DEZA
TRAVERSE - Mia Couto
16
de Junho de 2005
Moçambique
– 30 anos de Independência
No passado, o futuro era
melhor?
Nasci e cresci numa pequena cidade colonial, num mundo
que já morreu. Desde cedo, aprendi que devia viver contra o meu próprio tempo.
A realidade colonial estava ali, no quotidiano, arrumando os homens pela raça,
empurrando os africanos para além dos subúrbios. Eu mesmo, privilegiado pela
minha cor da pele, era tido como um “branco de segunda categoria”. Todos os
dias me confrontava com a humilhação dos negros descalços e obrigados a
sentarem-se no banco de trás dos autocarros, no banco de trás da Vida. Na minha
casa vivíamos paredes- meias com o medo, perante a ameaça de prisão que pesava
sobre o meu pai que era jornalista e nos ensinava a não baixar os olhos perante
a injustiça. A independência nacional era para mim o final desse universo
de injustiças. Foi por isso que abracei a causa revolucionária como se fosse
uma predestinação. Cedo me tornei um membro da Frente de Libertação de Moçambique
e a minha vida foi, durante um tempo, guiada por um sentimento épico de
estarmos criando uma sociedade nova.
No dia da Independência de Moçambique eu tinha 19
anos. Alimentava, então, a expectativa de ver subir num mastro uma bandeira
para o meu país. Eu acreditava, assim, que o sonho de um povo se poderia
traduzir numa simples bandeira. Em 1975, eu era jornalista, o mundo era a minha
igreja, os homens a minha religião. E tudo era ainda possível.
Na noite de 24 de Junho, juntei-me a milhares de outros
moçambicanos no Estádio da Machava para assistir à proclamação da Independência
Nacional, que seria anunciada na voz rouca de Samora Moisés Machel. O anúncio
estava previsto para a meia-noite em ponto. Nascia o dia, alvorecia um país.
Passavam 20 minutos da meia-noite e ainda Samora não emergira no pódio. De
repente, a farda guerrilheira de Samora emergiu entre os convidados. Sem dar
confiança ao rigor do horário, o Presidente proclamou: “às zero horas de hoje,
25 de Junho...“. Um golpe de magia fez os ponteiros recuarem. A hora ficou
certa, o tempo ficou nosso.
Não esqueço nunca os rostos iluminados por um
irrepetível encantamento, não esqueço os gritos de euforia, os tiros dos
guerrilheiros anunciando o fim de todas as guerras. Havia festa, a celebração
de sermos gente, termos chão e merecermos céu. Mais que um país celebrávamos um
outro destino para nossas vidas. Quem tinha esperado séculos não dava conta de
vinte minutos a mais.
Trinta anos depois poderíamos ainda fazer recuar os
ponteiros do tempo? A mesma crença mora ainda no cidadão moçambicano? Não, não
mora. Nem podia morar. Em 1975, nós mantínhamos a convicção legítima mas
ingénua de que era possível, no tempo de uma geração, mudarmos o mundo e
redistribuirmos felicidade. Não sabíamos quanto o mundo é uma pegajosa teia
onde uns são presas e outros predadores.
Trinta anos é quase nada na história de um país.
Estamos já distantes da injustiça colonial. Mas estamos ainda longe de cumprir
o sonho que nos fez cantar e dançar na noite de 25 de Junho. Uma parte dessa
expectativa ficou por realizar. Hoje já não acorreríamos com a mesma fé para
celebrar uma nova anunciação. Mas isso não quer dizer que estamos menos
disponíveis para a crença. Estaremos, sim, mais conscientes que tudo pede um
caminho e um tempo.
Poderemos recorrer a explicações, apontar dedos
acusadores. Tudo isso será pouco produtivo. Não se pode esperar que um país
saído do atraso da dominação colonial possa realizar aquilo que velhas nações
independentes estão ainda construindo. Moçambique está aprendendo a ser
soberano num mundo que aceita muito pouco a soberania dos outros. O céu que
parecia infinito foi ficando estreito para as chamadas pequenas bandeiras.
No mesmo ano em que se desintegrava o império colonial
português, em 1975, os Estados Unidos da América eram derrotados no Vietname. O
tempo parecia correr a favor dos povos “pequenos”, capazes de enfrentar a
arrogância dos poderosos. Essas vitórias criaram a ilusão de que um mundo mais
justo estava despontando. Mas o sistema mundial cedo se reajustou desses
revezes. A Independência de Moçambique teve que enfrentar uma dualidade:
representou uma ruptura com o colonialismo mas, ao mesmo tempo, funcionou como
um passo para uma maior integração num sistema capitalista que se globalizava.
