Neste excelente livro os autores, relatam minuciosamente o
golpe de estado do 27 de Maio de 1977 em Angola. Sugerimos vivamente a sua
leitura a todos aqueles que estão interessados em saber a verdade sobre o
referido golpe de Nito Alves e guerra em Angola. Como o livro tem copyright e
não será fácil de adquirir à maioria dos que vivem em Angola e sobre tudo na
diáspora, solicitamos a complacência da Editora e dos Autores. Por motivos de
edição tivemos de eliminar no texto os números de chamada de atenção para as
fontes pelo pedimos desculpa. Muito obrigado.
A natureza do 27 de Maio
Nito Alves (foto Net)
Pg.102/115. Entre os chamados nitistas
seria consensual a necessidade duma alteração na direcção política e nas
orientações seguidas. Mas não havia acordo quanto ao modo de a efectivar.Uns
terão considerado inevitável um golpe de Estado. Ao passo que outros, partindo
do princípio de que a teoria revolucionária condenava o golpe de Estado, por ser
uma acção desligada das massas, terão julgado preferível desencadear um amplo
movimento de protesto, capaz de travar a repressão. Resolvem, pois, avançar para
uma grande manifestação, conjugada com algumas acções militares, sobretudo de
carácter anti-repressivo.
Qualquer incipiente aprendiz de revolucionário sabe como o
marxismo trata a insurreição. Vladimir I. Lenine escrevera: [...] Para tratar
a insurreição de um modo marxista, isto é, como uma arte, devemos [...]
organizar o estado-maior dos destacamentos insurreccionais, distribuir as
forças, lançar os regimentos de confiança para os pontos importantes [...],
prender o estado-maior general e o governo, [...] tomar imediatamente os
telégrafos e os telefones [...]
Ora os nitistas não tinham um plano militar propriamente
dito. Não pensaram, pois, na tomada dos telégrafos e telefones. Confiavam na
força das massas e no enorme apoio de que dispunham na cidade de Luanda, quer
entre os militares quer na população africana. E confiavam, também, que os
cubanos não travariam as movimentações populares. Por isso, não tomaram as
precauções aconselháveis.
Plano louco e mal concebido de uma insurreição desarmada de
massas,
lhe chamou o historiador David Birmingham. A nosso ver, com razão.
Os objectivos seriam os duma insurreição, destinada a provocar alterações no
poder e nas orientações seguidas. Ao passo que os meios se limitavam a ser os de
uma simples manifestação, conjugada com algumas acções militares, sobretudo
viradas para ocupação da rádio e a libertação de presos.
Trinta anos decorridos, a reconstituição dos acontecimentos do
27 de Maio é um processo complexo e difícil. E tanto mais complexo e difícil
quanto é certo haver muito boa gente que não está nada interessada em que se
faça tal reconstituição. Apenas um exemplo recente.
Luís dos Passos, líder do chamado Partido Renovador
Democrático, volta e meia fala do 27 de Maio, com versões que, não raro, entre
si se contradizem. Julião Mateus Paulo (Dino Aíatros), secretário-geral
do MPLA, em entrevista que nos concedeu, afirma tê-lo chamado à atenção quando
levantava questões do «fraccionismo». E ter-lhe-á dito: - Olhe, não fale
muito, porque eu também sou testemunha. E se eu abrir a boca, não sei como é que
há-de ser, vou ter de o desmistificar, porque eu tenho testemunhas. E fez
questão de acrescentar que Luís dos Passos se calara..
Pelos vistos alguém o autorizou, agora, a conceder uma
entrevista ao jornal Angolense. Vale a pena atentar nalgumas das
mensagens que pretende fazer passar e se destinam quer a exaltar a sua pessoa,
quer a apoiar certas versões dos acontecimentos.
Primeira: Afirma que a manifestação do 27 de Maio era de
populares armados, que teriam atacado o Palácio e tomado a Rádio. É um facto que
a Rádio terá sido tomada por militares. Mas os manifestantes que se dirigem,
primeiro para o Palácio, depois para a Rádio, como o comprovam inúmeros
testemunhos e inclusive imagens televisivas, estavam desarmados.
