Por João Afonso dos Santos
1. Só agora tive oportunidade de ler o livro que deu recentemente à estampa: Moçambique, 1974, O Fim do Império e o Nascimento da Nação, editado em Portugal pela Caminho. E uma vez que, pelo menos em grande parte, se refere à Beira, a acontecimentos e pessoas do tempo em que lá vivi, antes e depois da independência, tomo a liberdade de fazer alguns reparos que julgo pertinentes, abreviando por uma questão de economia. Limitar-me-ei aos aspectos que tocam a minha experiência daquela cidade, deixando de lado os capítulos que excedem esse âmbito espacial e vivencial, como por exemplo, os referentes à formação de movimentos políticos e seus chefes, à luta armada, às relações com as autoridades portuguesas e outras, que, tanto quanto me é dado perceber, contêm farta recolha de dados e ilações, todavia aqui e ali sujeitos a caução. Nos meus reparos ver-me-ei obrigado a falar de mim. Como você anotou (p. 53), sou uma pessoa modesta. Reconheço-me menos no adjectivo humilde, porque não dou a outra face. Se bem que o trecho a que se encosta, em abono dos dois qualificativos que me atribui, venha a propósito dum contexto factual e valorativo totalmente diferente. Visto à distância – escrevi eu no passo em questão – este empenhamento (referia-me ao Cine-Clube da Beira) parecerá um tanto ingénuo. Acrescentando a seguir: É possível que cada época -- e em cada época cada espaço geocultural – tenha os seus entusiasmos ingénuos, à luz de uma contemporaneidade posterior, dos seus valores e práticas (“José Afonso, Um Olhar Fraterno”, pp. 177 e 178). Que conclusões extrai você destes considerandos, relacionados com as actividades culturais beirenses?
Transcrevo: o pequeno grupo de oposição na Beira era, na sua essência, composto por pacíficos intelectuais de esquerda. Estabeleceram a sua sede no Café Luso, onde se dedicavam à tertúlia política. O seu líder era o advogado João Afonso dos Santos “num empenhamento […] um tanto ingénuo, como ele escreveu, com a modéstia e a humildade que lhe foram sempre características.” Em suma, você atribui-me, entre aspas, uma afirmação que eu não fiz. O meu empenhamento político e dos meus companheiros de então – é disso que você fala – não foi ingénuo, nem tal coisa alguma vez disse, como atrás deixei claro. Porventura ingénuo (escrevi eu) seria essa entrega às actividades do Cine-Clube da Beira, com que os participantes mais devotados asseguravam uma sobrevivência intelectual e crítica, num tempo sombrio, em que tudo isso era subvertido pela ditadura salazarista. Você não percebeu, desculpe que lhe diga, a razão dessa reserva, formulada em termos retóricos. A verdade é que o punhado de homens de razão (passe a petulância) existente à época, tinha viva consciência, em especial a partir de dado momento, da sua incapacidade, não digo para transformar a natureza do regime ditatorial e, talvez por reflexo, a de Moçambique, mas para contribuir para essa transformação. O motor da mudança residia nos centros de poder internacionais (a ONU, por exemplo) e depois na luta dos próprios povos pela sua dignidade e independência. Sabemos isto. A oportunidade dos oposicionistas concorrerem a esse desígnio emancipador de Moçambique (aludindo apenas a este lado da questão) só chegará bastante mais tarde, após o golpe militar de 25 de Abril de 1974, altura em que se formou o grupo de pressão em apoio da Frelimo, com o título propositadamente neutro e aglutinador de Democratas de Moçambique.
