Saturday, November 22, 2014

Entrevista de Sócrates ao Expresso

entrevista
JOSÉ SÓCRATES
FRONTAL JOSÉ SÓCRATES FALOU AO EXPRESSO SEM CONSTRANGIMENTOS E FOI FOTOGRAFADO NA TORRE DE CONTROLO DO PORTO DE LISBOA
O livro “A Confiança no Mundo”, sobre a tortura em democracia,
é a tese de mestrado de José Sócrates na escola de Sciences Po, Paris.
É lançado em Portugal, depois no Brasil e em Moçambique.
Pretexto para uma conversa franca com o ex-primeiro-ministro.
FOTOGRAFIAS DE TIAGO MIRANDA
E
MÁGOAS
“Recuperei. Ostento com orgulho as marcas da batalha.
A dureza encenada não é nenhuma dureza. Ou se tem
ou não se tem”

MODERAÇÃO
“Aos idiotas que andaram apaixonados por coisas que tiveram que negar faz-lhes muita impressão um tipo que sempre foi a merda de um moderado!
Sempre achei que o compromisso é a base da democracia”

HISTÓRICOS DO PS
“Aqueles gajos que
se achavam
a aristocracia pensavam que eu
tinha que ir lá pedir, pedir se podia,
pedir autorizações.
E eu pensei,
raios vos partam,
vou vencer-vos
a todos!
E foi o que fiz”
ANTÓNIO GUTERRES
“Fui um defensor leal, só não faço a patifaria de ter comportamentos oportunistas.
Não me colo quando  estão em alta e não abandono  quando  estão em baixa”

LIDERANÇA
“Eu sou o chefe democrático
que a direita
sempre quis ter”

TORTURA
“Uma das razões 
por que escrevi
este livro foi porque senti que os Estados Unidos enganaram
muitos dos seus aliados”
A ÉTICA POLÍTICA
“A coragem do político e da democracia está em impor a si próprio linhas vermelhas. Nunca as ultrapassarei, como político. É preciso ter a bravura de não cometer atos horríveis”

EVENTUAL CANDIDATURA 
À PRESIDÊNCIA
DA REPÚBLICA
“Tenho uma boa vida. Se voltei ao comentário político é porque me quis defender,
estava a ser atacado sem defesa. Não sinto nenhuma inclinação por voltar a depender do favor popular”

DINHEIRO
“Não recebo pensão. Não recebo nada do Estado português.
Por isso trabalho para uma empresa privada”
Existe uma razão para ter pedido o prefácio a Lula. “O Lula é talvez o meu melhor amigo dos tempos da ação política, foi meu companheiro durante os seis anos intensos em que fui primeiro-ministro. Tenho outros, portugueses, claro. E tenho também o Zapatero. O Lula é o mais próximo.”
“Ele foi a Sciences Po receber o título honoris causa quando comecei a estudar lá, por coincidência. Chegou a Lisboa e quis falar comigo e ninguém lhe dava o meu número de telefone, já eu estava em Paris. Ele fez uma fita, quero falar com o Sócrates! Não tinha o telefone de Paris. Quando chegámos à fala, disse-lhe que íamos estar juntos, depois jantámos na Embaixada do Brasil, antes da sessão. Um jantar divertidíssimo, até às duas da manhã. No dia seguinte, estavam lá os catedráticos todos, no doutoramento, e o Lula disse-lhes que eles tinham ali aquele gajo como étudiant - eu fui e ainda sou estudante de Sciences Po - e pediu-me para lhes mostrar o meu cartão de aluno. Mostra, Sócrates! Mostra!”
Já tem o cartão do próximo ano. Continua a ir a Paris esporadicamente, e um filho ainda estuda lá. Foi feliz na cidade. “Nem sabia que existiam vidas assim, vidas tão boas. Nunca tinha tido uma vida dessas.” Nesta longa conversa, à mesa de um restaurante italiano, não rejeitou perguntas e responde, com alguma candura, ou com irritação, a acusações. Está contente com o trabalho que fez, bem escrito e bem argumentado, é frontal na condenação inequívoca da guerra antiterror dos Estados Unidos e da tortura como método. Existe um absolutismo da vida e da dignidade humana.
Fazendo de advogada do diabo, tive de remexer em mexericos, a par das questões patrióticas. A história fica contada. Nunca, depois da entrevista dada, José Sócrates me pediu para alterar ou omitir frases que tinha dito.
Durante um ano, José Sócrates foi às aulas com gente muito mais nova do que ele. Não foi a primeira vez que aconteceu, já tinha “feito um MBA no ISCTE”. Não houve intimidação mútua, “foram sempre muito queridos comigo”. Para quem pensa que ele anda à procura de uma respeitabilidade académica que lhe faltava, com a história da licenciatura, Sócrates responde que esse “ponto de vista é mesquinho e apalermado, próprio da maledicência portuguesa”. “Em primeiro lugar, nunca tive nenhum problema com a minha vida académica, sempre fui um tipo com sucesso no liceu e nunca fui um filho do insucesso escolar.”
E o exame de Inglês Técnico ao fim de semana? A cara altera-se pouco. “Se quiser falar disso... falo para que compreenda o que aconteceu. Fiz o 7º ano com 16 anos no Liceu Nacional da Covilhã. Fui para Coimbra, para o Instituto Superior de Engenharia de Coimbra. Estamos em 75, anos da brasa, e o meu pai achou que a universidade estava em greve e disse-me para ir para o instituto, onde ao menos havia aulas. Cheguei a Coimbra com o Luís Patrão, meu amigo de infância da Covilhã. Foi meu chefe de gabinete e chefe de gabinete do Guterres. Ele estava no 3º ano de Direito em Coimbra, era já um ‘doutor’, e o pai ofereceu-lhe um Fiat 127 de presente, azul-escuro. O carro chegou a Coimbra carregado com as minhas malas. Fui estudar.”
MODERAÇÃO
Nessa altura, Sócrates “já era socialista”. Quando lhe chamo social-democrata, diz: “Na verdade, o problema de muita gente é que fui sempre social-democrata. Sempre fui um adepto da moderação. E esses pedantes intelectuais que para aí andam nem sabem que um dos primeiros livros que li foi justamente o de Bernstein.” Aprendeu política com os colegas de liceu, e junto com Jorge Patrão, irmão de Luís, inscreveu-se no PPD. “Fomos inscrever-nos no primeiro partido que se chamava Social-Democrata. Não tinha nenhuma simpatia por Sá Carneiro, pelo contrário, e a única coisa boa foi a liderança do Guerreiro. Eu era um social-democrata, não era de direita! Inscrevi-me por convicção doutrinária. Ligávamos muito às questões da doutrina.”