Segunda: Coloca a polícia a defender o Palácio e a disparar
sobre os manifestantes, como se não existisse uma Guarda
Presidencial.
Terceira: Aponta José Van Dunem como o dirigente da insurreição, quando existem múltiplos testemunhos a provar que, tanto ele como Nito Alves, estavam presos no dia anterior.
Quarta: Cauciona os fuzilamentos sumários de Nito Alves, Monstro Imortal e Bakalov, que moralmente sabiam que seriam fuzilados, razão por que pouco temos de reclamar destes.
Quinta: Diz que Petroff foi para o hospital por sua ordem e transportado pelo seu motorista. Isto quando o secretário-geral do MPLA, assim como dois quadros destacados da DISA, afirmam ter aquele militar sido libertado por Melo Xavier.
Sexta: Fala da reunião do Bureau Político que expulsara Nito Alves e José Van Dunem, confundindo este órgão com o Comité Central, que nada deliberara.
Terceira: Aponta José Van Dunem como o dirigente da insurreição, quando existem múltiplos testemunhos a provar que, tanto ele como Nito Alves, estavam presos no dia anterior.
Quarta: Cauciona os fuzilamentos sumários de Nito Alves, Monstro Imortal e Bakalov, que moralmente sabiam que seriam fuzilados, razão por que pouco temos de reclamar destes.
Quinta: Diz que Petroff foi para o hospital por sua ordem e transportado pelo seu motorista. Isto quando o secretário-geral do MPLA, assim como dois quadros destacados da DISA, afirmam ter aquele militar sido libertado por Melo Xavier.
Sexta: Fala da reunião do Bureau Político que expulsara Nito Alves e José Van Dunem, confundindo este órgão com o Comité Central, que nada deliberara.
E finalmente, como não podia deixar de ser, exalta a cada passo
o seu papel nos acontecimentos, referindo ter lutado na clandestinidade durante
12 anos e 7 meses, quando, de facto, ninguém viu um simples panfleto que
atestasse tal luta. Aliás, Vítor Geitoeira, quadro da DISA, é peremptório ao
declarar: - Esteve no Zaire. Assim, misturando verdades com mentiras, Luís
dos Passos procura servir todos aqueles que, de facto, não têm interesse no
apuramento da verdade.
Intervenção de Agostinho Neto
Agostinho Neto (foto Net)
Cerca das 14 horas, Agostinho Neto, presidente da República,
faz a sua primeira intervenção. Nesta, como nas outras intervenções, estará
sempre sentado numa cadeira de baloiço. Em tom grave, informa o país de que
destacados membros da direcção política e das forças armadas tinham tentado
manifestar pela força das armas o seu descontentamento pelas sanções
disciplinares que lhes tinham sido aplicadas pelo Comité Central do MPLA.
Moderado e conciliatório, apela ao diálogo e à razão, embora conclua:
Eles foram expulsos e, na minha opinião, foram muito
bem expulsos do Comité Central. E terão de fazer um grande trabalho de
reabilitação para poderem regressar às fileiras do Movimento como
dirigentes.
Na sua segunda mensagem televisiva, pelas 18 horas, o
presidente da República informa terem sido detidos pelos nitistas alguns
altos dirigentes civis e militares. E como que adivinhando as mortes, declara:
Não sabemos se estão mortos, se estão vivos. São camaradas que deram toda uma
vida para a liberdade do povo de Angola e que não sabemos bem onde estão, porque
foram raptados, foram levados para lugares que nós não conhecemos bem. Os corpos
serão encontrados, se estiverem mortos. Eles serão encontrados se estiverem
vivos.
No dia seguinte, o presidente da República Popular de Angola
profere a sua terceira mensagem televisiva. Anuncia que os responsáveis
políticos e militares desaparecidos tinham sido mortos.