A essa condição ambivalente não poderíamos escapar.
Meus senhores e
minha senhoras,
Caros amigos
No meu romance Terra Sonâmbula criei um personagem
que, por nascer no dia da Independência, a vinte e cinco de Junho, foi baptizado
de Junhito. A história decorre no decurso da nossa guerra civil que se
prolongou durante 16 anos.
Certa noite, o pai de Junhito é assaltado por um
pressentimento: o seu filho iria morrer em breve. Era isso o que a guerra
reclamava: a morte desse que nascera em Junho. Para salvar o filho, a família
resolveu transferi-lo para a capoeira que ficava no quintal. Ali Junhito
aprenderia a comportar-se como as galinhas, comendo as sobras e dormindo ao
relento. Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem substância.
Junhito foi-se tornando numa sombra e, em casa, os
familiares estavam proibidos até de mencionar o seu nome. A mãe, mesmo ela,
parecia conformada. Contudo, às escondidas da noite, ela visitava a capoeira.
Sentava-se no escuro e cantava uma canção de embalar, a mesma que servira para
adormecer os outros irmãos. Junhito, de início, acompanhava a mãe no canto. Mas
depois, o menino já nem sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóós
e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim adormecia, sonhando que, certa
vez, teria sido um homem.
A metáfora no romance é simples, quase linear. Na
altura, eu denunciava a nossa progressiva perda de soberania, e uma crescente
domesticação do nosso espirito de ousadia. Poderíamos ser nação mas não
demasiado, poderíamos ser povo mas apenas se bem comportado.
Num processo difícil
e conflituoso, Moçambique criou a reputação de ser um caso de excepção em
África. Esse bom-nome, devo dizer, é merecido. Esse prestígio foi conquistado,
não é uma prenda de nenhum paternalismo. Fomos capazes de produzir a Paz. Fomos
capazes de criar democracia formal, de construir estabilidade e de garantir
liberdades de expressão e de pensamento. Tenho orgulho nesse processo. Mas
tenho também receio. Porque o caminho que percorremos não foi exactamente
escolhido por nós, nem está sendo testado à medida da nossa vontade. O nosso
êxito não pode continuar a ser medido apenas pelo sucesso da aplicação de um
directório de receitas políticas e financeiras. Ao contrário, deveríamos ser
valorizados pelo modo como repensamos criativamente o nosso lugar no mundo.
Nos gloriosos anos da luta de libertação nós
gritávamos “Independência ou Morte, Venceremos”. Hoje sabemos: a independência
não é mais do que a possibilidade de escolhermos as nossas dependências. Na
década de 70, o mundo oferecia a possibilidade de diferentes opções e alianças
estratégicas. Hoje as economias nacionais perfilam-se perante um modelo sem
alternativa. Escolhemos o que outros escolheram por nós. Uma parte da nossa
alma foi já, mesmo sem o sabermos, conduzida para a capoeira e ali esquece a
irreverência, a originalidade e o desejo de ser único.
A redução da soberania não é um processo que esteja
atingindo especificamente Moçambique. É um processo generalizado. Todas nações
são hoje menos nacionais, todo o cidadão é menos dono do se mesmo. Uns dizem
que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser do mundo se não tiver a sua
pequena aldeia.
COMO A EUROPA VÊ ÁFRICA
Os continentes são, sobretudo, representações feitas e
refeitas de acordo com os tempos. A África de hoje é uma co-produção
euro-afro-americana. A versão mais recente dessa co-produção é marcada pela
morte e decadência. Cadeias de TV estão confirmando essa agonia, entre doenças
e guerras. O excesso de imagens dos dramas de África teve um efeito perverso: o
continente deixou de ser visível. Perdeu visibilidade porque tudo parece estar
já visto. Aos olhos do resto do mundo, África (ou uma parte dela) deixou de
existir. Do mapa cor-de-rosa se passou ao monocromático mapa do desespero.
O apocalipse africano esteve demasiado tempo na
montra, foi excessivamente filmado, fotografado, torcido e retorcido para uso
da compaixão. Deixou de existir disponibilidade para entender o que está por
detrás dessas imagens. Afinal, a fome a guerra são apenas os sinais de uma
tragédia mais funda e mais antiga. Essa tragédia assenta em razões internas mas
assenta também no lugar periférico de África e nas trocas desiguais do comércio
internacional.