A acção dessas pessoas inconformadas, deixando de lado o feu follet das falsas encenações eleitorais, acabou por manifestar-se no campo da cultura. E aí, descontando o facto de ser L. Marques o centro nevrálgico e mais populoso do país, as duas cidades foram idênticas em termos de realização cultural, com vantagens quantitativas para a capital, como seria de esperar, em especial no domínio da produção literária. O teatro com Mário Barradas em L. Marques e Malaquias de Lemos e Cardoso dos Santos na Beira, os dois cine-clubes ligados por relações estreitas, Bertina Lopes, dum lado, Garizo do Carmo, do outro, na literatura, Noémia de Sousa, Craveirinha, Nogar, etc., e em paralelo Ascêncio de Freitas e o Paralelo 20 (menções obviamente aleatórias), tudo isso se traduziu numa espécie de conjunção que, no futuro, haveria de dar outros frutos. E, em abono da Beira, diga-se que foi lá que se ergueu do nada o Auditório Galeria de Arte (hoje chamado, se não erro, Centro de Cultura da Beira), conjunto arquitectural constituído por um auditório propriamente dito e um renque de salas em disposição rectangular – enriquecido com um mural fronteiro de Malangatana – testemunho da capacidade e esforço dos oposicionistas (empregando a sua terminologia). Para aí se mudaram o teatro, o cine-clube e, se bem me lembro, as artes plásticas. Era aí que dávamos pasto às nossas críticas e alimentávamos as nossas convicções, depois de nos termos transferido da anterior sede do cine-clube, à Praça do Município. O Café Luso, reservado à amena cavaqueira, não passava, neste aspecto, de uma réplica mais pequena do Continental, em L. Marques.
2. Mas o que faço questão de salientar é que as suas considerações padecem, a meu ver, dum vício de fundo que inquina, na parte que relevo, a recensão descritiva do seu livro (chamemos-lhe assim) e é o seguinte: você aborda certos factos do passado moçambicano dentro do quadro mental e ideológico (tomada a expressão em sentido amplo) duma narrativa colonial. Não apenas porque relata acontecimentos (alguns verdadeiramente anódinos) ocorridos entre a minoria dominante (passe a expressão), mas porque o juízo crítico que estabelece e o ângulo de visão de que parte são próprios desse grupo dominante, ao tempo. Quer dizer, a pequena factualidade que recheia parte da obra (talvez um terço dela), tem mais que ver com o Portugal colonial, isto é, com o reflexo dos seus preconceitos, juízos e valorações, do que propriamente com o ethos moçambicano.
Darei apenas três exemplos, embora seja fácil surpreender esse pendor do discurso ao longo do livro. O primeiro respeita à maneira como você alude às eleições para a presidência da república portuguesa, dirimidas entre o Almirante Américo Tomás e o General Humberto Delgado, no longínquo ano de 1958 (pp. 18 e sgs.). Porventura considera você estas eleições à luz dos interesses e condicionalismos moçambicanos, tal como os poderemos retrospecti-vamente avaliar? Não. Faz-se eco duma questão hoje resolvida em Portugal, de certo modo deslocada e absurda em Moçambique, a de saber quem ganhou, entre os colonos eleitores (pois que o colégio eleitoral era quase por inteiro constituído por eles), as eleições presidenciais portuguesas, não sem deixar de incorrer, diga-se passagem, em manifestas incongruências. Pois que, em apoio duma imaginada especificidade da Beira, dá duas explicações antagónicas para a vitória da oposição local: uma radicada em motivos endógenos, contra tudo e contra todos (p. 19); outra firmada na constatação de que os resultados procederam da falta de manipulação que ocorreu nos restantes círculos eleitorais. Sabemos, de resto, que foram em geral falsificados, quer o procedimento eleitoral, quer os dados apurados, tudo dependendo da eficácia das manobras de falseamento que, por razões ocasionais falharam na Beira. Mas, repito, o que importa nem é tanto a paradoxal explicação do facto, mas a revelação dum ponto de vista manifestamente exterior à problemática moçambicana.