Hoje, cumpre-me o doloroso dever de comunicar ao país e ao povo
angolano que os camaradas
Dangereux, comandante Paulo da Silva Mugongo,
membro do Comité Central do MPLA, membro do Estado-Maior das FAPLA e do Conselho
da Revolução; o comandante Eugénio Veríssimo da Costa (Nzaji), membro do
Comité Central do MPLA, do Estado-Maior das FAPLA e do Conselho da Revolução; o
major Saidy Mingas, membro do Comité Central, ministro das Finanças da República
Popular de Angola e membro do Conselho da Revolução; o comandante Enrico Manuel
Correia Gonçalves, membro do Estado-Maior das FAPLA e do Conselho da Revolução;
Hélder Ferreira Neto, membro da DISA, foram assassinados ontem. Os fraccionistas
não hesitaram em matar os nossos camaradas, em matar os nossos compatriotas.
Diz pensar que o povo compreenderá a razão que leva a agir com cena
dureza em relação a indivíduos que agiram de má fé. E promete expedita acção
contra os que actuaram de maneira tão evidentemente fascista.
Agostinho Neto fora poeta e médico, era presidente da República
de Angola. O poeta cantara: Amanhã / entoaremos hinos à liberdade / Nós vamos
em busca de luz / os teus filhos Mãe / (todas as mães negras / cujos filhos
partiram) / Vão em busca de vida.
O médico jurara pela sua própria honra, solene e livremente,
consagrar a vida ao serviço da Humanidade e manter o mais elevado respeito pela
vida humana. Finalmente, o presidente da República jurara respeitar e fazer
respeitar a Lei Constitucional aprovada por aclamação pelo Comité Central do
MPLA. Jurara, pois, respeitar e proteger a pessoa e a dignidade humanas, a
vida, a liberdade, a integridade pessoal, o bom nome e a reputação de cada
cidadão (artigo 17.°). Tal como jurara que nenhum cidadão seria preso e
submetido a julgamento senão nos termos da lei, sendo garantido a todos os
arguidos o direito à defesa (artigo 23.°).
É facto que o poeta teria deixado de o ser. Como já se
disse, [...] escrito, tinha apenas um poema pequenino, que compôs durante uma
reunião com camaradas, antes da independência.
O médico também deixara de exercer. Quando ao presidente da
República, subitamente esquecido do que jurara, afirma dispensar o poder
judicial, o que, no século XX, ainda nenhum chefe de Estado se atrevera a dizer.
Mas Agostinho Neto declarou: Não haverá contemplações [...] Certamente não
vamos perder tempo com julgamentos. Seremos o mais breve possível.
Acabava de atear o rastilho para a mais brutal das
repressões.
O TERROR
Uma vaga de terror vai abater-se sobre Angola. E começa logo na
noite de 27 de Maio de 1977.
Os dias seguintes
Onde estavam os principais dirigentes políticos e militares do
país? Neto encontrava-se no Futungo de Belas, Iko estava em parte incerta, Lara,
segundo consta, no Lubango, a preparar-se para entrar na Namíbia. N'dalu no
Vietname. Apesar das ausências, a máquina repressiva começou logo a funcionar.
Na noite de 27 de Maio, há rusgas enormes no Sambizanga, no Rangel e noutros
muceques da cidade de Luanda. Em todo o país começam a ser executadas centenas
de pessoas, ligadas ao grupo de Nito Alves ou simplesmente suspeitas.
Desencadeiam-se ajustes de contas pessoais, frequentemente com denúncias
fantasiosas, logo aceites pelas forças da ordem.
São particularmente atingidas pela repressão as organizações de
massas do MPLA (as mulheres, a juventude e os sindicatos), as Forças Armadas
(especialmente as tropas de elite da 9.a Brigada), a DISA (polícia
política), a Polícia Militar e a Polícia de segurança Pública, a administração
pública, os ministérios. E, também, os estudantes e intelectuais: na Huíla, o
principal dirigente político manda prender todos os que tinham concluído a 5."
classe do ensino oficial, considerando-os inimigos de classe.
O Bureau Político do MPLA afirma que todos os órgãos do Poder
Popular, incluindo as Comissões de Bairro, estavam infiltrados pelos
«fraccionistas». O poder rapidamente se torna intolerante e policial. Ao
entrarem no Ministério da Defesa, os detidos deparam com uma enorme queima de
livros de Marx, Engels e Lenine, apreendidos nas casas invadidas. E os presos
dados como operacionais eram colocados numa cave, onde nem sequer tinham onde
fazer as suas necessidades. Foram barbaramente espancados.