Uma certa esquerda europeia transitou da simpatia para
um pessimismo militante. A lágrima solidária foi substituída pela indiferença e
pelo descrédito. Os africanos, por seu turno, foram eternizando um sentimento
de culpabilização dos outros, acreditando tratar-se da continuação de um
“complot” antigo para os dizimar.
De um e outro lado, se acumularam desilusões e
impaciências. Uma mesma ignorância do Outro foi transitando ao longo da
História. Aos profetas do socialismo seguiram-se os profetas do neo-liberalismo
agitando apressadas receitas financeiras para salvar os pobres. Mas a pobreza
insiste, teimosa como uma incurável doença que nos devora do outro lado do
Mediterrâneo.
A opção para os países doadores parece simples: dar
mais ou deixar de dar. As recentes notícias mostram que, nos próximos tempos,
se irá dar um pouco mais. Pelo menos em algumas nações terá vencido a
alternativa mais humanitária. Contudo, poucos se interrogarão sobre a
necessidade de mudar a qualidade da relação entre o Norte e o Sul.
COMO NÓS VEMOS A SUIÇA
A Suíça já foi para muitos moçambicanos não um país
mas o nome de uma missão religiosa. A Missão Suiça implantou-se no Sul de
Moçambique, enfrentando terríveis suspeitas do regime colonial português. Henri
Junod foi expulso de Moçambique em 1895 porque ensinava as chamadas “línguas
dos nativos”. O missionário ajudava moçambicanos como Eduardo Mondlane a
moçambicanizarem-se enquanto, nesse processo, ele mesmo se africanizava,
acabando por solicitar que fosse enterrado em terras de Moçambique.
Setenta anos mais tarde, um outro suíço converteu-se
numa figura de dimensão quase mitológica. Tratava-se do médico René Gagnaux,
uma espécie de filantropo da nova vaga, um homem que dedicou a sua vida a
atender os mais pobres. A Suíça, para muitos, era a terra do Gagnaux. Um dos
seus filhos, agora moçambicano, lidera uma das principais forças politicas a
nível da cidade de Maputo.
Hoje temos da Suiça uma percepção mais moderna e
designamo-la por via de um nome curioso: “país doador”. O mundo está hoje
dividido entre os que dão e os que recebem. Como se fosse uma condição natural,
genética, perpétua. Nós, os receptores daquilo que se chama “ajuda” já tivemos
outros nomes: fomos Terceiro Mundo, países em vias desenvolvimento, territórios
do Sul, países sub-desenvolvidos, nações da periferia.
A dança dos nomes não terminou. Agora, no quadro do
politicamente corrigido, nós temos, pela primeira vez, o direito de partilhar
de um mesmo nome: somos ambos, ricos e pobres, chamados de “parceiros”. Este
novo nome é mais simpático mas ele colide com uma questão de princípio: não se
resolve nas palavras aquilo que não está resolvido na substância.
AS MÚTUAS ATRIBUIÇÕES DE CULPAS
O embaixador da Suiça em Moçambique, o meu amigo Dr.
Adrian Hadorn, é testemunha da minha insistente intervenção em Moçambique para
combater a tendência de vitimização por parte dos africanos. Enquanto
continuarmos culpando os europeus pelos nossos próprios falhanços não seremos
capazes de nos olharmos para nós próprios como principal motor da mudança. Assumir
a condição de sujeito histórico: esse era o maior e mais instigante desafio da
Independência Nacional.
É infindável a soma de argumentos para justificar a
cleptocracia e a corrupção dentro de continente africano. Alguns intelectuais
africanos vêm na importação de modelos externos a origem de todos os males.
Esta justificação encontra espaço em alguns doadores. Na linguagem moderna dos
relatórios dos consultores este problema seria assim reportado: “falta de
ownership das reformas estruturais”. Impostas de fora, essas reformas não
poderiam ser implementadas. Mas tudo indica que, ao contrário, parte dessas
reformas foram rápida e profundamente apropriadas por elites nacionais que as
usaram a favor do seu próprio enriquecimento. O problema não parece estar na
origem dos modelos mas na sua natureza política. Os africanos africanizaram a
mandioca. As elites fizeram o mesmo com as reformas estruturais.