Nessa altura, não conhecia pessoalmente Mário Soares e não estava familiarizado com a história do PS. “Eu era filho de um arquiteto de província, não tinha contactos com a política, a não ser através da disciplina de Organização Política e Administrativa da Nação. As primeiras leituras são no 6º e 7º ano.”
Em casa, não se fazia educação política. “O meu pai escapou à pobreza formando-se. E foi a Igreja que lhe deu essa possibilidade, foi seminarista. Bom aluno, foi para Belas-Artes, trabalhando para tirar o curso. Foi professor de liceu e depois estabeleceu-se como arquiteto na Covilhã. Nasci na Covilhã, em 1957. Tinha dois irmãos, que morreram. Uma em 1987 e outro em 2011. Só me resta a minha mãe.” Conto-lhe que há uns anos, numa tarde, uma senhora me abordou no El Corte Inglés e pediu: “Não diga mal do meu menino.” “Ela disse isso?”
José Sócrates é um homem que perdeu, que tem perdido pessoas, poder. “Não tenho esse sentimento, pelo contrário. Perder pessoas sim, é irrecuperável, tenho muitas saudades dos meus irmãos, do meu irmão, que teve uma fibrose cística. Os alvéolos do pulmão vão diminuindo, fica-se sem oxigénio. Ele acompanhava a minha mãe, tratava-lhe das coisas. A minha irmã morreu com 33 anos, de ataque cardíaco. Nada substitui o amor fraternal.” Repete: “Tenho muitas saudades do meu irmão.” O irmão era o mais novo, cinco anos a menos. “Foi educado no Colégio Militar. Os meus pais separaram-se, e a minha mãe teve de ir tirar o bilhete de identidade para se separar, as mulheres não usavam BI. Separaram-se tinha eu 4, 5 anos. A minha irmã ficou com a minha mãe, eu fiquei com o meu pai e fui educado por ele. Passava as férias com a minha mãe. E o meu irmão foi para o Colégio Militar, coitado!” O pai era um disciplinador, “habituado à dureza da vida e muito exigente, comigo e com ele”. A mãe estava habituada a outro conforto. “A minha mãe era filha de um tipo rico na altura, uma fortuna do volfrâmio. Quando o meu avô morreu, a minha mãe herdou uma fortuna, muitos prédios, andares, que ainda hoje ela não sabe o que fazer com eles, quem tratava disso era o meu irmão. Conseguiu vender dois andares em Queluz que estavam ocupados... O meu avô, pai da minha mãe, que nunca conheci bem, nunca esteve de acordo com o casamento. A minha mãe tinha perdido a mãe muito cedo... Quando perdi a minha irmã, fiquei muito em baixo. Com 33 anos! E nessa altura li um texto do Voltaire que me ajudou muito. Um pequeno texto que fala de um velho filósofo e de uma jovem senhora, ela numa grande infelicidade por causa de um amor não correspondido. O tempo traz a recuperação.”
E recupera-se da perda do cetro, das guerras e batalhas perdidas, dos insultos e humilhações? Ou endurece-se? “Recuperei. Ostento com orgulho as marcas da batalha. A dureza encenada não é nenhuma dureza. Ou se tem ou não se tem.” “O animal feroz foi inventado pelo seu jornal.” Nunca disse aquilo? “Disse uma coisa diferente. Perguntado sobre uma coisa qualquer, autocriticando-me, disse: quando acho que tenho razão, sinto-me um animal feroz. Foi o que eu disse, e foi um abuso o que me fizeram. E com intenção negativa, que só me ajudou. Disse aquilo de forma humilde, como achando que tinha de me moderar nesses casos, e foi apresentado como um elogio a mim mesmo.”
Humilde é um adjetivo difícil de aplicar a José Sócrates. E justamente. Quem preside aos destinos de um país não tem humildade. “Isso de presidir aos destinos de um país! Nada choca mais com o meu mundo mental do que a cultura católica da falsa humildade, não falei nesse sentido.”
Sentiu-se responsável perante as pessoas depois das decisões que as afetaram? Pessoas verdadeiramente humildes? Há quem diga que ele hoje está mais de esquerda do que Mário Soares, outros acusam-no de galopar em cima de um espelho que o reflete. “Sabe uma coisa? Os tipos que falam disso não me conhecem e é-lhes muito conveniente esse ponto de vista. O cliché. Aos idiotas que andaram apaixonados por coisas que tiveram de negar faz-lhes muita impressão um tipo que sempre foi a merda de um moderado! Como dos dois lados. Sempre achei que o compromisso é a base da democracia! Era um daqueles tipos que aos 16 anos achava que a revolução, como método político, não fazia sentido! Não gosto de radicalismo, da atitude sim ou sopas! Os que dizem que metade de um prazer não é um prazer não sabem que metade de um prazer ainda é um prazer. E que o caminho do reformismo é o caminho. Esses gajos enganaram-se quando olharam para mim e disseram que era de direita. Criaram-me essa fama, e sou tão mais de esquerda que alguns que se dizem de esquerda. No meu partido, alguns achavam que defendiam o seu espaço político dentro do PS dizendo que eu não era de esquerda! E sou muito mais de esquerda do que eles! A história evidenciou-o.” Com Manuel Alegre teve um disputa no partido “que durou até 2011”. “Quem é que você acha que é mais de esquerda, eu ou Alegre?” A esquerda mede-se aos palmos? “É um engano pensar que o Manuel Alegre é mais de esquerda do que eu. Ele é muito conservador em muitas matérias.” Um tempo houve em que os históricos do PS não gostavam de José Sócrates, incluindo Mário Soares. Hoje é amigo dele. Outros estimam-no. Respeitam-no. “E eu estimo-os a eles. Gosto muito do Mário Soares. Também evoluí. Houve uma altura em que não os aceitava, porque sempre fui demasiado rebelde. Era um homem do Guterres, achavam eles. Não era verdade.”
José Sócrates tem, em relação à história do partido, uma certa inocência? Ou ignorância? “Aqueles gajos que se achavam a aristocracia pensavam que eu tinha que ir lá pedir, pedir se podia, pedir autorizações. E eu pensei, raios vos partam, vou vencer-vos a todos! E foi o que fiz!” Porquê esta necessidade bélica de vencer, de competir? Agora, tem amigos que não tinha. “Existiam os tiques da oligarquia.”