O oficioso Jornal de Angola, a rádio e a televisão
instilam o ódio e o revanchismo. O Jornal de Angola publica editoriais
intitulados: Não pode haver tolerância com os fraccionistas, Encontrá-los e
prendê-los, Vingar os heróis, Fuzilar os fraccionistas. Anuncia, ainda, que
os presos tinham começado a «confessar» o propósito de derrubar o regime, a sua
ligação ao estrangeiro e o seu racismo.
A Rádio Nacional difunde insistentemente spots com as
palavras de ordem: Mataram os nossos camaradas, não há contemplações,
Agarrem-nos e amarrem-nos já. A televisão, por seu lado, mostra durante dias
a ambulância e os corpos dos dirigentes mortos. E no dia 30 de Maio, exibe Pedro
Fortunato, o presidente da Câmara de Luanda, com a cara inchada, dizendo que era
um criminoso, pois tentara matar o presidente Agostinho Neto. A visão dos
vencedores transparece na longa metragem intitulada Anatomia, Fisiopatologia
e Autópsia de Um Golpe, onde, apesar dos cuidados postos na montagem, se
evidenciam as condições desumanas em que se encontram os detidos.
No Jornal de Angola o presidente Agostinho Neto insiste
Quero garantir que os criminosos não serão perdoados.
No dia 30 de Maio, o Governo põe em circulação novos táxis
Mercedes Benz, de cor amarela. E surgem alimentos no mercado. Tais
medidas davam a entender que os fraccionistas impediam a chegada dos
alimentos e a introdução de novos meios de transporte. No dia 31 de Maio,
aumenta o número de militares nas ruas. Vêem-se soldados jovens e alguns
mestiços e brancos. Estes têm fardas novas e são já de idade. As buscas são
coordenadas por mestiços.
Em vários serviços fazem-se reuniões contra os
fraccionistas. A reunião no Ministério das Pescas é presidida pelos
responsáveis da célula do MPLA. O próprio ministro se senta na assistência. É
apresentada uma resolução contra os canibais Nito Alves e José Van Dunem,
resolução aprovada sem votação. A repressão estende-se a todo o país.
No dia 27 de Maio, entra no Uíje uma coluna militar, dirigida
pelo comandante Diogo Paulo Francisco. Era o Dangereux da l.a
Região Militar, onde fora, no tempo colonial, comandante da Zona B, de que o
comissário político era Eduardo Ernesto Gomes da Silva (Bakalov), eleito
para o Comité Central do MPLA, em 1974. No dia seguinte, ao fim da tarde,
aterrou um avião com Julião Mateus Paulo (Dino Matross), acompanhado por
Paulo Lara (filho de Lúcio Lara). Passadas duas horas, este foi chamar o médico
Carlos Cavaleiro, a quem Dino Matross pediu que observasse Dangereux,
a arder em febre. Foi medicado. E no dia seguinte levaram-no para Luanda,
sob prisão.
Começam a ser organizados por todo o país comícios de apoio a
Agostinho Neto. No Uíje, o comício realizou-se no campo de futebol. Bernardo
Ventura (Ho Chi Minh), membro do Comité Central do MPLA, chega num carro
da polícia e abre o comício. Vários oradores manifestam o seu apoio ao
presidente. Ho Chi Minh encerra o comício, declarando estar ao lado de
Agostinho Neto. A polícia leva-o, depois, ao aeroporto, donde segue para Luanda,
sob prisão.
O enviado especial de O Jornal fala duma onda
repressiva desencadeada por Agostinho Neto e pelos que lhe estavam mais
próximos. Refere os soldados que, em cada esquina, revistam automóveis e
identificam peões, as rajadas de metralhadora que se ouvem de vez em quando, o
vaivém constante de transportes militares, as rusgas gigantescas nos muceques, a
actuação em larga escala da polícia política (DISA) nos meios intelectuais e
estudantis, as prisões que se enchiam, o recolher obrigatório, a proibição do
envio de notícias para o estrangeiro. Destaca os spots radiofónicos com
violentos ataques aos fraccionistas, alternando com frases dos discursos
de Neto e palavras de ordem do MPLA: É preciso encontrá-los, amarrá-los e
fuzilá-los, grita-se na rádio e na televisão.