Se alguns africanos acham que a culpa é apenas dos
europeus, no sentido inverso, europeus há que acreditam que a culta cabe apenas
aos africanos. Uma relação mais saudável entre uns e outros obrigaria a
rupturas profundas, implicava poder começar de novo. Mas esse retorno ao grau
zero não existe na História. Compete-nos questionar os pressupostos do nosso relacionamento
recíproco.
Elegi para este pequeno texto alguns tópicos soltos.
Não sou economista, sou um escritor cuja paixão reside num mundo que não
existe. Mas não posso focar indiferente perante alguns assuntos que determinam
o nosso destino comum. Eis algumas das interrogações que gostaria de partilhar
convosco.
O falso sentimento de desperdício
A opinião pública na Europa e nos EUA mantém a ideia
de que Africa pode sair da situação de crise se gerir bem os fundos doados. A
ajuda apenas é insuficiente porque é mal usada.
É certo que parte das doações tem sido desviada em
benefício de elites minoritárias. Algumas dessas fortunas roubadas estão aqui,
bem no coração da Europa, na forma de criminosas contas bancárias. Mas a grande
verdade é que, mesmo bem usada, a actual ajuda não resolveria os problemas
vitais das nações empobrecidas. Pelo contrário, o actual quadro da ajuda poderá
estar agravando a condição de miséria do Terceiro Mundo.
Regressemos à ideia dominante de que os valores da
ajuda são astronómicos. Na verdade, é necessário colocar essas quantias no
devido contexto. Os cidadãos americanos acreditam, por exemplo, que o seu país
destina 15 a 20 por cento do seu Orçamento para a ajuda externa. Estão errados.
Os EUA gastam menos de 1 por centro nessa ajuda, uma ninharia comparada com os
milhões que o governo paga por ano aos fornecedores de armamento.
Um escritor sabe contar, não sabe fazer contas. Mas um
economista amigo ajudou-me a fazer umas somas e gostaria de partilhar os
resultados convosco. Com os 175 biliões de USD que os EUA já gastaram na guerra
do Iraque desde Marco de 2003 seria possível fazer o seguinte:
1) Instalar 40.000 pequenas e médias empresas produtivas relativamente modernas e competitivas na África Sub-Sahariana, gerando directamente 12 milhões de novos postos de trabalho com salários e condições de trabalho acima da actual média. Deste modo se arrancaria de forma permanente cerca de 60 milhões de Africanos das malhas da pobreza. Além disto, este investimento tornaria possível às economias africanas tirarem proveito efectivo das oportunidades comerciais que hoje já existem, como sejam o caso do AGOA (comércio preferencial com os EUA) e o EBA (everything-but-arms, comércio preferencial com a União Europeia). Isto significa que num espaço de tempo relativamente curto, o Produto Interno Bruto per capita da África Sub-Sahariana poderia ser triplicado, não à custa de ajuda mas com base em desenvolvimento e crescimento real da economia e uma melhor distribuição do rendimento gerado.
2) Além dessas empresas, com o dinheiro gasto no Iraque seria possível também construir mais 600 escolas técnico-profissionais de alta qualidade, onde poderiam ser formados, todos os anos, cerca de 300.000 trabalhadores qualificados para impulsionarem o desenvolvimento da agricultura, agro-indústria, pesca, indústria, turismo, serviços, etc. Este treinamento permitiria que as empresas mencionadas acima pudessem funcionar bem com força de trabalho qualificada, com repercussões imediatas na produtividade e do nível de vida da maioria dos Africanos.
Ou refazendo as contas: os bilhões de dólares gastos no Iraque são suficientes para empregar mais 4 milhões de professores primários por um ano, ou para imunizar todas as crianças do Mundo contra diferentes doenças por 58 anos, ou para alimentar o Mundo durante os próximos 7 anos, ou ainda para terminar com o flagelo da malária em África e construir 2 milhões de novas habitações básicas.
Estes outros destinos a serem concedidos aos bilhões
de dólares talvez fossem uma forma mais efectiva de combater a insegurança.
Porque há um terror invisível que pode estar alimentando o terrorismo
internacional. Esse é o terror da fome, da pobreza, da ignorância, o terrorismo
do desespero perante a impossibilidade de mudar a vida.
Caros senhores,
Finalmente, quase nenhuma das nações desenvolvidas
cumpriu aquilo que foi estipulado há trinta anos pelas Nações Unidas: destinar
0.7 por cento do seu orçamento para a ajuda externa. Em média, esse apoio não
ultrapassa hoje os 0.25 por cento. Como se pode ver, não são apenas os países
pobres que não estão cumprindo as obrigações internacionalmente assumidas.