Quando António Guterres atravessou uma crise pessoal e familiar devido à doença da mulher, diz-se que o país foi governado pelo triunvirato Jorge Coelho/Pina Moura/José Sócrates. “Desculpe, não me meta nesse grupo! É um equívoco. Era já na altura muito crítico dessa liderança do partido, bicéfala. Nunca dei para esse peditório. Sou amigo do Jorge Coelho, e fui, e sou, muito, muito amigo do Guterres. E disse-lhe muitas vezes, vais-te arrepender disto. Eu estava no Ministério do Ambiente e fiz-me à minha custa. Mas, nos momentos críticos, o Guterres sempre me apoiou.” Não foi um defensor acérrimo de Guterres? “Fui um defensor leal, só não faço a patifaria de ter comportamentos oportunistas. Não me colo quando estão em alta e não abandono quando estão em baixa. Nunca fiz isso!” Não é a política uma instrumentalização de terceiros para um fim maior? “Não sei se está a fazer uma citação, mas não é isso. E não estou a ser muito deontologista.” Pode dizer-se a verdade em política? “Essa questão da verdade... teria de dar-me pelo menos 20 minutos...” Sócrates apareceu em cartazes com um nariz de Pinóquio, o mentiroso da fábula. “Claro que me irritei.” Neste momento, não há sinais dessa irritação. Quando lhe digo que todos os dias apanho alguém que diz que o odeia ou o acha o culpado da crise, da austeridade, da infelicidade dos portugueses, e que o culpa pela crise internacional e o crash e o subprime, ele encolhe os ombros.
Apanhou mais tareia nos últimos anos do que qualquer outro político português depois do 25 de abril. “Ora bem, sobre a verdade e a mentira digo-lhe que a política é o reino da opinião, e só pretensos políticos pretendem fazer da política uma luta entre verdade e mentira, bem e mal. São uns fanáticos! Personagens menores. Como viu na campanha de 2009, onde tudo começou! Ou melhor, não começou em 2009, começou em 2005.” Alguém parece ter medo de José Sócrates, pelo menos o medo suficiente para o liquidar invocando questões de “carácter”. Acusaram-no de homossexualidade, insinua-se que foi para Paris com dinheiro roubado do Freeport. “Você deve ter suficiente treino psicanalítico para perceber porque me fazem isso! Eu sou o chefe democrático que a direita sempre quis ter! Tenho algumas características que a direita acha que são de direita. E não são!” Montaram contra ele uma propaganda brutal? “E sempre pessoal, acharam que só podiam ganhar destruindo-me o carácter.” Tudo começou com o Freeport e a licenciatura? “Começou antes, em 2005, com um tal Santana Lopes! Um tipo pelo qual eu cheguei a ter simpatia. Montou uma campanha que começou por me fazer rir até perceber que era a sério, era pessoal. Um dia vinha de Sintra e vi um cartaz com a minha cara e disse: não me lembro de ter mandado fazer este cartaz! Dizia mais ou menos: você conhece bem este tipo? Uma insinuação dessas... E assinado JSD, sempre a mesma técnica. Os pulhas! Se lhe estou a contar isto, tenho uma memória seletiva e sou otimista, é porque me lembro bem. Vi o cartaz nas Amoreiras, dei uma volta para ir para casa e telefonei à minha ex-mulher. Disse-lhe para não levar os miúdos à escola pelo Marquês, porque fizeram um cartaz horrível... No outro dia de manhã, ela ligou-me e disse que os cartazes estavam por toda a cidade. E faço um telefonema a quem? Ao Relvas, o diretor de campanha. Tinha sido meu colega no Parlamento. Eu achava-o um gajo decente, e ele diz-me: não, não, não é nosso! Isso é coisa do Santana com os brasileiros! E eu: tu és o diretor da campanha e a partir de hoje ou te demites ou considero-te responsável, não admito uma campanha pessoal de difamação. E nunca mais falei com o Relvas! Antes da minha tomada de posse, o Santana recebeu-me. Fui lá e disse-lhe: você desculpe, mas a nossa relação pessoal não existirá mais. Na televisão, insinuou num debate que eu era homossexual, queria que eu dissesse que era, era isso que ele queria. O bandalho! E com o Diogo Infante, pessoa que nunca conheci e com quem nunca falei na minha vida! Sabe donde vem isso? Namorava com a Fernanda [Câncio] e ficava muitas vezes em casa dela. Deixava ali o meu carro e viam-me sair, é daí que isso deve vir. Uma campanha orquestrada.”
Mário Soares foi ele mesmo vítima de várias campanhas, mas não riscou a proteção Teflon. “Eu não sou assim Teflon!”
A nacionalização do BPN, que acabaria por “salvar” muitos dos inimigos de Sócrates, acabou por deitá-lo abaixo? Não pensou na altura em deixar falir um banco que estava nas mãos de amigos de Cavaco Silva? “Não pensei nisso, pensei apenas no país.” Sócrates achava que o risco sistémico era real e “Teixeira dos Santos estava apavorado com esse risco, a corrida aos bancos”. O buraco calculado era, na altura, “de 600 milhões”. Teve “pouco tempo” para pensar sobre o assunto. “Esta entrevista não deve ser sobre isso. Sabe, uma das características da política é que não temos muito tempo para pensar graves decisões. Passei algumas noites sem dormir, com medo que acontecesse uma coisa como o Lehman Brothers. Achei mais prudente fazer a nacionalização.” E não lhe tinham chegado aos ouvidos rumores sobre o que era, de facto, a operação do BPN? Não se aconselhou com Vítor Constâncio? “Não sabia o que aquilo era, não. Claro que ouvi Vítor Constâncio, mas o meu grupo de conselheiros são sempre as mesmas pessoas e é um grupo muito restrito.” Está arrependido? “Arrependermo-nos é errarmos duas vezes. Posso ser ingénuo, mas nunca me ocorreu que aquilo fosse o que foi.”
E a assinatura do memorando que trouxe a troika, pela qual o PSD continua a responsabilizá-lo? “Podíamos, no início, ter feito as coisas de forma diferente. Mas a certa altura não podia deixar o país entrar em default. Fizeram-me uma malandrice. Pensada a partir de Belém. Foi o momento escolhido para dar cabo do Governo, criar uma crise política e levar-nos a assinar o memorando. Resisti o mais que pude, mas a realidade impôs-se.” Não ficou zangado com Teixeira dos Santos, quando o ministro das Finanças disse que a intervenção externa era inevitável? Há quem pense que o Governo rebentou aí. “Fiquei muito zangado, mas a verdade é que já não estou. Passei dois anos horríveis com o Teixeira dos Santos, horríveis. Ele foi-se abaixo! E teve uma atitude horrível connosco.” E Sócrates, foi-se abaixo? “Nunca me fui abaixo.”