A Luta,
por seu lado, escreve: As prisões enchem-se de
novo. Os luandenses trocam telefonemas ansiosos, procurando localizar
conhecidos. A resposta mais frequente era Foi fazer uma viagem a Cuba,
o que significava que fora preso ou fuzilado ou, na melhor das hipóteses,
seguira para um campo de concentração. Sob o título genérico de Bater no
Ferro Quente, o Jornal de Angola publica uma série de editoriais. A
necessidade de reaquecer o ferro para o bater decorria, segundo o
editorialista Costa Andrade (Ndunduma we Lepi), do recrudescimento da
reacção interna, que recorria ao boato. Boato que incidia, em primeiro
lugar, no estado de saúde de Agostinho Neto, então na União Soviética. Virá a
ser-lhe detectado um cancro no pâncreas.
Em Agosto de 1977, a emissora católica Rádio Eclésia,
encerrada na sequência do 27 de Maio, continua sem emitir. E uma Nota
Pastoral declara arbitrária a detenção e prolongada prisão de sacerdotes por
suspeitas gratuitas, jamais provadas. Os bispos enviam um pensamento de simpatia
e de solidariedade para com os raptados e detidos nas prisões. Agostinho Neto
vai a Cuba, em Agosto de 1977, em companhia dos membros do Comité Central,
Henrique Santos (Onam-bwe), vice-chefe da DISA, e Hermínio Escórcio,
chefe do protocolo da Presidência. No apogeu do terror, terão ido agradecer o
contributo dos soldados cubanos para esmagar as acções encabeçadas por
nitistas.
Motivos para se ser preso
Os motivos para se ser preso em Angola, nos dias a seguir ao 27
de Maio, podiam ser os mais diversos e estranhos. O possuir bens que eram motivo
de cobiça, o ser conhecido, amigo ou familiar de um fraccionista, o ter
manifestado desgosto com a forma como as coisas corriam, o ter tido a pouca
sorte de estar na rua, o ser militar ou intelectual e estudante, grupos sociais
que tinham manifestado apoio aos nitistas ou eram críticos.
Num relatório com as conclusões do interrogatório feito a cerca
de meia centena de portugueses expulsos de Angola, quase todos declaram ter sido
bastante maltratados. Falam das más condições da prisão, da péssima alimentação
e da inexistente assistência médica. Alguns terão sido detidos com base em
denúncias anónimas. E dezena e meia atribuem a detenção ao facto de elementos da
DISA pretenderem apoderar-se dos seus bens.
Os militares vindos da frente de combate e chegados a Luanda a
seguir ao dia 27 eram presos e enviados, sem qualquer processo, para campos de
concentração. Muitos dos que morreram, nem
sequer sabiam quem era Nito Alves. E eram muitos os que tinham
menos de 18 anos. Entre os detidos contam-se, até, soldados que nem estavam em
Angola no dia 27 de Maio, mas sim em Cuba ou na União Soviética, em
tratamento.
Um professor português de Economia, um cooperante casado com
uma holandesa, deu uma aula sobre a «Administração do Território». E lembrou-se
de convidar o ministro da Administração Interna. Azar o dele, pois o ministro
era Nito Alves. Acabou preso na Cadeia de S. Paulo, como implicado no golpe.
Houve pessoas que foram presas e até mortas, porque eram amigos ou parentes
afastados. Pior, quando eram parentes próximos.
Bernardo Panzo Ngongo, então com 92 anos, esteve preso durante
nove meses. Era o pai de Nito Alves. Entrevistado quando tinha 115 anos, disse
ao jornalista que o filho lhe dissera ter pretendido fazer uma manifestação e
não um golpe. Prenderam muitas mulheres e amigos. Depois, insurgiam-se contra o
facto de as mulheres dos ditos fraccionistas estarem grávidas ou terem
filhos muito pequenos, o que dificultava a permanência na prisão.