Os outros exemplos prendem-se com dois acontecimentos relevantes, os massacres de Mucumbura (Novembro de 1971) e de Williamu (Dezembro de 1972). O primeiro divulgado pelos missionários de Burgos, Alfonso Valverde Leon, Enrique Fernando, entre outros (pp. 240 e sgs.), com reflexo posterior nas atitudes assumidas pelos Ps. Fernando e Mendes, da Paróquia do Macúti, Beira (pp. 70 e sgs.), em consequência das quais foram estes julgados em tribunal militar. O segundo com o eco que o Pe. Hastings lhe conferiu no The Times, londrino (pp. 119 e sgs.). Aí estão duas ocorrências que tiveram uma dimensão humana e política moçambicanas de capital importância. Ora você trata os dois assuntos com inexplicável ligeireza, subestimando o significado de ambos e ocupando-se de aspectos circunstanciais, por vezes até superficiais. Mal aborda a materialidade factual de ambos, o seu impacto interno e externo, a não ser no plano das dificuldades diplomáticas para a política externa portuguesa. Que se passou no terreno? Que interpretação é lícito extrair dos factos numa perspectiva historicista? Que papel coube aos investigadores e denunciantes (dos massacres), considerado o contexto da época? Na sua perspectiva, o que se verificou, no tocante ao primeiro caso, foi apenas isto: uma caça aos padres, isto é, aos padres missionários Alfonso Valverde Leon, Enrique Fernando, etc. (pp. 240 e sgs.), ao passo que, no que respeita aos padres da Beira, não passou de um ajuste de velhas contas entre os seus advogados e o Engº. Jorge Jardim (p. 76), o mesmo que utilizou o jornal de que era director para os calar; no que respeita a Williamu (pp. 119 e sgs.), ficamos a saber que o caso minou a credibilidade de Marcelo Caetano.
Voltando ainda ao massacre de Mucumbura, você separa dois lados duma mesma realidade, dispersando-os de modo arbitrário por diferentes capítulos da obra, o que objectivamente lhe diminui a discursividade e compreensão, além de a descaracterizar. A verificação do morticínio e divulgação do feito (que, por vias travessas, chegou ao Vaticano) couberam àqueles padres missionários de Burgos a que acima fiz referência, em consequência do que foram sujeitos a procedimento criminal. O que sucedeu é que, por via dos ataques jornalísticos desferidos pelo Eng. Jorge Jardim contra os Ps. do Macúti (que, como vimos, se fizeram eco das notícias divulgadas pelos primeiros), estes últimos foram julgados com precedência, apesar da acção penal contra eles ser, digamos, posterior. A instrução do processo em que os missionários de Burgos foram arguidos chegou ao fim e deve constar, segundo creio, dos arquivos do antigo Tribunal Militar de L. Marques. Mas o respectivo procedimento foi amnistiado, o que dispensou os missionários de Burgos de se sentarem no banco dos réus, expediente com que o poder político evitou os inconvenientes de um novo processo judicial público. Ora só é possível compreender as circunstâncias que estão por detrás do julgamento dos padres do Macúti (Beira) – e aqui é que quero chegar – relacionando uma coisa com outra. Isto é, confrontando a reacção à homilia do Pe. Sampaio e outros sucessos menores provocatórios, ocorridos na Igreja do Macúti, com as denúncias do massacre de Mucumbura pelos missionários de Burgos. Descontextualizados os factos e salientados outros cuja função genética foi desviar a atenção – a recusa da entrada da bandeira portuguesa na igreja, por exemplo, transportada pelos escuteiros – o que resta são apontamentos soltos que, quer se queira, quer não, relativizam o acontecimento.
3. Uma outra nota que gostaria de expressar diz respeito àquilo a que você, por mais do que uma vez, chama a oposição em Moçambique e suas manifestações cíclicas. Sobretudo a partir de 61, passou a ser manifesto que não havia uma oposição, mas pelo menos duas oposições. Uma anti-salazarista, que continuava a bater-se pelos direitos e liberdades públicos, mas que descobriu, de repente, estar com a ideia de unidade imperial, embora em alguns casos, com variantes federativas, por exemplo. Outra que, sem abdicar da democratização da sociedade, defendia a auto-determinação e independência dos povos africanos. O texto de 1973 que você refere, recomposto a partir dum outro trazido à Beira pelos enviados Drs. Adrião Rodrigues, primeiro e Rui Lacerda depois, foi alterado com o voto a favor dos oposicionistas da Beira, no sentido historicamente possível daquele segundo objectivo.