Não tinha recebido ordens contraditórias da Europa a seguir ao Lehman Brothers? Primeiro para investir e gastar, para contrariar a recessão, e depois para desinvestir e cortar, reduzir o défice? “Nunca recebi ordens da Europa. Nós decidimos todos, líderes europeus, fazer investimento. Decisão que vinha da boa doutrina económica. A doutrina que dizia que, num momento de crise internacional como aquela, os Estados têm o papel de fazer mais investimento para garantir o emprego. Isso durou até ao final de 2009, e em 2010 rebenta a crise grega, e a direita aproveita a crise grega, em particular a Alemanha, para dar cabo da política que estava a ser conduzida e bem conduzida. Sabe qual foi o crescimento económico em Portugal em 2010? Foi, com a crise, de 1,9. A política de estímulos deu resultado. Simplesmente, tivemos um problema de financiamento, que os Estados Unidos não têm. Têm um banco central. Nós temos um banco central com uma missão mais limitada que a Reserva Federal americana. E nos EUA têm uma mutualização da dívida, coisa que não temos... A partir de 2010, com a crise, pensei apenas numa coisa, salvar o meu país! E decidi começar as políticas de austeridade para dar bons sinais e proteger o meu país da ajuda externa. Fiz o que podia. Fi-lo a meio de 2010, fi-lo no Orçamento do Estado para 2011, enquanto a direita, no Parlamento, pedia mais despesa! No final de 2009, tinha ganho as eleições há três meses, a direita votou na AR uma Lei das Finanças Regionais para dar mais dinheiro ao Jardim! O que quase nos levou à demissão. Houve um Conselho de Estado e ponderei demitir-me. Até pus o Teixeira dos Santos a fazer o aviso à navegação. A direita esteve no seu melhor, com a hipocrisia própria da direita, enquanto ia fazendo uma campanha de descrédito pessoal. É uma direita muito miguelista.”
Não será válido na política, por vezes, o princípio dos guerrilheiros vietnamitas e dos soldados americanos na guerra do Vietname: se não matas o VC (vietcong), o VC mata-te a ti? Se não matas o GI (soldado dos EUA), o GI mata-te a ti? “Não, não penso assim, e não concordo com isso.”
PELOS DIREITOS HUMANOS
O livro que escreveu não é só uma condenação inequívoca do método da tortura, é uma afirmação dos direitos e da dignidade dos seres humanos sobre todas as coisas, dentro ou fora da política. “Sabe, esse livro foi escrito por alguém que tem as mãos sujas, que passou toda a sua vida a sujar as mãos na política para escolher o mal menor. E só esses é que podem dizer com propriedade que há linhas que não podemos atravessar.” Quando ele era primeiro-ministro, e os aviões da CIA pousavam em Portugal com presos torturados, alvo de “rendições extraordinárias”, sequestros ilegais, não sabia? O seu ministro dos Negócios Estrangeiros não sabia? “Não. Em primeiro lugar, se os Estados Unidos utilizaram a nossa base das Lajes ou o território nacional para transportar prisioneiros, fizeram-no abusivamente. Eu não sabia e acredito que o ministro dos Estrangeiros também não sabia! E muito disso passou-se no Governo do Barroso, e grande parte do nosso esforço foi para defender o Governo do Barroso dessas acusações. Se algum avião da CIA aterrou no nosso país, e se os Estados Unidos fizeram esse transporte de prisioneiros para serem torturados nalguns sítios da Europa, black sites, fizeram-no abusivamente e abusando da boa-fé dos países amigos. Se fizeram isso... é preciso haver provas.”
Existem provas de que fizeram, as organizações de direitos humanos têm-nas, e fizeram-no passando por Portugal, como é que podia não saber? “Repito, não sabia. E sobre a política pública de tortura que a Administração Bush praticou, soube-o agora. Grande parte das razões que me levaram a escrever este livro devem-se ao facto de eu próprio ter ficado, não direi em choque, mas com a atitude mais filosófica do espanto. Como é que foi possível naquela democracia ter acontecido isto?”
E como foi possível que não soubesse antes? Não lia os jornais? “Quer que lhe diga mais coisas que não sabia? Grande parte da descrição que faço no livro sobre as atividades da CIA, os programas entre 1950 e 1960, provados em documentos oficiais, se me tivesse falado neles há dez anos atrás, dir-lhe-ia que não acreditava.” Sendo José Sócrates primeiro-ministro, era personagem da primeira linha do drama histórico pós-11 de setembro, a guerra contra o terror. “Uma das razões por que escrevi este livro foi porque senti que os Estados Unidos enganaram muitos dos seus aliados.”
Porquê o tema da tortura, por ser território indisputável? Não teme que digam que escolheu este tema apenas para se mostrar como um paladino dos direitos humanos? É um tema internacional, que convida ao assentimento coletivo e à reabilitação. “Eu estou-me a borrifar para o que possam pensar! Estou a tentar explicar-lhe, sem conseguir. Houve um pequeno momento em Paris, na Sciences Po, em que se fez um clique no meu espírito. Descobri o meu tema no dia em que o filósofo Fréderic Gros, um tipo novo e muito interessante, chegou do aeroporto com as malas para fazer uma aula magistral. Duas horas a falar de filosofia. Ele vinha do Brasil, onde tinha estado a fazer uma conferência sobre tortura. E falou disso. Disse duas ou três coisas que me ficaram a bailar no espírito, como a importância da escola francesa na nova legitimação da tortura, da conceptualização da tortura como um instrumento de guerra, por causa da Argélia.” Sócrates concentrou-se no problema da tortura praticada pelo Estado em democracia. “Os agentes da CIA são agentes públicos.” “As democracia tiveram duas atitudes perante a utilização da tortura na exceção. Numa, usam a versão clássica da exceção, a necessidade justifica o meio. Mas essa tortura foi negada pelas democracias, feita clandestinamente. A primeira vez que há uma tortura legalmente assumida foi com os EUA, é a partir do dia 11 de setembro. Mas tudo isto tem uma história para trás, há que perceber o que se passou nos EUA depois da II Guerra Mundial.” Repete-se a pergunta: o primeiro-ministro não sabia que prisioneiros torturados passavam por Portugal? “Lá está você! Pois acha que se eles espiam a Presidente Dilma, vão cuidar de avisar o meu Governo de que vão passar por Portugal com um prisioneiro a bordo? Pediam autorização para aterrar e aterravam. Soube de tudo a posteriori. Quando foi despoletado o inquérito do Parlamento Europeu, e com as declarações da Ana Gomes, conversei várias vezes com o Amado, que me disse que não havia registos no Ministério para um voo desse tipo, e confio no que ele me disse.”