O simples facto de se ter manifestado contra os fumos de
corrupção que grassavam no país ou de estar desgostoso com a forma como
as coisas corriam era suficiente para ser alvo da repressão. Parecia haver a
intenção de afastar ou mesmo liquidar todos os que pensavam, todos os que podiam
ser opositores. De modo que os soldados entravam nas casas perguntando onde
estavam os intelectuais ou os estudantes. E acabaram por matar muitos.
As prisões podiam atingir as mais insuspeitas pessoas. Por
exemplo, os membros da Comissão de Inquérito, autores de um relatório
inconclusivo. A advogada Maria do Carmo Medina, vice-presidente da Comissão, foi
afastada do Comité Regional de Luanda e terá sido colocada sob residência fixa.
Contudo, fora interrogada e esteve para ser presa.. O presidente da
referida comissão, José Eduardo dos Santos, membro do Bureau Político e
vice-primeiro-ministro, também terá estado para ser atingido. Pelo menos, na
Cadeia de S. Paulo, um dos responsáveis pelos interrogatórios, o antigo
comandante da FNLA, Silva Margoso, agora no MPLA, dizia, alto e bom som, que
agora só faltava prender Lopo do Nascimento e José Eduardo dos Santos. Ao que
parece, foi salvo por Belarmino Van Du-nem, comissário provincial do Lubango,
onde se refugiara.
Meses depois, dará o dito por não dito, declarando que
felizmente, o abcesso do fraccionismo rebentou ainda nos primeiros dias de
preparação do Congresso, tendo ficado no MPLA os melhores militantes..
Entretanto, os heróis de ontem passavam a vilões, objecto das mais variadas
acusações. Dos membros do Comité Central do MPLA, Agostinho Neto dirá que
chegavam às reuniões e, em vez de discutir os problemas que eram inscritos na
ordem de trabalhos, pegavam num livro e punham-se a ler à socapa. E mais
adiante afirma que tomavam nota de tudo (... ) para depois criticarem quem
interviesse..
Presos por ter cão, presos por não o ter. Nito Alves, José Van
Dunem e Eduardo Ernesto Gomes da Silva (Bakalov) tinham apoiado Agostinho
Neto no Congresso de Lusaca. E mal podiam adivinhar que, poucos anos depois,
seriam acusados pelo facto de a sua eleição para o Comité Central do MPLA ter
sido fruto de uma actividade de grupo. Quanto aos presos de S. Nicolau,
que não pactuavam com o colonialismo e encabeçavam lutas no campo de
concentração, tinham passado a ser um núcleo elitista, que não conseguia
ultrapassar os seus preconceitos pequeno burgueses. Nem mais.
César Augusto (Kiluanji), um dos poucos comandantes da
1." Região Militar que terá escapado à repressão, na sua Trajectória da Vida
de Um Guerrilheiro, apressou-se a render homenagem aos vencedores. Segundo
ele, João Jacob Caetano (Monstro Imortal) traíra a revolução por ambição.
E os contactos de Nito Alves em Luanda, em Fevereiro de 1974, onde buscava ajuda
para a 1." Região, são apresentados como passando por cima das normas da
clandestinidade e impelido pela vontade de alcançar objectivos
pessoais.
Décadas volvidas, um livro que nos chegou às mãos mas parece
não ter sido vendido, refere os que pretendiam eliminar todos os responsáveis
político-militares da 1.ª Região. E denuncia os crimes cometidos. Recentemente,
Maria Eugenia Neto, a viúva do falecido presidente, faz-se porta-voz duma velha
acusação formulada contra João Jacob Caetano, ao declarar que o objectivo de
Monstro Imortal era matar o presidente. Jacob Caetano, membro do
Bureau Político e figura de topo na hierarquia militar, tinha acesso directo a
Agostinho Neto. Para que precisaria do dia em que se convocava uma manifestação
e em que estava prevista certa agitação militar, para cumprir aquele propósito?
A acusação não tem pés para andar. O que leva, então, a repeti-la, 30 anos
depois?
