domingo, 8 de fevereiro de 2015

“A moral dos profissionais de saúde está muito baixa”

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Bastonário da Ordem dos Médicos, Eugénio Zacarias, diz que Medicina Legal é pouco considerada no país
A província de Tete iniciou o ano já de luto, com 75 mortos por intoxicação alcoólica. Até hoje, não se sabe as causa desses óbitos. O que falha na investigação, tendo em conta a sua experiência na Medicina Legal?
Em primeiro lugar, é imprescindível definir o que é “intoxicação” - a ingestão de qualquer substância que possa causar danos à saúde humana e, até, a morte. Então, neste caso, do ponto de vista médico-legal e segundo o Código Penal, a intoxicação adquire diferentes contextos conforme as circunstâncias em que ocorre. Passa a designar-se envenanamento se houver intenção de causar mal a pessoas, e intoxicação se ocorrer de forma acidental - por razão de conservação ou manipulação de alimentos. Com base nesses critérios e segundo a legislação, tratou-se de envenenamento e não de intoxicação, porque morreram 75 cidadãos e afectou mais de cem pessoas.
Mas se envenenamento envolve intenção, já foi provada a existência dessa intenção?
Não está porque não sabemos os resultados preliminares. Não foram divulgados e esse é umgrande problema - os resultados devem circular para que as pessoas fiquem a par dos acontecimentos. Portanto, a partir do momento em que houve a ingestão de um determinado produto (bebida tradicional) e se se provar, estamos perante um crime de envenenamento.
O que está a comprometer o esclarecimento do processo?
Para ser sincero, para estas situações em que há a morte violenta de um cidadão, estamos perante um crime público, e é necessário que as autoridades competentes (no caso, o Ministério Público)instaure um processo e designe uma autoridade para investigar, que devia ser um Instituto - ou pelo menos, um serviço - de Medicina Legal. Dos dados que temos, a investigação foi dirigida pelo Ministério da Saúde, aparentemente chefiada não por médicos legistas. Se tivesse sido comunicada, a Medicina Legal tem profissionais competentes em Moçambique, com muitos anos de experiência, que criariam uma equipa apropriada para investigar que poderia ajudar no levantamento da verdade.
Não tendo sido uma equipa forense a investigar, até que ponto isso pode influenciar a divulgação dos resultados?
Não digo que não tenham sido médicos legistas - foram designados dois colegas para tal, mas não eram os chefes da equipa. É preciso que saibamos que há peritos especializados para essa investigação em Moçambique. São os médicos legistas formados, que devem ter uma determinada experiência para perceberem esse processo de investigação.
E a que etapas deve obedecer esse processo de investigação?
São várias. Primeiro, para que se faça uma perícia médica legal, deve ser solicitada pelo Ministério Público, pela Polícia ou por parte das vítimas - um advogado ou representante legal.
E as amostras, como devem ser colhidas e que tipo são pertinentes para aferir a verdade?
Nos casos de envenenamento, há diferentes critérios para o diagnóstico. É fundamental fazer o inquérito sócio-antropológico às vítimas da tragédia e aos familiares que estiveram com elas na ingestão da substância tóxica. Com esse inquérito e os dados à disposição, efectuamos outros procedimentos, como a autópsia psicológica para saber se houve outros casos de envenenamento na localidade. Acredito que sim, e é imprescindível saber se alguém alguma vez usou essa substância e conhecia o seu efeito. Essa série de informações vai permitir colher, dos médicos da zona, os sintomas que viram nesses pacientes para saber se foi feito algum estudo toxicológico ou não. Ou procurar se à volta, nos países vizinhos, houve casos do género. A partir daí, deve-se proceder a autópsia anatopatológica das lesões no corpo causadas por essa substância. Como foi uma morte colectiva, devem-se fazer, de forma aleatória, as autópsias.  A posteriori, colhemos elementos na casa onde ocorreu o facto, não só do pote onde foi produzida a bebida, como também da fonte de água, a terra, enfim, um conjunto de elementos que devíamos ter em consideração. Portanto, há que pedir um exame específico dos diferentes elementos colhidos e, depois, examinar as vítimas para perceber os sintomas, que tipo de intoxicação provocou...