Decidiu escrever a tese. “Tinha um conhecimento do francês muito insuficiente, tive de graduar-me. Escrevi este livro em francês. E traduzi para português. E, pela primeira vez, por causa disto, li quatro livros do Freud, nunca tinha lido. Tinha lido pequenas citações e referências. Li-o profundamente para poder entender o que é um torturador. E não é um sádico. Se fosse, descansar-nos-ia. Na biografia dos grandes torturadores, o que encontramos é, para usar a expressão da Hannah Arendt, banalidade biográfica. Também não embarco na tese de que não se nasce torturador, formamos torturadores, isto é só meia verdade. A explicação para o torturador está na psicologia de massas. A ideia de que qualquer um de nós, com os seus critérios morais, está protegido de fazer isto num momento limite é um engano. Qualquer um de nós, em circunstâncias limite, podia ser capaz de fazer a mesma coisa.”
Caso prático: o primeiro-ministro Sócrates sabe que há um plano para um ataque terrorista em Lisboa. É preciso obter mais informações de um prisioneiro. Tortura-se? Um académico pode dizer não, pode um político? “Não existe pensamento sem ação e vice-versa. Eu direi sempre não, não se tortura. Nunca fui um deontologista, nunca me filiei nas correntes morais dos que acham que têm imperativos categóricos e uma ética da convicção. E o resto entrega-se a Deus. Sempre tive a consciência, como todos os políticos, da ética da responsabilidade. Em vez da total fidelidade ao que consideramos justo ou bom. É preciso medir as consequências da boa ação. O exemplo clássico é o do Kant, na ‘Metafísica dos Costumes’. Já o li umas dez vezes. O deontologismo filiado em Kant diz: age de modo a que da tua boa ação resulte uma lei universal. E portanto, diz Kant, nunca mentir. E lá vem o exemplo clássico do judeu escondido na nossa casa. Devemos mentir para o salvar? Com Kant, concluiríamos que não, nunca. Dizer a verdade é a lei universal. E quem pratica a má ação não somos nós, é quem prende o judeu. Ora, a isto eu digo não, é uma cobardia moral. Sempre me filiei nas correntes do consequencialismo e do utilitarismo, o utilitarismo de Bentham e de Stuart Mill. A boa ação é aquela de que resulta mais felicidade e menos sofrimento. É um cálculo. Devemos torturar ou não? Temos de fazer um cálculo entre as vidas que salvamos e o sofrimento que causamos. Aqui, entro em divergência. Porque me tornei um deontologista num único ponto, um ponto que une várias gerações de filósofos, alguns muito atuais, como o Rawls ou o Nozick. Qual é o ponto? A vida humana é única, singular e insubstituível. Aqui, filio-me no imperativo categórico prático do Kant: nunca utilizar uma pessoa como um meio e sim como um fim em si mesmo.”
Não é isso que a política faz o tempo todo? Usar as pessoas? “Falo de nunca utilizar a vida da pessoa. E aqui acaba o cálculo do mal menor, torna-se ilegítimo. Toda a minha vida foi passada a calcular o mal menor, na merda da política, é isso sujar as mãos. Torno-me um deontologista na questão da vida e do sofrimento. Mas, digo na tese, esta discussão entre deontologismo e consequencialismo não leva a lado nenhum, temos de discutir as consequências da ação à luz de uma moral individual e de uma moral pública. Uma ética da responsabilidade que é parte do político. E afirmo que os cálculos que se fazem entre o sofrimento causado e as vidas que se salvam por causa dele estão mal feitos. O que um Estado faz quando decide torturar tem implicações tais que provocará muito mais sofrimento ao mundo do que se decidir pelo absolutismo de nunca utilizar a tortura em nenhuma circunstância. A isto dedico todo o capítulo moral e concluo com o utilitarismo das regras, decidir nunca utilizar a tortura. É aí que entra o seu caso prático, o ticking bomb scenario. Esse cenário nunca existiu. Como ter a certeza que a bomba está lá? E se for só um plano? Aí, não existe a mesma urgência. Tem de ter a certeza do plano. Segundo, se quer abortar o plano, tem de recorrer ao método tradicional, a investigação. A tortura é justificada pelos utilitaristas com a certeza de que a bomba está colocada. E a necessidade de escolher entre o tipo torturado e os cem que a bomba vai matar. Eu argumento que esse cenário é irreal. Nunca aconteceu.”
DA ÉTICA POLÍTICA
E os target killings de Obama? “Não concordo com target killings, do mesmo modo que não concordo com a morte de Bin Laden como resultado de informações obtidas sob tortura. Aquilo ou é uma operação militar ou uma operação de polícia, e se for de polícia tem de ter as regras da polícia. É uma operação militar. Teria sido preciso matar? Sendo uma operação militar, a proporção dos meios utilizados deve ser ponderada. E os unlawful combatants não têm nenhum direito, segundo a lei americana. O inimigo absoluto, expressão retirada do Carl Schmitt. Os drones são uma revolução na guerra e na ética da guerra, já não se trata de morrer pela pátria mas de matar pela pátria. É um teletrabalho, carregam no botão e bum!”
Resta o velho problema da razão de Estado. “É uma questão que me apaixona, mas interessam-me os momentos de exceção. Onde está a verdade, na rotina ou na exceção? Os limites da democracia. A natureza da democracia joga-se na exceção. Existe um filósofo que está muito na moda, o Giorgio Agamben, que defende que os campos de concentração foram a democracia em exceção. O fascismo foi uma democracia em exceção. Como é que as democracias se defendem em momentos de exceção? Isto reconduz-nos a um autor tão maldito como poderoso, Carl Schmitt. A democracia seria o reino dos fracos. O liberalismo serviria para arbitrar pequenos conflitos. E quando se trata da contradição entre amigo e inimigo, o liberalismo não serviria.”