O mais grave, porém, é que aquilo que nos é dado numa
mão nos é retirado pela outra mão. Calcula-se que o proteccionismo e os
subsídios retiram aos países pobres 2050 milhões de euros. Ou seja muitíssimo
mais daquilo que é o valor da ajuda. Para além disso, os subsídios agrícolas na
Europa e EUA representam um contra-senso na lógica que nos é imposta em relação
aos mecanismos reguladores da economia. Numa palavra, os profetas do
liberalismo de mercado não fazem em casa aquilo que propalam publicamente.
Mais grave ainda: está provado que 40 por cento do
valor que se acredita dar aos países pobres é destinado a pagar a consultores
internacionais. Na realidade, há hoje mais expatriados em África do que havia
no tempo colonial. Quer dizer: uma parte do dinheiro está sendo absorvido pelo circuito
dos países ricos. Com este dado, o valor da ajuda desce de 0.25 do orçamento
para menos de 0.1 por cento. Afinal, não se está dando tanto quanto os cidadãos
dos países ricos acreditam.
O ciclo perpétuo da divida
Os países africanos estão gastando e continuarão
indefinidamente gastando mais a pagar o serviço da divida do que a investir na
saúde ou na educação. De 1980 a 1990 a totalidade da divida da africa
sub-sahariana mais do que duplicou. Em 1995, as exportações somadas dos países
africanos não chegavam para pagar o serviço da divida. A questão para eles já
não era a de pagar ou não pagar mas de sobreviver ou sucumbir.
Quando houver uma decisão sobre o cancelamento será
demasiado tarde. Alguém já chamou à divida uma “guerra por outros meios”. Essa
agressão silenciosa não aparece na TV mas que é responsável pela morte de meio
milhão de crianças em cada ano. Esta guerra faz da filantropia do Ocidente um
falhanço anunciado e acabará por desacreditar um sentimento tão nobre como a
solidariedade. Os mais miseráveis do continente – a quem se supõe ser destinada
a ajuda internacional - pagarão, em cada ano, mais do que aquilo que estão
recebendo. A verdade é simples: a divida é impagável. Nenhum pais africano
poderá exercer a sua independência sem que esse fardo tenha sido eliminado. Com
este passado não pode haver futuro.
Quando o HIPC se decidiu em 1995 aliviar a divida de
Moçambique nós festejamos. O anúncio do alívio foi feito com pompa e
circunstância, um prémio a celebrar o nosso comportamento ajuizado. Afinal, era
maior a festa que a razão de festejar. De 113 milhões por ano passou a pagar
100 milhões. Essa redução era, afinal, insignificante. Para se qualificar
Moçambique teve que implementar medidas draconianas do Programa de
Reajustamento Económico. Essas medidas tiveram impactos dramáticos no país. O
tão propalado alívio acabou não libertando fundos que poderiam marcar a
diferença no desenvolvimento de Moçambique.
Por outro lado, o que hoje se exige a Moçambique não
se exigiu a países da Europa. Depois da grande Guerra, o chamado London
Agreement aceitou que a Alemanha pagasse a divida acumulada aos aliados a uma
taxa anual equivalente a 3.5 por cento dos seus rendimentos. Mais do que esse
valor era tido como um factor de estrangulamento inaceitável. Porém, mesmo com
a tal redução do HIPC, Moçambique pagará 13.5 % do seu rendimento. O que quer
dizer que estamos pagando 4 vezes mais que se achou aceitável a Alemanha pagar,
numa situação de crise global e em que os preços das matérias-primas estão mais
baixos do que nunca.
Dar aos pobres a mesma chance de experimentar
Os países pobres necessitam ter espaço para realizar
os seus próprios debates e ensaios, experimentarem soluções ao seu próprio
ritmo. Queremos ter a liberdade de, por exemplo, poder decidir qual o melhor
momento para privatizar os serviços públicos. Essa liberdade foi, afinal,
conferida aos europeus.
Instituições financeiras internacionais testaram nos
países pobres fórmulas que se revelaram desastrosas. Parecia simples: tal como
na receita socialista, uma mudança no sistema de propriedade mudaria toda a
estrutura da economia. Produziram em embalagens de aplicação fácil os pacotes
de reajustamento estrutural, formulas miraculosas que nos permitiriam evoluir
queimando etapas.
