Para Egídio Vaz, pode dividir-se a guerra dos 16 anos em Moçambique em dois períodos: o de ‘guerra de desestabilização’, com apoio externo, e o de ‘guerra civil’, em que os rebeldes tinham já uma agenda política própria.
O primeiro período do conflito estendeu-se, segundo o historiador moçambicano, de 1977 até à assinatura do Acordo de Nkomati na África do Sul, em 1984. "Este período foi marcado pela falta de um discurso coerente, de uma causa, e caracterizou-se pela matança, pela destruição e pelo enfraquecimento da infraestrutura nacional", explica Vaz.
O segundo começou já nos finais da década de 1980 com a queda do Muro de Berlim e a desagregação da União Soviética. "Aqui, a RENAMO apropriou-se de novos valores: a democracia e a liberdade." A partir deste momento, "estávamos perante uma guerra civil, dirigida pelos moçambicanos com uma agenda política". Foi esta "nova postura da RENAMO que impulsionou o governo da FRELIMO a adotar a democracia como sistema político no país".
Marta Barroso falou com Egídio Vaz sobre a guerra civil moçambicana e os 20 anos que se seguiram no país.
DW África: Como é que a paz foi alcançada ao fim de 16 anos de guerra e de tentativas falhadas como o Acordo de Nkomati, assinado em 1984?
Egídio Vaz (EV): A paz foi alcançada devido tanto a pressões internas como externas. A paz foi possível graças também ao entendimento dos moçambicanos, não só à coordenação inicial da Igreja Católica, mas de toda uma comunidade religiosa e depois de todos os moçambicanos perceberem que era o momento para sentar e resolver os problemas. De resto até porque as diferenças ideológicas avançadas pela RENAMO ou pela FRELIMO já não existiam. E, portanto, todos estavam, em princípio, unânimes em aceitar a democracia multipartidária como melhor sistema de governação.
DW África: Há quem diga que a guerra dos 16 anos só foi possível, porque houve o apoio de outros países. Concorda?
EV: Concordo em parte, principalmente no que tange ao surgimento deste grupo armado [RENAMO] fortemente patrocinado, primeiro por Ken Flower, dos serviços de inteligência rodesianos, mais tarde pela África do Sul do apartheid cujo objetivo essencial era enfraquecer e pôr em causa a independência. Mas depois esta mesma guerra evoluiu para uma guerra civil na medida em que novos valores foram incorporados na mesma guerra como a democracia e a liberdade.
De uma ou de outra forma, a guerra teve também causas internas que podem ser encontradas na forma como o governo da FRELIMO geriu o seu povo nos primeiros momentos da sua independência, nomeadamente com a matança indiscriminada de todos aqueles que a enfrentavam e punham em causa a linha ideológica da FRELIMO. Por um lado.
Mas por outro, pelo afunilamento das formas e da visão do desenvolvimento do país, o que não agradou a alguns setores, inclusive pela forma como desprezou a cultura. Há aspetos que foram muito bem explorados e otimizados pela RENAMO ao longo da sua guerra.
DW África: Tendo em vista as atrocidades cometidas pela RENAMO durante a guerra, como se explica a adesão ao grupo rebelde no centro do país, sobretudo, a região mais afetada durante o conflito?
EV: Isto tem a ver com as técnicas de como o povo consegue lidar com um poder, o poder das armas que se impunha sobre as comunidades e, à medida que o tempo passava, a contraparte era vista como a assassina, na medida em que não havia espaço para troca de ideias. Imperava mais a ditadura das armas que, aos poucos, começou a moldar as consciências.
DW África: A FRELIMO tentou acabar com aspetos culturais e tradicionais de Mocambique desde os curandeiros às autoridades locais. Como se deu isso?
EV: O espírito revolucionário que os camaradas traziam da Tanganyika [Tanzania], aliado à nova ideologia que se preparavam para abraçar, o socialismo científico, levou a que eles entendessem que as autoridades tradicionais constituíam a força de repressão do povo moçambicano durante o tempo colonial, pelo que não podiam figurar na nova organização politico-administrativa. Da mesma forma que, tendo-se declarado o Estado moçambicano laico, eles entendiam que todas as igrejas deviam ser banidas. A medicina tradicional foi espezinhada, acusada de ser obscurantista.
Estas formas de saberes populares e seculares podem ter estado na origem do apoio que a RENAMO teve em zonas como o centro e norte. A própria FRELIMO parece ter reconhecido posteriormente o grande papel que essas mesmas autoridades representam, resgatando-as através da lei como entidades, não representantes do Estado, mas entidades paraestatais.
Porque já do ponto de vista eleitoral, a própria FRELIMO via um grande eleitorado a desiludir-se. O reconhecimento da cultura e das autoridades locais constitui um valor, um valor inalienável: africanos sempre terão as suas formas de organização e, mesmo que sejam híbridas, reconhecê-las é o primeiro passo para a coesão social.
