terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Fraude anti-intelectual


Numa discussão cheia de azedume nos finais do ano passado fui vítima de ataques pessoais que foram para além do que é aceitável num debate de ideias. Um dos meus interlocutores, por sinal académico e docente, até trouxe detalhes da minha vida pessoal para a discussão; outros fizeram referências a minha “etnia” e outros ainda, sem nenhuma história conhecida de trabalho académico com algum mérito e autoridade, questionaram as minhas credenciais académicas. Tudo isto aconteceu sem que dentre os meus vários “amigos” do Facebook aparecesse um sequer (nem mesmo aqueles que me fazem consultas académicas pelo “inbox” ou os que dizem aprender do que escrevo, etc.) a interceder a meu favor, não para me defender (que isso faço melhor eu próprio) e dizer que sou um grande académico, mas sim pelo menos para dizer que o tom estava a ir longe demais. Nunca me senti tão só no Facebook como me senti dessa vez. Pessoas próximas de mim (que me querem bem) perguntaram-me se não era chegado o tempo de me calar de vez. Considerei essa hipótese, mas aquele bichinho interior que me dizia que eu estava a deixar o terreno livre para quem queria estragar o debate de ideias não me deixou ser consequente. Por enquanto.
Volvidas algumas semanas começo a perceber melhor o silêncio dos bons, para parafrasear Martin Luther King Jr. E o que me ajuda a perceber esse silêncio é a reflexão que tenho estado a tentar fazer em torno da coerência intelectual e política. Resumidamente: não me parece coerente dizer que sou pelo estado de direito ao mesmo tempo que aceito que o abuso do poder sirva de motivo para reagir de forma violenta (no discurso e nos actos) contra um estado que teoricamente consagra um tipo de legalidade que salvaguarda os direitos liberais. Não é coerente nem do ponto de vista intelectual, nem político. E não me vou fartar de dizer isto até que surjam melhores argumentos. Não me parece coerente defender o direito que um partido tem de responder de forma violenta ao abuso do poder, mas condenar adeptos de futebol que invadem o campo de jogos por não estarem de acordo com a arbitragem; não me parece coerente achar ilegítimo um governo que abusa do poder, mas ao mesmo tempo bater palmas a esse governo quando, usando do seu poder administrativo (arbitrariamente), sonega a um grupo social o direito de se constituir em associação; a incoerência neste último exemplo está na incapacidade de ver que este grupo teria todas as razões também para “lutar” (portanto usar a violência) contra esse governo.
As discussões que tenho mantido com várias pessoas, próximas e distantes, amigas e “amigas”, têm trazido à superfície – pelo menos para mim – alguns elementos da nossa cultura de discussão que me parecem explicar o meu desconforto. Já sabia que o debate estava muito polarizado na nossa esfera política, tão polarizado que nunca deixa espaço para que as pessoas se debrucem sobre os méritos das questões. Foi por ter constatado isso que achei prudente tornar as minhas simpatias políticas claras. Isso, contudo, em nenhum momento, pelo menos tanto quanto tenho consciência, me impediu de olhar só e apenas para os méritos das questões. Não há em nenhum dos meus textos qualquer opinião que não seja, num primeiro momento, enformada pelos méritos das questões e, num segundo, por um compromisso político que tenho com a democracia liberal. É, de resto, isto que me permite identificar a má “leitura” do que escrevo.