A Moçambique também foi aplicada a mesma receita.
Todos esses programas obrigaram a elevar preços pelos serviços públicos, a
cortar subsídios e reduzir orçamentos para serviços sociais: toda esta receita
resultou em crescente pobreza e desemprego. Hoje, é generalizado aceitar que
esses programas não correram bem. Quem paga para recompensar os pobres dessa
falhada experiência ?
O caso da castanha de caju de Moçambique é hoje tida como uma ilustração desses falhanços com efeitos catastróficos . Moçambique tinha e tem na castanha de caju um dos seus pilares de exportação. Em poucos anos o sector ficou arruinado, 80 por cento das fábricas fecharam e milhares de operários ficaram sem emprego. De um modo geral, a intervenção na agricultura pautou por uma ingenuidade crassa: a ideia de que intervindo nos preços se acabaria resolvendo tudo o resto.
Os actuais pacotes de redução da pobreza absoluta
poderão ser a simples continuação, com outro vestuário, dos Programas de
Reajustamento anteriormente falhados.
Moralizar aquilo que se pode exigir aos outros
Parte dos que nos pedem não é historicamente
realizável. Os países mais pobres devem liberalizar as suas economias num
período mais curto do que foi alguma vez exigido aos países desenvolvidos.
Algumas vezes, coloca-se como condição de libertação dos fundos o cumprimento
de metas que são impraticáveis. Espera-se que façamos em 5 anos aquilo que
outros levaram séculos a alcançar. Algumas das nações europeias que nos cobram
pela descentralização estão muito longe de cumprir, elas próprias, esse
processo de descentralização.
Alguns dos que hoje nos exigem clareza, transparência
e boa governação apoiaram golpes de Estado em África, patrocinaram o
assassinato de líderes e apoiaram agressões a regimes sob o único pretexto de
estarem do lado errado no período da Guerra Fria. Ainda hoje a ajuda que se
ergue como um “dever moral” continua sendo condicionada politicamente. Quem
fala, por exemplo, da ditadura infame da Guiné Equatorial ? Em 1994, a
embaixada dos EUA fechou e os americanos romperam com o regime da Guiné
Equatorial por acharem inaceitável o regime de Teodoro Obiang. Um ano depois,
quando foram descobertas importantes jazidas de petróleo, os EUA regressaram
correndo, aceitando aquilo que antes era intolerável. O petróleo é um poderoso
diluente de ditaduras.
Algumas das vozes que reclamam moralidade dos regimes
africanos estiveram caladas perante a injustiça do apartheid. Ao menos, o meu
pequeno país foi capaz de se erguer não apenas contra o poderoso apartheid
sul-africano mas contra o regime rodesiano de Ian Smith. Para defendermos essa
coerência de princípios perdemos 17 bilhões de dólares, considerando apenas os
custos directos da desestabilização lançada contra o nosso país. Esse divida
financeira e moral não entrará nas contas com a chamada comunidade
internacional. Como não entrará nas contas a guerra de desestabilização que por
quase duas décadas martirizou a nação moçambicana. Hoje fala-se de guerra civil
em Moçambique como se esse conflito tivesse tido apenas contornos endógenos. É
preciso não esquecer nunca: essa guerra foi gerada no ventre do apartheid,
estava desde o início inscrita na chamada estratégia de agressão total contra
os vizinhos da África do Sul.
No meu país o espectro do terrorismo não começou com o
Onze de Setembro. Milhares de crianças estão desde há mais de vinte anos
espreitando com medo o chão que vão pisar. Mais de um milhão de minas
anti-pessoais foi semeada durante a guerra. Milhares desses engenhos mortais
continua semeando o terror no seio de cidadãos inocentes. Quantos dos países
ricos que se mobilizam contra terrorismo assinaram a convenção para o banimento
da produção de minas ?
O convite para a simulação
A resposta a tudo isto, é claro, deveria vir de dentro
dos países pobres. Teríamos que ter agenda, própria, uma estratégia nossa.
Forçados a sobreviver no imediato vamos investindo naquilo que são chamadas as
“sound policies”: o que é bom é privatizar, descentralizar, cumprir os
indicadores da macro-economia. Mesmo sabendo que isso corresponde a a uma
encenação para agradar aos doadores. É mais importante obedecer cegamente a um
valor estipulado para a taxa de inflacção do que criar condições de emprego. Estamos
produzindo um ambiente económico e social propício para nos qualificarmos para
mais ajuda, em vez de criarmos um ambiente propício para o nosso
desenvolvimento.
