domingo, 1 de fevereiro de 2015

Fraude política

Fraude política
Tentei desviar a atenção dos meus amigos do Facebook da famosa, e fantástica, fraude eleitoral para a fraude intelectual que se abateu sobre o país. Aspectos da discussão que tive que cortar de forma não democrática e intolerante no meu mural voltaram a tornar claro para mim que há um outro tipo de fraude no país, uma fraude que, se calhar, é ainda mais grave do que a eleitoral e a intelectual. É a fraude política. Não tenho o hábito de escrever textos sobre partidos, com a excepção do partido Frelimo com o qual simpatizo apesar de tudo, mas vou quebrar essa regra para falar sobre o MDM que para mim, e já escrevi isto várias vezes, é, com grande pena, uma das maiores decepções do nosso cenário político. Devo fazer algumas confissões.
Admiro, secretamente, este partido. Admirei a coragem daqueles que, num primeiro momento, se desligaram da Frelimo e se juntaram à Renamo com todos os riscos decorrentes do afastamento em relação a um partido que controla o aparelho do Estado; a minha admiração por essas pessoas diminuiu significativamente quando algumas delas – com a honrosa excepção de Eduardo Namburete – abandonaram a Renamo para formar o MDM. A minha admiração diminuiu porque as razões que eles deram para se afastarem da Renamo são razões que eles deviam à partida ter conhecido quando a ela se juntaram. Admiro também a tenacidade e o espírito forte dos irmãos Simango que são para mim o maior símbolo de feridas não saradas e da injustiça que é possível num país quando este é dirigido por pessoas com uma visão messiánica de política e com pouca falta de respeito pela dignidade humana. Conforme escrevi uma vez numa recensão crítica a uma obra sobre a biografia de Uria Simango, mesmo que apenas 1 por cento do que vem contido nesse livro fosse verdade era motivo suficiente para aqueles que nos trouxeram a liberdade virem a público explicar o que realmente aconteceu para que o país faça as pazes com a sua história.
Quando foi criado o MDM houve uma certa euforia não só no país como também fora. Lembro-me de assédios regulares por investigadores e jornalistas cá fora para eu confirmar que estávamos perante uma terceira força que iria, finalmente, pôr fim à polarização bipartidária do país. Sempre me recusei a fazer isso. Recusei porque o programa político do MDM, mas acima de tudo, os pronunciamentos de pessoas a ele ligados, nunca me deram motivos para supor que estivéssimos realmente perante uma alternativa, apesar de todos os excelentes auspícios ao seu redor. Confesso também que outra razão para o meu cepticismo foi a forte inclinação religiosa do grupo, algo que para mim é sempre perigoso, sobretudo quando misturado com política. As cisões que entretanto ocorreram, as acusações de corrupção na Beira, e outros problemas normais que toda a formação política tarde ou cedo tem não me surpreenderam. Mas isso não foi por eu não gostar do MDM. Foi por saber que essas coisas são normalíssimas na política.
Fui sempre reticente em relação ao MDM por três razões principais que se parecem confirmar neste período pós-eleitoral. Primeiro, o MDM é, pelo que me é dado a ver à distância, na essência um movimento religioso. Não é um movimento político. Mesmo as suas condições de emergência são consistentes com dinâmicas religiosas sobejamente estudadas pelas disciplinas científicas pertinentes. O esquema é sempre o mesmo: um culto que se destaca duma igreja, isto é um grupinho de devotos que interpreta a escritura de forma idiossincrática e cada vez mais se distancia da igreja; desse culto nasce uma seita que se separa da igreja e constitui ela própria uma igreja que, por sua vez, também produz cultos que mais tarde ou cedo vão também produzir as suas seitas. Esta é a trajectória do MDM na sua relação com a Renamo. Ela é exacerbada pelo facto de o partido abordar o país de forma religiosa. Os seus membros são os eleitos que vão redimir o país. A Frelimo não é um adversário político, mas sim o mal que deve ser afastado para que o país se reabilite. É por esta razão que o discurso da fraude cai que nem uma luva. Se o MDM não ganha não pode ser por incapacidade própria. Tem que ser porque os maldosos são infinitamente maldosos ao ponto de serem capazes de urdir todo o tipo de esquemas para se manterem no poder. O que isto significa na prática é que o MDM não é capaz de fazer a introspecção que é necessária para desenhar uma estratégia política que lhe permita ocupar um espaço maior que lhe está reservado no nosso campo político.