4. Por fim, fico com a impressão de que você aproveitou a oportunidade para saldar umas contas pessoais com a Beira onde viveu, suponho, durante bastante tempo. Digo isto tanto pelo que enuncia, como pelo que omite. Você concebe a Beira como um corpo estranho no conjunto moçambicano, dotada de personalidade própria (p. 16), embora contraditoriamente afirme adiante que se foi criando outro mito, que dura até hoje, o de que se trata de uma “cidade especial” […] quando a vontade do povo é contrariada, entendimento e mito que, ao que parece, faz seus. Entendamo-nos: de que povo fala? Pelo que se lê a seguir percebe-se que tem em mente a comunidade constituída pelos colonos, ilação que se confirma no relato dos principais casos ocorridos nos últimos anos do sistema colonial (p. 17), isto é, as eleições presidenciais de 1958, os reflexos da tomada de Goa pelos indianos, a greve dos cinemas.
Ora nenhum juízo objectivo cauciona essas conclusões ligeiras sobre uma suposta especificidade da Beira, expressas ao sabor de uma intuição falível. Ainda se você indicasse alguma ideossincrasia cultural, sociologicamente estruturada em grupos étnicos, bem demarcados, se referisse a qualquer específica característica comportamental diferenciadora, com reflexo na comunidade geral. Agora à população metropolitana que aí aportava como a qualquer outra cidade costeira de Moçambique! Não faz nenhum sentido dizer-se que a cidade era diferente das demais. Mais racista (pp. 77 e sgs.), por exemplo. Então não foi em L. Marques que ocorreu o 7 de Setembro e não foi em Nampula que o bispo Vieira Pinto se viu cercado e vilipendiado (p. 244), como de resto pude testemunhar, aliás, na deslocação que, na sequência, fiz àquela cidade? Não. O substrato ideológico da população colonial era idêntico em todos os agregados urbanos, o que não significa que não existissem grupos e pessoas de matizes diferentes e convicções progressistas em todos eles.
As prevenções que você aparentemente alimenta em relação à Beira levam-no a emitir a opinião de que a PIDE conhecia os membros do grupo (isto é, o pequeno grupo de oposição da Beira), mas tolerava-os porque entendia que não seriam eles a derrubar o regime” (p. 53). Mas, Fernando Amado Couto, porventura acha que era diferente o entendimento da PIDE em relação à oposição de L. Marques, por exemplo? Que os jogos florais (sem desprimor) sobre o estado de direito, as liberdades públicas, a denúncia da ditadura, que ocorriam de tantos em tantos anos, por pouco tempo embora, acordavam na PIDE o pavor da queda do regime? Lembro-lhe que a PIDE nem sempre foi tão benévola na Beira como você dá a entender. Houve demissões, purgas, prisões e algumas com efeitos nefastos (casos do Rafael Nunes de Carvalho e do Engº. Madeira da Silva, por exemplo).