Rui Coelho, finalista de Direito e membro do gabinete do
primeiro-ministro Lopo do Nascimento, encontrava-se em Argel no dia 27 de Maio
de 1977, onde integrava uma delegação governamental. Pois, mesmo assim, foi
acusado de pertencer ao estado-maior dos «golpistas». E tendo regressado a
Angola no dia 3 de Junho, foi preso e fuzilado. Em seu nome foram emitidas duas
certidões de óbito: a primeira a 2 de Junho de 1977 (quando ainda não estava
morto), a segunda a 2 de Julho de 1977.
Os nitistas não tiveram as mínimas garantias de defesa,
pois nem sequer foram julgados. E, no entanto, os mercenários que invadiram
Angola tiveram essas garantias, asseguradas pela Lei n.° 7/76 de l de Maio, que
estruturara o Tribunal Popular Revolucionário. Claro que, em Angola, também
teria sido criado um Tribunal Militar Especial (ou vários), presidido por Luís
Miguel Neto (Xietu) e supervisionado por Iko Carreira, Rodrigues João
Lopes (Ludi Kissassunda) e Henrique Santos (Onambwé). Só que nunca
efectuou qualquer julgamento, com advogados, testemunhas e público. Nem se deu
ao trabalho de encenar julgamentos, como o fizeram certas ditaduras. E alguns
dos fuzilados até eram membros da Direcção do MPLA e quadros superiores da
hierarquia militar.
De resto, aplicavam-se penas sem que os presos sequer tivessem
sido interrogados e mesmo sem ter sido levantado processo. Um dos poucos
militares da 9.* brigada que sobreviveram ao 27 de Maio, preso em Junho de 1977,
só em Julho de 1980, isto é, três anos depois, foi solto. Nunca foi julgado. Mas
foi condenado a três anos de prisão maior, por ter participado
ideologicamente.
Em 1979, será criado um Tribunal Revolucionário Popular, para
rever os processos. Era habitual o presidente da República de Angola investir
juízes. Que até apareciam togados, embora, em muitos casos, fossem
iletrados355. A um preso que estava num campo de concentração dão um
papel, em que se diz: Posto em liberdade no dia 17 de Agosto de 1979, por
deliberação da Comissão de Revisão junto deste Tribunal, devendo apresentar-se
no seu local de trabalho. Estivera dois anos detido, na Cadeia de S. Paulo e
em vários campos de concentração. E como tantos colegas seus, ainda hoje não
sabe porquê. Tomara conhecimento dos acontecimentos do 27 de Maio pela rádio,
não tendo participado em nada.
A HERANÇA DO 27 DE MAIO DE 1977
Pag.183/185. A repressão do 27 de Maio atingiu
milhares de famílias. E Angola perdeu muitos dos seus melhores quadros:
combatentes experimentados em mil batalhas, mulheres combativas, jovens
militantes, intelectuais e estudantes universitários. O próprio MPLA ficou sem
uma larga fatia da sua base social e política, designadamente sem vastos
sectores da juventude urbana. E mesmo nas fileiras dos «fiéis» se criou um
espírito de inibição. De modo que as células se tornaram meras caixas de
ressonância das decisões superiores.
Isto significa que o debate político praticamente desapareceu. Este debate, particularmente animado e rico de 1974 a 1976, estiolou e desapareceu nas organizações de massas e nos bairros. E desapareceu, igualmente, na vida interna do MPLA, onde qualquer crítica se arriscava a receber o carimbo de fraccionismo ou mesmo de traição à pátria. Impôs-se no país um clima de medo e de violência. Falar dos acontecimentos do 27 de Maio passou a ser tabu. Na própria Universidade, se alguém se propunha fazer um trabalho sobre o tema era desaconselhado. Não havia documentos, diziam. E eram fraccionistas. Ponto final!
Isto significa que o debate político praticamente desapareceu. Este debate, particularmente animado e rico de 1974 a 1976, estiolou e desapareceu nas organizações de massas e nos bairros. E desapareceu, igualmente, na vida interna do MPLA, onde qualquer crítica se arriscava a receber o carimbo de fraccionismo ou mesmo de traição à pátria. Impôs-se no país um clima de medo e de violência. Falar dos acontecimentos do 27 de Maio passou a ser tabu. Na própria Universidade, se alguém se propunha fazer um trabalho sobre o tema era desaconselhado. Não havia documentos, diziam. E eram fraccionistas. Ponto final!
