Presidente da AR não tem competência para convocar sessões extraordinárias
Uma nota publicada, a 05 de Fevereiro corrente, na página oficial da Assembleia da República (AR), na Internet, cita os comandos legais com base nos quais a Presidente da Assembleia da República, Verónica Nataniel Macamo Dlhovo, concovou a primeira sessão extraordinária daquele que é o mais alto órgão legislativo do país. Eis o conteúdo da referida nota:
“A Presidente da Assembleia da Republica, Verónica Nataniel Macamo Dlhovo, no uso das competências que lhe são atribuídas na alínea a) do artigo 191 da Constituição, conjugado com a alínea a) do número 1 do artigo 36 do Regimento da Assembleia da Republica, convocou os Deputados da VIII legislatura para a I Sessão Extraordinária do Parlamento para o dia 12 de Fevereiro corrente, em Maputo.
A sessão, que terá inicio às 9h00, vai comportar a seguinte Agenda de Trabalhos:
• Eleição dos Vice-Presidentes da Assembleia da República;
• Eleição dos Membros da Comissão Permanente da Assembleia da República (CPAR);
• Eleição dos Membros das Comissões de Trabalho da Assembleia da República, dos membros do Conselho de Administração da Assembleia da República;
• Eleição dos Membros dos Grupos Nacionais; e
• Apreciação e aprovação do Projecto de Lei de Alteração Pontual do Regimento da Assembleia da República”.
A nota a que fizemos menção, que, em bom rigor, é a convocatória da sobredita sessão extraordinária, que inicia esta quinta-feira, apresenta algumas situações problemáticas, todas elas de nítida relevância material, a ponto de colocar sérias dúvidas sobre se a retro citada sessão extraordinária foi ou não devidamente convocada. Mas vamos por partes.
Da base legal citada na convocatória
A nota publicada na página da AR cita um artigo da Constituição da República de Moçambique (CRM) – alínea a) do artigo 191 – e um artigo do Regimento da AR, aprovado pela Lei número 17/2013, de 18 de Julho – alínea a) do artigo 36 –, em conjugação com o atrás referido artigo da lei fundamental.
Para efeitos de melhor e fácil captação do assunto pelo leitor, transcrevemos, abaixo, na íntegra, tanto o artigo da CRM como o do Regimento da AR, que, supostamente, atribuem competências à Presidente da AR para convocar uma sessão extraordinária daquele órgão do Estado.
Artigo 191 da CRM:
“Artigo 191
(Competências do Presidente da Assembleia da República)
Compete ao Presidente da Assembleia da República:
a) Convocar e presidir as sessões da Assembleia da República e da Comissão Permanente;
b) Velar pelo cumprimento das deliberações da Assembleia da República;
c) Assinar as leis da Assembleia da República e submetê-las à promulgação;
d) Assinar e mandar publicar as resoluções e moções da Assembleia da República;
e) Representar a Assembleia da República no plano interno e internacional;
f) Promover o relacionamento institucional entre a Assembleia da República e as Assembleias Provinciais, em conformidade com as normas regimentais;
g) Exercer as demais competências consignadas na Constituição e no Regimento”.
Artigo 36 do Regimento da AR:
“Artigo 36
(Sessões extraordinárias)
1. A Comissão Permanente da Assembleia da República convoca uma sessão extraordinária, a ter lugar no prazo máximo de cinco dias, quando for necessário sancionar a suspensão das garantias constitucionais, o Estado de Sítio ou o Estado de Emergência.
2. O Chefe do Estado, obrigatoriamente, convova uma sessão extraordinária, para efeitos do disposto no artigo 49 do Regimento”.
Como se pode depreender, os dois comandos legais, ainda que conjugados, referidos na convocatória da AR, não conferem, à Presidente do órgão, poderes para convovar sessões extraordinárias. Antes de avançarmos com este pequeno exercício analítico-interpretativo, há que denunciar a existência de um outro erro na convocatória publicada na página na Internet da AR, nomeadamente o facto de a mesma se referir a uma suposta alínea do artigo 36 do Regimento da AR, quando este não possui alínea alguma, mas sim e apenas dois números.
Sobre convocatória de sessões extraordinárias
Quem terá, então, poderes para convovar uma sessão extraordinária da AR, nos termos da CRM e do próprio Regimento da AR?
Nos termos da CRM, apenas o Presidente da República (PR), a Comissão Permanente da Assembleia da República (CPAR) e pelo menos um terço dos deputados da AR é que tem competências para o efeito. Tal se acha, de resto, vertido no artigo 186 da CRM, que a seguir o transcrevemos na íntegra (ou ipsis verbis, para o gáudio dos fanáticos do latim, ainda que, com ele, poucas vezes se comunique eficazmente, na perspectiva mediática):
“Artigo 186
(Períodos de Funcionamento)
A Assembleia da República reúne-se ordinariamente duas vezes por ano e extraordinariamente sempre que a sua convocação for requerida pelo Presidente da República, pela Comissão Permanente ou por um terço, pelo menos, dos deputados”.
Neste momento, AR não possui, como se sabe, Comissão Permanente constituída. Aliás, essa é a razão por que um dos pontos da agenda dos trabalhos da sessão extraordinária “convocada” por Verónica Nataniel Macamo Dlhovo seja a “Eleição dos Membros da Comissão Permanente da Assembleia da República”.