No tocante ao Engº. Jorge Jardim, uma espécie de factotum, com jus a uma grande fatia da obra (pp. 42 a 62, 184 a 194 e o mais que se encontra disperso) afirma você que os advogados dos padres do Macúti foram movidos por um ódio pessoal à pessoa do dito (e não ao poder que ele simbolizava). Um ajuste de velhas contas, afirma você, não se sabendo onde foi buscar a ideia, fazendo, porventura, suas as recriminações que o próprio invocou em desespero de causa e passando uma esponja sobre o significado humano e político que os advogados atribuíram ao acontecimento acima referenciado. Esses advogados, que nas páginas do Notícias da Beira defenderam os dois padres contra as investidas do Engº. Jorge Jardim e contribuíram indirectamente a dar voz ao acontecimento de Mucumbura (você evita identificá-los, metendo tudo no saco dos advogados dos padres (p. 74)), foram dois e têm nomes: o Dr. Williem Gerard Pott e eu próprio, uma vez que os Drs. Adrião Rodrigues e Pereira Leite intervieram somente no julgamento que decorreu, mais tarde, no Tribunal Militar de L. Marques. Considerei na altura – e ainda hoje considero – que a pugna jornalística e o julgamento posterior foram os acontecimentos sociais mais relevantes ocorridos em Moçambique antes de 25 de Abril de 1975 (descontados os sucessos da luta armada), ainda que, por motivos óbvios, fosse mais visível a primeira. Por aquilo que significou em si mesma e pelo que pôs a claro. E, Fernando Amado Couto, pela parte que me toca, só conheci o Engº. Jorge Jardim quando o interroguei como testemunha no plenário do tribunal militar. Já agora esclareço-o que, ao contrário do que afirma (p. 75), os padres Teles Sampaio e Mendes não foram absolvidos, mas condenados. O acórdão vem transcrito em O Julgamento dos Padres do Macuti, ed. Afrontamento, Porto, 1973 (pp. 165 e sgs.), a que você de resto alude, mas, segundo se percebe, sem o ter lido. O Pe. Sampaio foi condenado em vinte meses de prisão e quarenta e cinco dias de multa e o Pe. Mendes em cinco meses de prisão e cinco meses de multa. Mas se considerarmos que os dois padres vinham acusados da prática de crimes contra a segurança nacional, incitamento à violência, etc., a que correspondiam penas de reclusão celular muito pesadas, o desfecho do processo foi extremamente favorável. Os dois padres saíram da cadeia, um porque teve a pena suspensa, o outro porque viu a pena absorvida pela prisão preventiva. Não comungo na sua ideia de que a pequena dimensão da pena (você, já vimos, fala erradamente em absolvição) se deveu ao peso da igreja católica. A hierarquia católica em Moçambique era, de modo geral, conservadora e comprometida com a ditadura, como se sabe. A meu ver, o papel do juiz togado foi determinante, movido pela sua consciência julgadora. Na liberdade inabitual que concedeu aos advogados durante a audiência e, é claro, na elaboração da decisão. Vivia-se então em pleno consulado Marcelista.
É ainda – suponho – a sua prevenção em relação à cidade que o leva a omitir da sua longa e generosa lista de Democratas de Moçambique (p. 292) os democratas da Beira, apesar de ressalvar que foi esta a cidade escolhida para se proceder à unificação dos vários núcleos regionais do movimento (p.p. 292, 293). Os democratas de Moçambique, sediados na Beira, tiveram um papel idêntico ao dos outros e poderia até referir alguns actos simbólicos de reconhecimento do seu empenho, mas isso excede o propósito destas notas.
Mas mais extraordinária é a sua alusão de pp. 287 e sgs. às alterações ocorridas a partir do início de Junho de 1974, com a nomeação dos novos directores para os diversos órgãos de informação e a entrada de redactores simpatizantes e militantes assumidos da FRELIMO (p. 287). Você indica, um a um, os nomes dos vários directores e até sub-directores nomeados para o Notícias, Tribuna, Tempo, Rádio Clube de Moçambique (esquecendo-se aqui do José Rebelo) e, no tocante ao Notícias da Beira, escreve o seguinte: Bem mais complicada foi a situação do “Notícias da Beira”. As mudanças estavam dependentes do controlo financeiro da equipa composta por Jorge jardim, Evo Fernandes e Mário Simonetti, que tinham um projecto próprio. Entram em disputa com a maioria da redacção que sai ganhadora em finais de Maio, com o apoio dos “Democratas de Moçambique”. Quer dizer, você silencia o facto de que o director nomeado fui eu e o chefe de redacção o José Quatorze. Dir-se-á: então tem assim tanta importância indicar os nomes das pessoas responsáveis pelos órgãos informativos? Não, é claro. Mas uma vez que se dá ao trabalho de mencionar todos os restantes (o seu livro é, de resto, um minucioso repositório de nomes), não deixará de se estranhar a omissão e mais do que a omissão a forma como você ladeia o obstáculo identitário, numa obra que – supõe-se – se pretende objectiva. Para lhe dizer francamente, eu, apesar da minha modéstia, estranhei.
Aceite os meus cumprimentos.