A segunda razão tem a ver com um erro que o MDM cometeu logo desde o início. A sua oportunidade no cenário político moçambicano é política. Para o MDM ser tem que ser político. Mas o seu discurso desde o início foi um discurso técnico que sempre colocou a ênfase na trivialização da política. O país precisa de técnicos, não de políticos, e nós (o MDM) somos esses técnicos. Este discurso pareceu funcionar nos primeiros anos na Beira (e agora em Quelimane) por duas simples razões. Primeiro, qualquer indivíduo que não esteja ligado a uma máquina tão pesada como a da Frelimo tem mais espaço para se concentrar em questões técnicas. O estatuto de partido dominante acarreta consigo o peso de toda uma série de compromissos que devem ser respeitados. Portanto, não há nenhuma história de maior competência técnica do MDM, algo que, aliás, cada vez mais se torna evidente com todos os problemas que a Beira e Quelimane têm, problemas de resto estruturais e que pouco têm a ver com o facto de um partido querer o desenvolvimento e outro não querer. A segunda razão está também ligada ao tamanho do partido. Os que representam a Frelimo ao nível dos municípios, com todo o respeito, não são necessariamente os melhores quadros desse partido. Os que representam o MDM ao nível dos municípios são os seus melhores quadros. É natural que haja um certo desnível que depois leva os menos incautos a pensarem que pelo facto de a cúpula do MDM parecer eficiente e séria, todo o MDM é. Não necessariamente. A ênfase na competência técnica num contexto em que os problemas que o país tem não resultam necessariamente da falta de competência técnica tornaram o MDM desnecessariamente vulnerável, privando-o do único trunfo que criou para si em momentos em que os problemas se tornaram renitentes. A única saída para isto é a demagogia, que é o verdadeiro discurso do MDM nos últimos anos e que ficou patente no seu manifesto com aquela afirmação patética dum “Moçambique para todos”. Faltou ali a visão perspicaz e estratégica de Ismael Mussá, cujo papel parece ser desempenhado por Eduardo Namburete na Renamo.
A terceira razão, e a mais importante, prende-se à incapacidade do MDM de articular um discurso verdadeiramente político virado para os milhares e milhares de moçambicanos que estão genuinamente interessados num país íntegro, onde se respeita a dignidade humana e os tribunais têm independência. É aqui onde reside a fraude política que o MDM virou. Repleto de gente com ressentimentos contra a Frelimo – onde precisava de programa político – com ressentimentos regionais e étnicos – onde precisava duma visão nacional – e com ressentimentos anti-intelectuais – onde precisava de acarinhar profissionais – o MDM virou uma caricatura fiel da ideia que os seus pseudo-ideólogos têm daquilo que chamam de “Frenamo”. Quando, como nos últimos dois anos, o país precisava de liderança ao nível da moral política consubstanciada no respeito pelo Estado de Direito e democrático o MDM ficou num silêncio ensurdecedor que mais parecia oportunista do que realmente estratégico. Ao invés de juntar a sua voz aos poucos que condenaram de forma vigorosa e veemente a violência contra o Estado protagonizada pela Renamo, o MDM preferiu calar-se. Quando abriu a boca foi para “condenar os belicistas” dos dois lados, uma atitude politicamente fraca que lhe custou apoios e pela qual pagou muito caro nas últimas eleições. Não liderou nenhum movimento cívico pela paz tendo pautado pela ausência nos momentos cruciais do “diálogo” anti-democrático que a Frelimo e a Renamo têm vindo a conduzir no Centro de Conferências Joaquim Chissano; não parece ter tido qualquer tipo de protagonismo no papel dos mediadores nacionais – outra fraude sobre a qual ainda me vou debruçar em momento oportuno – isto é, abdicou completamente do seu dever como força política a favor dum atrelamento incompreensível às posições da Renamo. O pior de tudo isto é que a Renamo que o MDM tenta a todo o custo não ofender despresa-o com paixão, pelo menos a julgar pelos pronunciamentos de alguns dos seus membros e a julgar pelas aparentemente infundadas acusações de corrupção na Beira propaladas por gente da Renamo em clara tentativa de denegrir a imagem da família Simango.
Não teria escrito este texto se não fossem as intervenções sempre irritantes (e arrogantes) de algumas pessoas que se consideram do MDM e que defendem posições que tornam este partido cada vez mais irrelevante no cenário político nacional. São pessoas que como todo o fanático religioso – e muitos deles são – são movidos pela fé e vêem o mundo irremediavelmente dividido entre as forças do bem (eles) e do mal (todos os outros que não são eles). Crêem na justiça natural do mundo (do Criador) que um dia infalivelmente vai punir os maus. Nunca tive o prazer, nem a honra de falar com o líder do MDM. No dia em que eu tiver essa oportunidade vou lhe dizer para se livrar dessa gente para que o seu partido assuma o papel que o nosso cenário político reservou para si. Se não quiser, claro, continuar a ser uma das maiores fraudes políticas do país.

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