Nos termos do Regimento da AR (artigo 36, atrás transcrito na íntegra), apenas a CPAR e o PR podem convocar sessões extraordinárias da AR. Além destes, naturalmente, tal pode ser feito por pelo menos um terço dos deputados da AR, em conformidade com o disposto no artigo 186 da CRM. Vale a pena sublinhar que a CRM é, em termos hierárquicos, a ‘lei suprema’, a ‘lei mãe’, não podendo, em nenhuma circunstância, ser contrariada por um dispositivo legal que esteja abaixo dela.
Sobre as sessões da AR como tal, a CRM faz menção a pelo menos dois tipos, nomeadamente as ordinárias e as extraordinárias (artigo 186). Já o Regimento da AR diz que a ‘magna casa’ pode reunir em quatro tipo de sessões, nomeadamente as duas já previstas no estatuto jurídico do nosso país (CRM) e em sessões solenes e especiais (artigo 22).
De entre as quatro modalidades de sessões previstas no Regimento da AR, à presidente do órgão é dada competência de convocar somente as ordinárias (artigo 35). As sessões extraordinárias são convocadas ou convocáveis nos termos descritos acima, enquanto que as especiais (artigo 40) e solenes (artigo 38) são convocadas pelo próprio plenário.
A Constituição num Estado de Direito Democrático
Primeiro, talvez valha a pena recuperarmos, ainda que de passagem, elementos doutrinários do Direito Constitucional relevantes para os efeitos da relação que a AR, enquanto órgão do poder de Estado, enquanto órgão legiferante (órgão produtor de leis em sentido restrito), deve ter com a Constituição e as leis.
Sendo Moçambique, pelo menos sob o ponto de vista formal, um Estado de Direito Democrático (artigo 3 da CRM), todos os cidadãos têm, enquanto que os detentores do poder devem, ter sempre presente que em linha com o sentido desenvolvido pelo constitucionalismo “...a Consituição é a ordem jurídica fundamental do Estado: a Constituição confere à ordenação do Estado e aos seus actos medida e forma” (Gomes Canotilho, 1981:39).
O princípio da constitucionalidade deve ser, pois, o mote e sustentáculo de actuação de entes como a AR, devendo, este [princípio da constitucionalidade], ser aplicado tendo em conta os elementos constitutivos do Estado de Direito Democrático, quais sejam a vinculação do legislador à Constituição, vinculação de todos os restantes actos do Estado à Constituição, princípio da reserva da Constituição, força normativa da Constituição e sistema de direitos fundamentais.
“O princípio fundamental do Estado de Direito Democrático não é o de que tudo o que a Constituição não proíbe é permitido (transferência livre ou encapuçada do princípio geral da liberdade individual para o Direito Constitucional), mas sim o de que os órgãos do Estado só têm competência para fazer aquilo que a Constituição lhes permite. A Constituição é, sem dúvidas, uma ‘constituição parcial’, no sentido de que não pode aspirar a uma normação completa da chamada ‘constituição material’, mas é uma ‘constituição total’ no que respeita à competência dos órgãos constitucionais” (Gomes Canotilho, 1981: 40-41).
Na verdade, muito antes das elaborações como as atrás registadas, de resto tributárias aos tratadistas alemães do Direito Constitucional, já tinham sido feitas reflexões, devidamente acolhidas pela comunidade científica do Direito, centrais em termos de ‘fixação’ da disciplina interpretativa das leis em termos gerais. Em dissertação de doutoramento apresentada em ciências jurídico-históricas na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 1963, Manuel Dominguês de Andrade defendeu: “A vontade do legislador, a vontade do Estado que só na lei fala e que ela se esforça por descobrir, não é a vontade do redactor da lei” (Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis; 1963; Coimbra: Arménio Amado; pág. 22).
Está mesmo convocada uma sessão extraordinária da AR?
Está, efectivamente, convocada a “primeira sessão extraordinária” da VIII (oitava) legislatura da AR, conforme se extrai da relevante “convocatória” feita pela presidente da AR, de resto transcrita na parte inicial deste texto. Entretanto, a mesma não se acha devida ou regularmente convocada, por tal ter sido feito por alguém a quem nem a lei e muito menos a CRM atribuem competências para o efeito.
Nestes termos, e em conformidade com a CRM e o Regimento da AR, mais o princípio da constitucionalidade, a sessão “convocada” para iniciar a 12 de Fevereiro corrente deveria, a bem do respeito pelo Estado de Direito Democrático, ser desconvocada. Aliás, “desconvocada”, pois, em bom rigor, ela não está regularmente convocada, por tal ter sido empreendido contrariando-se a CRM e a lei a isso aplicável.
PS: Ainda sobre a qualidade de deputado, que se adquire a partir do estabelecido no acórdão do Conselho Constitucional que valida as eleições, há que convocar um elemento ainda não referido, pelo menos publicamente: a segurança jurídica que o legislador constituinte (que é a AR quando reúne para aprovar a CRM ou normas constitucionais) quis conferir ao deputado, termos em que este, nos termos da CRM, só perde o mandato quando não toma o seu assento, e não quando não toma posse, um acto nitidamente formal. A renúncia, diferentemente da perda, é um acto voluntário, daí o legislador constituinte ter deixado ao legislador ordinário a fixação dos termos para o efeito. Se o legislador constituinte não tivesse assim agido, os partidos políticos, agindo a solo ou em conluio com outros entes, poderiam “cozinhar”, acelerar ou facilitar a perda de mandato, com recurso à ditadura do voto, com os préstimos da...manipulação do Direito!
ES
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