Isso não estava já em Maquiavel? “Claro que estava, está em Maquiavel e está em Carl Schmitt. A razão de Estado foi usada por políticos pouco escrupulosos para imporem a sua moral como regra da democracia. Era a doutrina do Nixon, em nome da segurança social faz-se o que se quer. A única moral que a República tem é a lei. E se queremos torturar fazemos uma lei para isso.” Os americanos fizeram o Patriot Act. “É o que lhe estou a dizer, ora isto não é a democracia, em democracia é a comunidade que tem de decidir, não é a lei que decide. A comunidade usa os meios que tem, os parlamentos, o debate público.” Pode a segurança nacional ir a debate público? “Então não pode? Tem de identificar objetivos e meios. E a comunidade não pode, num gesto de cobardia moral, dizer que isto não lhe diz respeito. Sou um democrata! A ética da responsabilidade não é esta. A responsabilidade de um político perante a comunidade que o elegeu é o respeito da Constituição e da lei. A partir do momento em que um traste de um político invoca a razão de Estado para pôr em causa a Constituição e a lei, ele atravessa a minha linha vermelha. Ele não está a defender o Estado, está a matá-lo! A coragem do político e da democracia está em impor a si próprio linhas vermelhas. Nunca as ultrapassarei, como político. É preciso ter a bravura de não cometer atos horríveis.”
Tenciona José Sócrates, armado destas convicções morais, candidatar-se à presidência? Talvez contra o Durão Barroso que abraçou George W. Bush nos Açores? “Ouça, tenho uma boa vida. Se voltei ao comentário político é porque me quis defender, estava a ser atacado sem defesa. Não sinto nenhuma inclinação para voltar a depender do favor popular. Embora seja mais um homem da ação que da vida contemplativa que tive nestes dois anos, que não é o que sei fazer. Só sei viver em determinação. Em contingência. Não sou um filósofo, não olho para uma situação com a ideia de a entender mas de a alterar. Citando um filósofo, a política é a eterna aprendizagem do convívio com a deceção.”
DESPESAS EM PARIS
“Pedi um empréstimo ao banco de 120 mil euros. Um ano sem nenhuma responsabilidade
e levando um filho comigo. Gastei
o dinheiro todo.
Assim fui para Paris, em vez de, mais uma vez, pedir dinheiro emprestado à minha mãe”

SOBRE A DIREITA
“Estamos a falar
de pistoleiros. Fui alvo de uma perseguição política e pessoal de uma direita hipócrita que obrigou o anterior Governo, o meu, a pedir ajuda para agora vir queixar-se daquilo que eles mesmos fizeram. Fazem o mal e a caramunha”

MINISTRO DAS FINANÇAS ALEMÃO
“Aquele estupor do ministro das Finanças, o Schäuble, todos os dias esse filho da mãe punha notícias nos jornais contra nós.
E ligávamos para
o gabinete da Merkel
e ela, com quem
me dava bem,
dizia que vinha
do gabinete dele”
INVIABILIZAÇÃO DO PEC4
“Os filhos da mãe
da direita em Portugal deram cabo de uma solução apenas para ganharem eleições”

A ASSINATURA DO MEMORANDO
“Custou-me os olhos
da cara pedir ajuda.
A alternativa era
o ‘default’. Assinei.
O que é que podia fazer? Já ninguém,
lá fora, dava nada
por nós”

O CASO FREEPORT
Leu tudo o que se escreveu sobre ele? Os adjetivos, as acusações? Desde o fato Armani aos casos Freeport ou Face Oculta? “Estou com o George Harrison: a felicidade é abrir os jornais e não falarem de nós. Agora falam menos de mim. Sempre fui um bocado anguloso, não tenho um feitio redondo. Desde que saí de primeiro-ministro, nunca tive guarda-costas ou seguranças. Tenho o motorista da minha mãe. Fui o primeiro primeiro-ministro a acabar com a lei que dava a um primeiro-ministro com mais de quatro anos de cargo uma pensão vitalícia. Não recebo pensão. Não recebo nada do Estado português. Por isso trabalho para uma empresa privada. Recebi muitos convites e só aceitei o desta empresa, uma empresa suíça, porque fui convidado para trabalhar na América Latina. Não em Portugal. Precisava de um emprego.”
E as famosas “luvas” do processo Freeport? Que efeitos é que o processo lhe causou? “Lembro-me do primeiro momento em que ouvi falar daquilo. Estava em Setúbal para entrar num comício, em 2005, e veio uma assessora dizer-me que havia buscas por causa de um empreendimento que eu tinha licenciado. E qual era?, perguntei. O Freeport. O nome não me fazia soar nada. Perguntei ao Pedro Silva Pereira, e ele veio esclarecer-me. E lembro-me de uma Comissão Nacional a seguir às autárquicas que perdemos em que o presidente da Câmara de Alcochete, que tinha acabado de ganhar as eleições, veio ter comigo a dizer que eu lhe tinha dado cabo do grande investimento em Alcochete. Eu não sabia do que ele estava a falar. E pediu-me que falasse com os dirigentes do Ministério, porque iam rever o projeto. Pediu-me uma reunião, onde estiveram presentes dirigentes do Ministério, o secretário de Estado que tinha assinado o despacho de indeferimento e os promotores ingleses. Mais o presidente da Câmara. Na reunião, que está documentada, a gente do Ministério disse o que estava no despacho, eles tinham que ter menos estacionamento, etc. Se alterassem aquilo, tinham o parecer positivo do Ministério. E uma pessoa, de uma direção, disse que se eles fizessem as correções nem era precisa nova avaliação de impacto ambiental. Eu disse logo que aquela avaliação ambiental tinha acabado com o projeto chumbado e com o novo projeto teria de haver nova avaliação ambiental. Contrariei o que diziam os técnicos. É tudo o que me lembro. Mais tarde, vem a história do meu tio. O meu tio é uma pessoa de quem perdi o rasto. A minha mãe tem dois meios-irmãos, homens muito ricos, pessoas com quem estive três ou quatro vezes nos últimos vinte anos. Esse meu tio até era o mais simpático. Ele diz, e é possível, que me telefonou para casa e falou comigo. E que me disse que conhecia uns tipos que diziam que no Ministério do Ambiente queriam levar-lhes uma fortuna, pediam dinheiro, para aprovar um projeto. Eu respondi que isso não acontecia no Ministério do Ambiente. Quem foi ter com o meu tio foi esse Charles Smith, porque a mulher do meu tio era administradora da Quinta do Lago, onde ele tinha uma casa. Quem estava a pedir esse dinheiro era um gabinete de advogados ligados ao PSD e muito próximos do doutor Santana Lopes, prometendo o licenciamento por um preço.” Era esse gabinete o do advogado Gomes da Silva? “Julgo que não. O Gomes da Silva era um dos que preparou, com o chefe de gabinete de Santana, Miguel Almeida, o fornecimento de elementos à Polícia Judiciária para criarem o caso Freeport. O meu tio ligou-me por causa desse pedido de dinheiro, e respondi-lhe que os queixosos deviam dirigir-se aos serviços do Ministério. É tudo o que recordo e que se passou.” E o mail do primo? “É o filho desse meu tio Júlio, que diz que me mandou um mail que nunca recebi ou li e que o meu primo já reconheceu que foi um abuso de confiança. Em 99% dos casos de corrupção, os corruptores utilizam nomes para fazerem valer a sua posição e desbloquear. O tal Charles Smith e o sócio dele quiseram convencer os ingleses de que resolviam o assunto sem pagar aos advogados, movendo influências. E do Freeport é isto tudo o que tenho.”