Em Novembro de 1977, um telegrama da Embaixada de Portugal em
Luanda assinalava a tendência para uma maior centralização do poder, para o
autoritarismo, com a correlativa menor possibilidade de expressar pontos de
vista diferentes e posições políticas que reflectissem a diversidade das camadas
sociais existentes. Vingou, pois, a máxima centralização do poder, a velha
incapacidade de dialogar e de construir consensos.
A situação económica, que já se vinha degradando, piorou.
Aumentou a inoperância da burocracia na gestão do sistema produtivo. E
desenvolveu-se a corrupção. Uns punhados, com o tráfico e com a guerra,
tornaram-se cada vez mais ricos. Em contrapartida, as grandes massas foram
ficando cada vez mais pobres. A capital de Angola, apenas beliscada pela guerra,
é um retrato da inoperância da burocracia dirigente e um espelho fiel dos
enormes contrastes sociais. Luanda apresenta-se aos olhos do visitante,
conhecedor da cidade a partir dos postais do tempo colonial, como uma «cidade
desfeita». Nos prédios, os elevadores há muito deixaram de funcionar. E os
dejectos, correndo ao longo das paredes dos prédios, abrem estranhos e tortuosos
caminhos.
Como que somos transportados para um burgo medieval europeu. As
ruas perderam o asfalto. E, em muitos lados, os esgotos correm a céu aberto.
Jovens e idosos vasculham nos caixotes do lixo à procura de restos de comida.
Impressiona a miséria desmesurada, num contraste gritante com os carros de luxo
dos últimos modelos, a passarem pelo meio de deficientes de guerra, de homens e
de mulheres famintos, de dezenas de jovens em idade escolar carregando nas mãos
produtos que tentam vender à força a quem passa.
Ilhotas de guardados condomínios de luxo são cercadas por um
mar de muceques. O lixo está por todo o lado, e a cidade parece não poder viver
sem ele. No Roque Santeiro, filas dos mais variados produtos erguem-se num mar
de lixo. Viana, em tempos um pólo industrial, está abandonada e decrépita. E nos
arredores da cidade, Kifandongo, monumento da resistência, alberga pessoas a
viverem nos buracos da falésia, numa miséria confrangedora.
Muitos dos «libertadores» sonhavam com a casa, o carro, os
privilégios e as posições dos colonos. Conquistaram-nas e tornaram-se piores do
que estes. Desculpar-se-ão com a guerra. Só que a guerra, que tantos matou e
estropiou, alimentou um punhado de pessoas, que se tornaram insultuosamente
ricas. Os vencedores do 27 de Maio parece terem conseguido o milagre de fazer
desaparecer os que sonhavam com um futuro melhor, mais igualitário e fraterno
para os Angolanos. E conquistado o poder e os seus benefícios, como que
realizaram os seus sonhos libertadores.
Como confessou o próprio Iko Carreira, vingou a procura,
desenfreada e desordenada do lucro fácil, uma enorme e galopante
corrupção, um capitalismo selvagem. Num país com enormes riquezas
naturais e com condições agrícolas que permitiriam alimentar toda a África, mais
de metade da força de trabalho está desempregada e mais de dois terços da
população vive abaixo da linha de pobreza. Ganham plena actualidade as acusações
feitas há meio século por Frantz Fanon, o psiquiatra afro-americano que esteve
ao lado dos combatentes argelinos, o teórico da revolução no Terceiro Mundo.
Pegando nas suas palavras, bem podemos dizer que povo angolano estagna
lamentavelmente numa miséria insuportável, perdendo a consciência da
traição inqualificável dos seus dirigentes [...]A nova casta torna-se insultuosa
e revoltante, dado que a imensa maioria [...] da população continua a morrer de
fome.
1 comentário:
Este é o retrato dos libertadores em qualquer revolução socialista que teve lugar neste planeta.
Da Rússia à Coreia do Norte; da China à Venezuela;de Cuba a Angola.
O pior inimigo do homem é a idiotice - e as revoluções vivem de idiotas.
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