Esse compromisso é tão forte que transcende as minhas simpatias políticas. Só defendo uma posição se eu achar que ela é consistente com esse compromisso. E só aceito rever um argumento se achar ter sido confrontado com argumentos que revelam uma contradição entre a minha opinião e o meu compromisso político (para além, é claro, de inconsistências lógicas). Nem mesmo o prazer normal de criticar adversários políticos ou defender os camaradas que a afiliação política confere ao militante (que até nem sou) me levou, algum dia, a emitir crítica, ou defender posicionamentos que não estivessem em consonância com esse compromisso político. Mesmo a minha recente crítica ao MDM (cuja interpelação revelou graves problemas de leitura entre algumas pessoas) foi movida por esse compromisso político. A minha lamentação foi genuína e a minha decepção perante a incapacidade desse partido de aproveitar momentos auspiciosos para fortalecer a democracia liberal foi (e é) honesta e sem segundas intenções. E se o tom foi áspero isso deveu-se ao facto de eu ter escrito o texto em reacção a uma atitude extremamente arrogante e contraproducente de certas pessoas que se dizem simpatizantes desse partido, algo que escrevi claramente nesse texto.
Eu acho que há uma espécie de fraude nisto tudo. É uma fraude anti-intelectual. Consiste na crença que algumas pessoas ganham de que concordância (ou discordância) política constitui um critério válido para avaliar a competência intelectual da pessoa com quem estão a discutir. Se eu defendo a Frelimo e estou a discutir com alguém que defende o MDM o nosso desacordo só pode ser um indício claro de que essa pessoa não tem nada na cabeça, acham alguns. Pode ter estudado sociologia, física, psicologia ou seja o que for, mas de certeza não entendeu nenhuma dessas coisas, pois se tivesse essa capacidade de as entender concordaria comigo na questão política que estamos a discutir. Esta crença tem vários desdobramentos no debate público, todos eles maus porque impedem as pessoas que estão sob o seu efeito de usarem o debate para se cultivarem. Porque é para isso que serve o debate. Para cada um de nós se cultivar, não cultivar a mediocridade.
O primeiro consiste no direito que algumas pessoas se arrogam de se atrelarem à primeira interpretação que fazem do argumento que os seus adversários na discussão apresentam. Quando são interpelados por essa pessoa chamando-lhes atenção para o seu equívoco o seu instinto normal não é de reverem a sua própria leitura, mas sim de insistirem com essa pessoa para se distanciar de algo que nunca afirmou (ou insinuou). Desde que estou no Facebook perco mais tempo a retificar a interpretação que os outros fazem do que digo do que propriamente a discutir uma questão. Num primeiro momento isto é um problema também de clareza da minha parte; só que quando alguém já entra a “matar” na discussão perco imediatamente a vontade de verificar se poderia ter dito as coisas de forma mais clara. Só para deixar ficar registado aqui: releio, no mínimo, cinco vezes todo o texto que tiro no Facebook (e muitas vezes introduzo “talvez”, “parece”, “tanto quanto sei”, etc. para limitar o alcance de algumas aifrmações) e mesmo durante a discussão desse “post” volto repetidamente ao texto para me certificar que escrevi realmente aquilo que estou a defender na discussão. Foi assim que aprendi a argumentar, mas é também um hábito que se ganha quando profissionalmente se tem sempre que avaliar o que as pessoas querem dizer (por escrito). Tenho imensas dificuldades em criticar um texto mal escrito, razão pela qual participo em poucas discussões fora dum círculo bem restricto aqui no Facebook. Há, infelizmente, muita mediocridade que passa despercebida porque uma boa parte do que é dito é avaliado politicamente.
O segundo desdobramento consiste em acreditar apenas naquilo que queremos ouvir. Há muito disso por aqui. Se uma notícia qualquer dá conta de algum pronunciamento ou posicionamento que esteja de acordo com aquilo que defendemos a nossa reacção (a de muitos) é de imediatamente lhe dar crédito. São poucos os que se dão ao trabalho de verificar se a reportagem foi bem feita, se o que alguém é citado como tendo dito está bem contextualizado, ou não. Basta ler (ou ouvir) que alguém disse algo com a qual a gente concorda para essa notícia ganhar o estatuto de verdade absoluta. Pessoalmente, tenho imensas reticências em relação aos meios de comunicação de massas, sobretudo os nossos. Tantas que só comento o que vejo escrito por aí depois de ter analisado muito bem o texto ou então tornando claro que me refiro ao que vi escrito e não pude verificar. Faz parte da minha formação metodológica que me não permite tomar liberdades com o que as pessoas dizem sob pena de invalidação da minha análise. Já acompanhei discussões “quentes” de notícias mal contextualizadas por aqui, a mais recente das quais foi a que me valeu os insultos referidos mais acima a propósito de declarações atribuídas a Chissano e que foram literalmente arrancadas do seu contexto original.