Quanto às acusações de que a mãe comprou a casa da Rua Braamcamp através de uma offshore, e que ela e o tio tinham dinheiro em offshores, Sócrates responde: “Comprei a minha casa no Heron Castilho, onde moro. A minha mãe vivia em Cascais, numa moradia, e quando o cão dela morreu sentiu-se sozinha e veio viver para Lisboa. Vendeu a casa de Cascais e comprou o andar por cima de mim. O 4º, que estava à venda. Combinou-se com a proprietária comprar o andar, e quando a minha mãe foi fazer a escritura viu que a senhora que vendia, acho que era estrangeira ou ligada ao estrangeiro, tinha a casa numa propriedade offshore. Que culpa tem a minha mãe?” As casas ali são caríssimas, tinha o político Sócrates dinheiro para comprar ali casa? “Em 1985, quando me casei, a minha mãe deu-me dinheiro para comprar a casa na Rua Miguel Pais. Quando nasceu o meu segundo filho, eram livros e fraldas a mais e decidi ir para uma casa maior. A da Heron Castilho. Vendi a minha casa, pedi dinheiro emprestado ao banco e comprei aquela.”
Em Paris, manteve uma vida de luxo? “Quando perdi as eleições, telefonei à minha gerente de conta e pedi um empréstimo ao banco de 120 mil euros. Um ano sem nenhuma responsabilidade e levando um filho comigo. Gastei o dinheiro todo. Assim fui para Paris, em vez de, mais uma vez, pedir dinheiro emprestado à minha mãe.” Nos tribunais, correram e correm vários processos intentados por Sócrates contra pessoas e coisas que se escreveram contra ele. Desejo de litigância? “O que queria que fizesse? Que bradasse aos céus? Que resolvesse isto à pancada? Pus um processo ao ‘Correio da Manhã’, autorizei que se levantasse o meu sigilo bancário para que vejam as misérias da minha conta bancária. Estamos a falar de pistoleiros. Fui alvo de uma perseguição política e pessoal de uma direita hipócrita que obrigou o anterior Governo, o meu, a pedir ajuda para agora vir queixar-se daquilo que eles mesmos fizeram. Fazem o mal e a caramunha. A comissão de inquérito para ver se eu tinha mentido sobre a TVI, etc. E a história do PEC4 ficou mal contada.”
As nomeações para os bancos, incluindo a de amigos pouco recomendáveis, como Armando Vara, para o BCP, não foram erros? Abusos? “Veja o que este Governo fez, as pessoas que já nomeou. E nomeei para a Caixa um tipo do PSD, o Mexia para a EDP... E fala-me em amigos pouco recomendáveis? Eu admito lá a alguém um juízo moral sobre os meus amigos? Que resposta é que acha que isso merece? Quem é que decide o que é um bom amigo?”
E o processo Face Oculta? E as escutas? E a acusação, pela Presidência da República, de que o Governo mandara escutar Belém? “Vamos pôr isto em perspetiva. O caso Freeport é de 2009, para dar cabo de mim e impedir-me de ganhar as eleições. Dura de janeiro a junho, e em junho percebe-se que não há nada. Nem cá nem no Serious Fraud Office. Em junho, lançam a campanha das escutas, o primeiro-ministro está a escutar o Presidente. Foi pensado por um assessor do Presidente, e infelizmente o senhor Presidente nunca desmentiu a notícia. Não posso acreditar que ele tenha sido cúmplice numa operação para dar cabo de um Governo legítimo. Foi uma conspiração da direita política com ligações à Casa Civil do PR para me impedirem de ganhar em 2009. Uma acusação ridícula, que me incomodou muito. Ganhei.”
DESPESISMO, NÃO!