E há indícios?
Aparentemente, parece ter sido um caso de gastroenterite, não sei se houve outros sintomas. Eventualmente, essa equipa vê quais as linhas possíveis e imaginárias de diagonóstico e, depois, faz um exame toxicológico. Que, em Moçambique, nunca foi feito... Depois disso, pode-se fazer um critério biológico experimental: pegar na substância e injectá-la em animais para verificar se produz os mesmos efeitos, ou não, e sacrifica-se o animal para análise anatopatológica. É uma etapa complexa, mas depende, acima de tudo, da presença de pessoas treinadas para que, no local dos factos, com base nos elementos encontrados, se comecem a levantar diferentes hipóteses de diagnóstico.
Falou de limitação do diagonóstico por Moçambique não fazer exames toxicológicos. Mas temos técnicos com competência para avançar com investigações desta natureza?
É dfícil responder. Acredito que sim, há indivíduos formados em Química, em diferentes áreas, mas o laboratório de higiene, água e alimentos sempre recusou fazer esses exames. Não posso responder se têm capacidade, porque têm de manipular diferentes tipos de amostras. Uma coisa é fazer exames de amostras alimentares e outra é exames quimitoxicológicos de amostras orgânicas - colhidas nos órgãos na autópsia para determinar as causas. Claro que, se não fazem um histórico, terão muitas limitações de diagonóstico.
Qual é a capacidade da nossa Medicina Legal? O que somos, e não somos, capazes de fazer?
Nós poderíamos ser capazes de fazer tudo o que todo o serviço de Medicina Legal do mundo faz. Mas para fazer todo o tipo de exames é necessário que tenhamos um laboratório toxicológico legal e nós nem fazemos um simples exame de alcoolemia. As nossas limitações são básicas. Temos que ter um laboratório que auxilie a fazer essa pesquisa quimiotoxicológica - temos necessidade de um laboratório forense. Temos médicos legistas devidamente formados para lidar com qualquer tipo de perícia.
Qual tem sido o papel da Ordem para influenciar a criação dessas unidades?
Fazer pressão junto das autoridades. Mas o grande problema é histórico: a Medicina Legal nunca foi prioridade, quer do Ministério da Saúde, quer da própria Justiça (quando a Medicina Legal é imprescindível por auxiliar o Direito no levantamento dos factos...). Por exemplo, cheguei a ser o único médico legista; hoje, há cerca de 15 em diferentes províncias, como Sofala, Nampula, Zambézia, Tete, Gaza e na cidade de Maputo. A capacidade humana expandiu, mas a secundarização é de tal ordem que, por exemplo, sendo imprescindível que o estudante de Direito saiba o que é Medicina Legal, na Faculdade de Medicina da UEM, o docente de Medicina Legal não é formado na área!... A partir do momento em que um licenciado em Direito ignora a importância da Medicina Legal, nunca pedirá uma perícia médica legal. Portanto, o problema vai desde o advogado até ao magistrado... enfim, todas as áreas de investigação criminal e policial.
Na investigação, até que ponto os exames das autópsias podem ser mais determinantes na análise das substâncias - no caso de Chitima, da bebida?
A perícia médica legal é um conjunto de procedimentos técnicos, e um médico dá o seu parecer. É importante que o médico que realize a autópsia verifique se a ingestão da substância foi a causa óbvia de morte - porque uma pessoa pode ingerir uma substância e morrer por enfarte de miocárdio. É importante verificar a consequência da ingestão da substância tóxica, porque ela, por si só, pode não ter sido a causa da morte - pode haver outros factores por trás disso.
E que medidas podem ser accionadas para evitar que Chitima volte a acontecer? Que lições tiramos da tragédia?
Todo a gente sabe que as bebidas tradicionais são consumidas em Moçambique, em qualquer parte do Mundo, e geralmente não são prejudiciais. Mas o mais importante é que os Centros de Higiene, Água e Alimento de cada província façam o seu papel de prevenção junto das comunidades. É imprescindível. Temos de estudar como é que as bebidas tradicionais devem ser transformadas para o consumo.
A qualidade da Saúde em Moçambique ainda deixa a desejar - os doentes levam horas para serem atendidos e, por vezes, assistem ao descanso dos profissionais da Saúde na hora de trabalho. Que solução para isso?