O terceiro desdobramento é quase esquizofrénico. Há gente que gosta de prefaciar as suas intervenções com frases como “esses intelectuais assim e assado…) quando aparece um intelectual (ou especialista de alguma área) a dizer algo com a qual concordam. Essas pessoas usam as suas preferências políticas como critério de validação do que alguém disse. Se Gilles Cistac diz que a constituição tem que ser lida assim enquanto Télio Chamuço diz que não, tem que ser doutra maneira, quem concorda com o posicionamento político que a opinião de Cistac favorece vai chamar Chamuço de burro e quem concorda com o posicionamento político favorecido pela opinião de Chamuço vai chamar Cistac também de burro. E o verdadeiro burro é quem, sem conhecimento de causa, se arroga o direito de avaliar a capacidade intelectual das pessoas na base dos seus próprios preconceitos políticos. É deprimente! É aqui onde a fraude anti-intelectual ganha contornos alarmantes porque quem quer mesmo discutir assuntos com profundidade tem que perder tempo com discussões inúteis com fanáticos. Quem quiser ver exemplos do que estou a expor aqui pode consultar os comentários no brilhante texto que compartilhei do Télio Chamuço.
Finalmente, o quarto desdobramento consiste em associar a posição que uma pessoa defende com a posição e acção daqueles que nós achamos que estão a ser defendidos por essa posição. Por exemplo, se eu insisto na ideia de que para o bem do estado de direito que devíamos estar a construir seria aconselhável falar de “irregularidades” e não “fraude” nas últimas eleições e considerar ilegal, abjeta e anti-democrática a forma como a Renamo faz as suas reivindicações, se o governo negociar com ela isso é visto como prova de que o meu argumento estava errado. Não são pessoas sem formação que fazem este tipo de ilações. São pessoas bem formadas e inteligentes. Uma coisa não tem nada a ver com outra. Já quando foi da assinatura do acordo para a cessação das chamadas “hostilidades militares e políticas” continuei a defender o meu posicionamento e cheguei mesmo a manifestar a esperança de que os deputados agissem em consciência e chumbassem o projecto de lei que lhes foi submetido. Eu não sou porta-voz de quem parece sair beneficiado das posições que defendo pelo que qualquer que seja a posição assumida por essas pessoas não me afecta de nenhuma maneira. E digo mais: avizinha-se mais um acordo anti-democrático que um parlamento e um governo não aceites por um partido político com uma relação difícil com a legalidade estão a ser convidados a firmar numa total confusão legislativa. Espero, em vão, claro, que os deputados chumbem esse acordo por não achar que ele possa servir (tal como o outro, como se vê agora, também não serviu) o interesse democrático e de preservação do estado de direito. Não me vejo em nenhuma contradição comigo próprio e isso, para mim, é o que mais conta.
Mas começo a perceber, como dizia mais acima. É fraude anti-intelectual que nunca fez bem a nenhum país. Pior ainda quando é protagonizada por pessoas que deviam saber melhor…
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  • Mablinga Shikhani Bem-vindo à soleira do desapontamento caro Elisio Macamo.
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  • Edgar Barroso Heheheheheh... interessante texto. Deixe-me relê-lo outras vezes.
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  • Rildo Rafael Terei que ler e reler mais de duas vezes, mas a primeira leitura indica que temos um excelente texto para debate...