E não ganhou com políticas eleitoralistas, como o aumento dos funcionários públicos, fatura que agora o país paga? “Em 2009, fizemos uma política anticíclica, de estímulos à economia, segundo as recomendações do FMI e de todos os países europeus. Evitar o desemprego e as falências. Medidas que, em 2009, a direita achava pouco. Mesmo no orçamento restritivo de 2010, depois da crise grega. Houve duas crises, a de Wall Street e a das dívidas soberanas na Europa. E é aí que a direita começa a falar na despesa, como se eles não tivessem proposto muito mais. Lutámos com todas as nossas forças para não pedir ajuda, tive consciência do que nos ia acontecer se o fizéssemos. A direita dizia que as instância externas só nos iriam ajudar a corrigir os erros de trinta anos. Passos Coelho dizia: porque não governar com o FMI? No ano 2010, enfrentei todas as dificuldades. Apesar de muitas instituições terem baixado os braços em 2011, construí uma solução com a ajudar de muita gente que conhecia na Europa, de forma que pudéssemos ter um programa em que o BCE nos ajudasse na manutenção de juros aceitáveis. E não tive o ‘consentimento’ da senhora Merkel para isso, não há consentimentos, nunca aceitei este discurso do protetorado. Negociei com a Comissão Europeia e com o Conselho a elaboração de um Programa de Estabilidade e Crescimento em que nos comprometíamos com exigências orçamentais, ajudando-nos no financiamento. Travei dois meses de combate, a seguir às presidenciais. Diziam que não íamos conseguir colocar dívida e conseguimos. Negociei com a Europa e com Barroso e com o BCE a solução. Se eles estivessem de acordo, assinavam por baixo. Foi difícil. A parte final foi o jantar com a Merkel, e fui a Berlim, porque ela teve a decência de me convidar. Noutro jantar ficara ao lado dela e ela disse-me que gostaria de dar uma palavra em defesa do nosso país e dar um sinal claro aos mercados. Nunca lhe pedi para ir a Berlim. A estratégia era o chamado Comprehensive Approach, não deixar pontas soltas. O problema era saber onde é que a Europa marcava a linha vermelha, com Portugal dentro ou com Portugal fora. Em fevereiro ou março de 2011, a Grécia e a Irlanda já estavam em programa. A Europa não queria mais ninguém. Em Berlim, tudo muito formal, conversámos e fomos jantar. A Merkel está do outro lado com aquele estupor do ministro das Finanças, o Schäuble, que foi agora corrido. Todos os dias esse filho da mãe punha notícias nos jornais contra nós. E ligávamos para o gabinete da Merkel, e ela, com quem me dava bem, dizia que vinha do gabinete do ministro das Finanças. No jantar, ela pô-lo ao lado para o comprometer. Disse: devo ser a única na Alemanha que acha que vocês não precisam de ajuda! Eu respondo-lhe que não se trata apenas de Portugal, se houvesse mais um caso de falhanço era mau para nós e para a Europa. E disse que propusera o PEC previamente negociado com o BCE e com a Comissão, de forma a evitá-lo. O programa era restritivo para contar com o apoio do BCE. Merkel respondeu: é mesmo isso! Contei-lhe que o [Jean-Claude] Trichet [diretor do BCE] queria mais duas coisas, legislação do trabalho, e não cedi. Ela disse-me para lhe dar uma dessas duas, porque precisávamos do BCE. Eu tinha dito ao Barroso que aquilo tinha de ser assinado por todos. O Barroso esteve sempre do nosso lado e defendeu Portugal, foi um patriota. Construí muito disto com ele, por aproximações. Só se portou mal mais tarde. Regresso de Berlim e acho que temos isto feito! Tínhamos uma semana para concluir o negócio. Em Portugal, foi a semana da tomada de posse do PR e da moção de censura do Bloco. Aquilo tinha de ser aprovado naquele dia. Chamei o Passos Coelho para lhe dar conta da situação, tínhamos que salvar Portugal.”
INVIABILIZAÇÃO DO PEC4
Passos Coelho sempre disse que não sabia de nada. “Mentiu, e deixou que outras pessoas mentissem. Ele sabe o que me disse. Um dia contarei esta história toda, não agora, aqui.” “Quando cheguei a Bruxelas, pedi o apoio da Comissão e do BCE, por escrito. O Barroso achou, como eu, que estava feito. Só faltava o papel, que os serviços do Barroso foram fazer. Aquilo foi discutido no Conselho e decidiu-se que Portugal não ia pedir ajuda. Houve uma intervenção manhosa do primeiro-ministro da Holanda, e eu, muito irritado, até lhe pedi que ele dissesse quanto é que Portugal lhe devia, porque não estava para ficar-lhe a dever um tostão nem aturar-lhe o calvinismo reles. Nunca tinha havido uma discussão daquelas no Conselho, e ele calou-se. É votado, e a Merkel vira-se para mim e diz: parabéns! O Barroso diz: conseguimos! Estava genuinamente satisfeito, e eu estava mais aliviado. Veio o Trichet, e eu disse-lhe que havia que estar de olho nos mercados. Desde que aprovássemos o PEC4, diz o Trichet, apoiar-nos-iam. Às quatro de cá ou cinco e meia de lá, o Barroso avisa-me, surpreendido, que o PSD vai chumbar isto. Telefono para Lisboa e sei que o Passos Coelho vai convocar uma conferência de imprensa. O Barroso sabia o que isto nos tinha custado. Os filhos da mãe da direita em Portugal deram cabo de uma solução apenas para ganharem eleições. Nunca contei com isto.”
Quando é que os banqueiros o encostaram à parede? “Vim para Portugal na esperança de que mudassem de ideias. Vejo o Presidente a dizer que não foi consultado, o Passos a dizer que não sabia, e telefonei ao Lacão e disse que íamos fazer como o Cortés, incendiar as naus. Se eles chumbassem o PEC4, demitia-me. Quando se percebe que eles não iam aprovar e que ia haver uma crise política, as taxas de juro dispararam para 14%. Não havia condições para ir ao mercado. Em 15 dias, os juros passaram de 7% para 14%.”
Acha que fez bem em se demitir? Tinha dito que nunca se demitiria. “Aquilo foi tão irresponsável e out of the blue que não tinha outra solução. Fiz bem e acho que o devia ter feito antes. O erro foi, em 2009, ter aceite um Governo minoritário. Quem ia adivinhar que íamos ter uma crise das dívidas soberanas?” Dizem que ele não tentou verdadeiramente coligar-se. “Uma coisa são factos e outra opiniões. Tentei coligar-me com a Manuela Ferreira Leite, e ela disse: o nosso mandato é de oposição. Perguntei o mesmo ao Paulo Portas e ao BE e ao PCP.” Como é que ele admitia que o PCP ou o BE ficassem numa coligação com o PEC4? “Eu fiz a pergunta. Eu tinha um Governo minoritário com um programa de consolidação pela frente. Só tinha medo disso, não temia coligações.”
O próprio ministro das Finanças achava que ele estava errado. “Quando o Teixeira dos Santos me veio dizer que precisávamos de pedir ajuda, eu pedi-lhe mais 24 horas. Queria fazer um telefonema ao Zapatero. Em Espanha, resistiram com bravura. O Teixeira dos Santos teve a fraqueza de fazer aquele telefonema ao ‘Jornal de Negócios’. Com os banqueiros, precisávamos de colocar aquela dívida naquele momento, e vieram dizer-me. Tomei boa nota. Respondi-lhes que desde o dia em que o PEC4 fora chumbado, os ratings deles tinham descido cinco ou seis vezes e que iam demorar dez anos a recuperar. Acredito que os banqueiros fizeram o possível para evitar que o PSD chumbasse o PEC4.”
“Custou-me os olhos da cara, pedir ajuda. A alternativa era o default. Assinei. O que é que podia fazer? Já ninguém, lá fora, dava nada por nós. Foi o que a direita quis, obrigar o país a pedir ajuda e o PS a assinar o memorando.” Não lhe sobrou uma amargura, no final? “Fiquei com a minha pedra no sapato.”

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