As palavras da moda vão-se sucedendo num léxico
descartável: “comunidades locais”, desenvolvimento sustentável, assuntos de
géneros, sociedade civil, povos indígenas, comunidades tribais. Nem sempre se
entende a substância concreta dessas palavras. Mas elas conduzem a um jogo de
sedução reciproca, a uma infindável encenação teatral. Não tarda que nos nossos
países – esses a quem se ordena que emagreçam o Estado – surjam Ministérios
para a Sociedade Civil, Ministérios das ONGs, Ministérios para a sustentabilidade.
Caros amigos,
Em 1984 eu estava na minha varanda quando vi chegar a
tempestade. Na altura não tinha nome, mas uma enorme ventania fez levantar
poeiras no chão e ondas no mar, misturando granizo e vento, quebrando vidros,
erguendo tectos, espalhando destruição. Depois, o fenómeno levou nome, um nome
de mulher como convém a qualquer tempestade que se digne. A tempestade foi
chamada de DOMOINA. A minha angústia perante os destroços era: como nos vamos
reerguer, em plena guerra e no meio da maior miséria ? Mas a solidariedade
interna, ainda assim, deitou semente e colheu fruto. Os apoios vieram de dentro
e o país encontrou ainda força para se levantar. Em pouco tempo, as feridas
estavam curadas e cicatrizadas.
Falamos aqui da cooperação de Moçambique com a Europa
e com o Mundo. Mas a primeira grande questão seria como é que Moçambique está
cooperando consigo mesmo? Como é que se promove o desenvolvimento a partir de
dentro? Este debate tem que ser conduzido dentro de África. Ele já está nascendo
com a emergência de jovens que não se satisfazem com o discurso saturado da
culpabilização dos outros sempre que analisa a situação interna do continente.
O maior desastre de África não é ser pobre mas ter sido empobrecida pela
aliança entre a mão exploradora de fora e a mão conivente de dentro.
Trinta anos a pedir apoio cria uma dependência mental
que anula o espírito do 25 de Junho. Há toda uma geração de quadros que já
raciocina em função do que e a quem se vai pedir. Estamos criando Junhitos, gente
que se sonha doméstica e domesticada. O mais grave é que a reprodução dos
Junhitos se faz dentro de Moçambique, de forma endógena e indígena.
África não é o continente dos outros, um simples dever
moral, um assunto de retórica diplomática. É verdade que compete aos africanos
reconquistarem a sua credibilidade como parceiros. Mas os africanos não poderão
fazê-lo no quadro actual da governação mundial. A verdadeira ajuda será não dar
mais mas lutarmos juntos, europeus e africanos, para mudar esta teia de
relações. Precisamos de uma ajuda que nos torne menos dependentes da ajuda,
temos que construir uma dependência progressivamente menos dependente.
Por enquanto, o que vamos fazendo nós, doadores e
receptores, é tocar a duas mãos uma valsa que esconde uma irresolúvel agonia.
No final, o continente africano poderá ter mais algumas escolas, mais alguns
hospitais. Mas não terá gerado recursos próprios nem desenvolvido as forças
produtivas.
Há 30 anos os moçambicanos venceram um poderoso
exército desencadeando uma luta de pequenos grupos de guerrilha. Ainda hoje as
vitórias que conseguirmos serão por via dessa persistência guerrilheira. Não há
grandes soluções, grandes reviravoltas que façam endireitar o eixo da Terra. A
nossa soberania (e também a vossa soberania) está nessa fresta, nesse
intervalo. O que necessitamos é de um maior diálogo, maior comparticipação e
reciprocidade dos mecanismos de controle dos dinheiros e dos compromissos
assumidos. O que necessitamos é de nos tornarmos parceiros de verdade.
Termino confessando-vos um sonho, um desejo. Os trinta
anos de Independência não são apenas um momento já vivido. São um tempo vivo
cujas potencialidades ainda se irão revelar por inteiro. O nosso passado, desde
1975, é um futuro. Uma semente que está dando árvore. Queremos ter direito à
sombra dessa grande árvore. E queremos partilhar essa promessa de felicidade
com os nossos irmãos da Suíça. Porque também eles, os suíços, nos ajudar a
semear esse futuro.
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