DW África: Durante a guerra dos 16 anos, ambos os lados do conflito – RENAMO e FRELIMO – cometeram violações dos direitos humanos. Como é que os moçambicanos recuperaram dos traumas da guerra?
EV: Ao contrário de outros países como o Ruanda ou a África do Sul, em que os processos de reconciliação prevêem o estabelecimento de comissões de verdade e reconciliação, em Moçambique as pessoas simplesmente quiseram esquecer.
Egídio Vaz diz que os recursos naturais de Moçambique estão concentrados em muito poucas mãos, o que pode levar a uma democracia marcada por profunda pobreza
Todavia, estes assuntos podem ser desenterrados se a próxima vaga de consolidação da nossa paz não observar a consolidação da unidade nacional, mas também a consolidação deste país do ponto de vista económico e na redistribuição da riqueza e a abertura a liberdades no acesso a informação, elementos muito importantes para que as pessoas possam expressar as suas visões, para que as pessoas possam protestar livremente sem medo de um grupo ou de um interesse económico específicos que ponham termo à sua vida.
E acima de tudo, o maior problema é que a história de Moçambique precisa de ser reescrita sem ressentimentos, colocando no lugar apropriado os verdadeiros pais deste país. O que está a acontecer neste momento é a privatização da história de Moçambique, em que alguns moçambicanos se vêem órfãos da sua própria história e isso introduz o que se chama uma categoria de moçambicano de primeira, moçambicano de segunda, moçambicano de terceira, não pode.
DW África: Apesar de haver diferentes grupos étnicos em Moçambique, este é um país coeso. Qual é o segredo desta convivência pacífica?
EV: Apesar de tudo, o legado de Samora Machel é um grande legado. Foi ele o obreiro, de facto, o pai da unidade nacional. Eu tenho muitos problemas em aceitar Eduardo Mondlane como arquiteto da unidade nacional. Aquele que introduziu Moçambique aos moçambicanos foi Samora Machel. Ele tornou-nos daltónicos em relação à cor, em relação à nossa proveniência regional.
DW África: Acha que há erros do passado que se podem evitar para o futuro?
O atual ministro da cooperação italiano, Andrea Riccardi, mediou as conversações entre a FRELIMO e a RENAMO em Roma
EV: Sim, principalmente neste momento, 20 anos depois, o grande problema que Moçambique enfrenta, o grande perigo, é a redistribuição da riqueza e a partilha de poder.
Há grandes assimetrias regionais que até certo ponto se julga serem propositadas. Devem ser muito rapidamente corrigidas sob o risco de se pôr em causa a unidade nacional que tanto custou aos moçambicanos.
DW África: Nos anos 1980, o programa chefiado pelo atual Presidente de Moçambique, Armando Guebuza, na altura Ministro do Interior, denominado Operação Produção, visava instalar indivíduos das áreas urbanas que estivessem desempregados, indivíduos considerados pelo governo da FRELIMO como inúteis e indesejados, em regiões rurais para a produção de alimentos. Esta foi uma das medidas impopulares adotadas pela FRELIMO que deixaram feridas na população. Acha que hoje essas feridas já cicatrizaram?
EV: Essas feridas não estão cicatrizadas. Porque as pessoas prejudicadas por essas medidas ainda estão feridas e vão morrer com as mesmas feridas.
A vantagem que isto tem, a vantagem da Operação Produção, é que logo um mal maior parece ter substituído esta medida impopular, que é a guerra de desestabilização que depois se transformou em guerra civil e que durou 16 anos.
DW África: Que balanço faz destes 20 anos de paz?
Acordo de Roma de 1992: Joaquim Chissano pelo governo da FRELIMO (esq.) e Afonso Dhlakama pela RENAMO (dir.)
EV: Os 20 anos de paz resultam do consenso do povo moçambicano pela paz, pela democracia, pelo desenvolvimento. São 20 anos de construção destes consensos que correm sérios riscos se a dimensão económica desta mesma paz não se realizar, na medida em que começam claramente a existir círculos que se mostram insatisfeitos com a forma como a governação económica está sendo posta em marcha em Moçambique.
Há concentração de muitos recursos em determinadas mãos em detrimento da maioria que trabalha para estes mesmos recursos.
DW África: Como imagina Moçambique dentro de outros 20 anos?
EV: Do ponto de vista político, imagino Moçambique com um outro governo proveniente de um outro partido político. Agora, quanto à transição, não estou certo como vai ser: se vai ser pacífica, se vai ser violenta ou partindo da divisão da própria FRELIMO ou encabeçada por um outro movimento que não seja a FRELIMO, o MDM [Movimento Democrático de Moçambique] ou a RENAMO.
Do ponto de vista económico, dependendo das sementes que se lançam hoje, principalmente relacionadas à indústria extrativa e ao campo energético, poderemos viver a bênção, o milagre moçambicano, se os recursos que nós tivermos forem equitativamente partilhados ou provavelmente viveremos uma democracia vibrante, mas marcada por profunda pobreza.
Autora: Marta Barroso
Edição: Johannes Beck
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