Esse é um grande desafio que enfrentamos no nosso sistema de Saúde - a motivação dos funcionários de Saúde está muito baixa. É necessário voltar a levantar-lhes a moral, um problema tão complexo que exige um esforço tremendo, em primeiro lugar dos funcionários de Saúde, em que devem sentir que são devidamente valorizados até à questão da biosegurança no local de trabalho. Claro que isto não pode ser razão para o mau atendimento à população, mas eu começaria por aí. É necessário que o que aconteceu no passado seja exemplar: vimos que os funcionários de Saúde reivendicaram correctamente os seu direitos e, após essa reveindicação, foram severamente punidos. Isso quebrou a relação de confiançaentre os vários profissionais de Saúde, as direcções e as chefias dos serviços e departamentos das unidades sanitárias.
De que punição está a falar?
Várias, desde multas, expulsões, transferências, reformas compulsivas, repreensão oral e escrita. Obviamente que este tipo de situações levou a que o profissional de Saúde dentro da unidade sanitária não sentisse confiança - quer dizer, tinha receio de exprimir a insatisfação pelas condições de trabalho. O micro ambiente na unidade sanitária deve ser melhorado, e isso não é de um dia para o outro.
Ao nível do ensino, fala-se da existência de “professores turbos”. Na Saúde, há também médicos que trabalham em várias unidades. Que tipo de limitação existe, em termos de número de horas, para salvaguardar a qualidade do atendimento?
O grande dilema é a aprovação do estatuto do médico na Função Pública, que não está a ser aplicado plenamente até hoje.
Mas quantas horas um médico deve trabalhar por dia?
O número de horas que qualquer Funcionário Público trabalha - oito horas. Mas um médico não tem hora de trabalho: entra e pode sair às tantas...
Qual é a visão da Ordem em relação a esta movimentação dos médicos e com poucas horas de trabalho, tendo em conta a qualidade do trabalho?
A prestação da qualidade de Saúde é complexa, e tem que ver com a aprovação do Estatuto do médico na Função Pública e a sua devida aplicação. O médico dedica as horas que tem no seu regime contratual ao hospital público e, depois, como as necessidades financeiras do médico não são satisfeitas, ele procura outras formas de poder alimentar a sua família, ter melhor qualidade de vida, e recorre ao sistema privado de Saúde.
E que tem feito a Ordem para melhorar as condições de vida dos médicos?
O estatuto foi uma luta muito séria para ser aprovado - vamos tentar melhorá-lo. Temos essa abertura do Ministério de Saúde, que se prontificou a trabalhar connosco.
Isso quer dizer que, depois da greve, os reajustes saláriais não satisfazem. Já iniciaram negociações?
Não satisfazem claramente, aas a Ordem não é o sindicato dos médicos...
A Saúde consome parte significativa do Orçamento de Estado, e é dos sectores mais ineficientes. A assistência sanitária custa 15 dólares por cidadão, que a OMS fixa em 50 dólares. Moçambique está muito àquem desta meta. O que a Ordem está a fazer para que mais fluxos sejam alocados à Saúde?
O Estado deveria realocar melhor as suas despesas e ter a Saúde e a Educação como prioridade. Há outras áreas, que não são prioritárias, que drenam muito dinheiro.
Diz que há instituições do Ensino Superior cuja qualidade deixa muito a desejar e até ameaça não certificar profissionais vindos dessas instituições. O que está a ser feito?
A Ordem não é indiferente à proliferação da formação médica pré-graduada. Estamos a criar critérios para permitir dizer que determinada escola de formação médica tem, ou não, condições para ensinar Medicina. Pedimos ao Ministério da Educação e do Ensino Superior dados sobre os currículos e corpo docente e, até hoje, não os recebemos. Então estamos a sensiblizar essas instituições para que criem balizas para que o critério seja justo para todas as escolas de Medicina, porque é inconcebível leccionar Medicina no curso nocturno, no hospital rural... Isso deve ser combatido. É importante que a Ordem coloque ordem nessas questões de acreditação, certificação, de critérios. É imprescindível que os Ministérios que licenciam essas instituições façam o seu trabalho.

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