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  • Abilio Lazaro Mandlate Tenho acompanhado os textos publicados em sua página e esta é a primeira vez que comento. Alias, não comento justamente porque acho que em muitos casos careço de informação para endossar ou contrapor os argumentos apresentados. Mas, vamos ao que interessa. Sou de opinião que um dos elementos denotadores da baixa qualidade do debate na esfera pública é o facto de se investir muito tempo tentando delimitar as regras para esse debate. Infelizmente, até agora ainda estamos preocupados em dizer como deve ou não ser um debate sem no entanto debater as questões colocadas. A isso se acrescem as "trincheiras de ideias", as "verdades convenientes" e a "ridicularização do outro" por pensar diferente. Já abandonei muitos fóruns no FB devido a intolerância à ideias diferentes.
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  • Edgar Barroso "(...) o facto de se investir muito tempo tentando delimitar as regras para esse debate. Infelizmente, até agora ainda estamos preocupados em dizer como deve ou não ser um debate sem no entanto debater as questões colocadas (...)"

    Nice point.
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  • Arsenio Jose Farranguane " (...) Porque é para isso que serve o debate. Para cada um de nós se cultivar, não cultivar a mediocridade". E. Macamo. Concordo plenamente com o segundo e terceiro desdobramentos. Recomenda-se leitura. Excelente texto. A minha questão é : Existe algum '"antídoto" que possa amenizar esses posicionamentos?
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  • André Mahanzule Ilustre Dr Elisio sem pretender bajula-lo os seus escritos são o meu ópio, dai q lhe peço não se deixe arrasar pela mediocridade dos q tentam desesperadamente silencia-lo aqui no facebook pq coitados eles nem são capazes de perceber o quanto precisam da sua sabedoria. Mais do q isso por favor nunca pense em nos abandonar q nós outros sem argumentos seguimo-lo silenciosamente com muito zelo e dedicação. Bem haja o senhor.
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  • Joao Carvalho ‘’Desde que estou no Facebook perco mais tempo a retificar a interpretação que os outros fazem do que digo do que propriamente a discutir uma questão.’’
    Bem é chato se as pessoas não leem as interpretações já feitas, mas prontos, quando se escreve um texto seja comprido ou curto pode sempre haver lugar a várias interpretações, e isso lembra-me a transposição das Directivas pelos Estados Membros na UE que por vezes da lugar a várias interpretações diferentes, e se recorre a necessidade do reenvio prejudicial, o TJ também podia alegar que perde tempo a interpretar os textos, mas é assim mesmo infelizmente.
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  • Joao Carvalho ''Já quando foi da assinatura do acordo para a cessação das chamadas “hostilidades militares e políticas” continuei a defender o meu posicionamento e cheguei mesmo a manifestar a esperança de que os deputados agissem em consciência e chumbassem o projecto de lei que lhes foi submetido.'' 
    As posições mais certas, nem sempre são as mais adoptadas, o que nos é certo e coerente pode não subsumir a realidade, e em tempos de ‘’crise intelectual desmedida’’, os anseios especulam-se, propagam-se e chegam ao cúmulo, e só resta depois adaptar ensaios… ‘’experimentar modelos’’ para acautelar desavenças desnecessárias… É um insulto a democracia? uma vez um procurador disse que a Lei era como um filho, que saia de casa sem Porto certo, e se a vida lhe corre-se bem, os pais o abraçavam e cantavam glorias, se fosse o contrário, era a ovelha negra da família...
  • João Barros Professor Elisio Macamo, deixe espaço para outros! Você expõe, comenta e debate - tira o sumo todo, nada resta! Excelente aula!
  • Joao Carvalho ‘’pelo que qualquer que seja a posição assumida por essas pessoas não me afeta de nenhuma maneira.’’
    É diferente uma posição de uma decisão, e as vezes tomam-se uma decisão mesmo sem estar na mesma posição de outrem… E é democrático que as pessoas tenham as suas convicções, e as suas posições… Tomar decisões, pode sempre afectar-nos; mas as posições, cada um as tem como lhes convêm…
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