeridade, porque contestaram a austeridade, ou não a aplicaram com a ferocidade que deveria ter tido. Quando o nosso primeiro-ministro diz que os gregos não fizeram o que deviam, como Portugal e a Irlanda, o que está a dizer é que a tragédia que se abateu sobre a Grécia com números assustadores de pobreza, miséria, desemprego, falta de condições de vida mínimas, de desespero, foi pouco. E como eles contestaram esse “pouco” devem ter ainda mais, que é para aprenderem a ser bem-comportados. E por aí adiante, num exercício que Marx chamaria “luta de classes”, que é a pólvora em que esta gente anda a mexer alumiando um fósforo mental para ver o que se passa.
Claro que, do outro lado, há também uma outra série de desejos, nem todos recomendáveis. Um deles é o de que o Syriza faça por “nós” aquilo que não somos capazes de fazer, faça pela esquerda aquilo que ela não é capaz de fazer, usar o mimetismo com o Syriza sem se ser capaz de fazer o lento trabalho de implantação que ele fez. Ou desejar ganhar eleições copiando o Syriza no plano antiausteritário e ignorar os aspectos soberanistas e patrióticos que o fizeram sair da exclusividade extremista.
Ou desejar que Portugal seja a Grécia nas próximas eleições. Iludir-se com a ignorância de que a situação grega (ou até espanhola com o Podemos) não é a situação portuguesa. Em Portugal, as próximas eleições serão muito bipolarizadas e, se o não forem, é porque o PSD-CDS já as ganhou, ou o PS terá apenas uma “vitorinha”. O PASOK na Grécia foi varrido do mapa porque a bipolarização se fez entre o Syriza e a Nova Democracia, como em Espanhao Podemos pode crescer devido às fragilidades do PSOE. Em Portugal, nada disso acontece.
Eu também tenho um desejo simples e modesto, com muito poucas ilusões. Desejo que as coisas corram bem para os gregos, que eles comecem a sair do buraco infernal em que foram colocados, e que possam, pelo seu acto corajoso de votar contra o statu quo, mostrar que a ditadura da “inevitabilidade” é um deserto mental perigoso, útil para se subordinar Portugal aos poderes europeus e alemães, fragilizar a democracia e empobrecer os portugueses. É por isso que a milhas do Syriza se pode saudar a mudança que o Syriza trouxe a um mundo estagnado e pantanoso, maldoso e desigual. Não preciso de explicar mais nada, pois não?
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