Lisboa, 22.08.2011
A acção dessas pessoas inconformadas, deixando de lado o feu follet das falsas encenações eleitorais, acabou por manifestar-se no campo da cultura. E aí, descontando o facto de ser L. Marques o centro nevrálgico e mais populoso do país, as duas cidades foram idênticas em termos de realização cultural, com vantagens quantitativas para a capital, como seria de esperar, em especial no domínio da produção literária. O teatro com Mário Barradas em L. Marques e Malaquias de Lemos e Cardoso dos Santos na Beira, os dois cine-clubes ligados por relações estreitas, Bertina Lopes, dum lado, Garizo do Carmo, do outro, na literatura, Noémia de Sousa, Craveirinha, Nogar, etc., e em paralelo Ascêncio de Freitas e o Paralelo 20 (menções obviamente aleatórias), tudo isso se traduziu numa espécie de conjunção que, no futuro, haveria de dar outros frutos. E, em abono da Beira, diga-se que foi lá que se ergueu do nada o Auditório Galeria de Arte (hoje chamado, se não erro, Centro de Cultura da Beira), conjunto arquitectural constituído por um auditório propriamente dito e um renque de salas em disposição rectangular – enriquecido com um mural fronteiro de Malangatana – testemunho da capacidade e esforço dos oposicionistas (empregando a sua terminologia). Para aí se mudaram o teatro, o cine-clube e, se bem me lembro, as artes plásticas. Era aí que dávamos pasto às nossas críticas e alimentávamos as nossas convicções, depois de nos termos transferido da anterior sede do cine-clube, à Praça do Município. O Café Luso, reservado à amena cavaqueira, não passava, neste aspecto, de uma réplica mais pequena do Continental, em L. Marques.
2. Mas o que faço questão de salientar é que as suas considerações padecem, a meu ver, dum vício de fundo que inquina, na parte que relevo, a recensão descritiva do seu livro (chamemos-lhe assim) e é o seguinte: você aborda certos factos do passado moçambicano dentro do quadro mental e ideológico (tomada a expressão em sentido amplo) duma narrativa colonial. Não apenas porque relata acontecimentos (alguns verdadeiramente anódinos) ocorridos entre a minoria dominante (passe a expressão), mas porque o juízo crítico que estabelece e o ângulo de visão de que parte são próprios desse grupo dominante, ao tempo. Quer dizer, a pequena factualidade que recheia parte da obra (talvez um terço dela), tem mais que ver com o Portugal colonial, isto é, com o reflexo dos seus preconceitos, juízos e valorações, do que propriamente com o ethos moçambicano.
Darei apenas três exemplos, embora seja fácil surpreender esse pendor do discurso ao longo do livro. O primeiro respeita à maneira como você alude às eleições para a presidência da república portuguesa, dirimidas entre o Almirante Américo Tomás e o General Humberto Delgado, no longínquo ano de 1958 (pp. 18 e sgs.). Porventura considera você estas eleições à luz dos interesses e condicionalismos moçambicanos, tal como os poderemos retrospecti-vamente avaliar? Não. Faz-se eco duma questão hoje resolvida em Portugal, de certo modo deslocada e absurda em Moçambique, a de saber quem ganhou, entre os colonos eleitores (pois que o colégio eleitoral era quase por inteiro constituído por eles), as eleições presidenciais portuguesas, não sem deixar de incorrer, diga-se passagem, em manifestas incongruências. Pois que, em apoio duma imaginada especificidade da Beira, dá duas explicações antagónicas para a vitória da oposição local: uma radicada em motivos endógenos, contra tudo e contra todos (p. 19); outra firmada na constatação de que os resultados procederam da falta de manipulação que ocorreu nos restantes círculos eleitorais. Sabemos, de resto, que foram em geral falsificados, quer o procedimento eleitoral, quer os dados apurados, tudo dependendo da eficácia das manobras de falseamento que, por razões ocasionais falharam na Beira. Mas, repito, o que importa nem é tanto a paradoxal explicação do facto, mas a revelação dum ponto de vista manifestamente exterior à problemática moçambicana.
Os outros exemplos prendem-se com dois acontecimentos relevantes, os massacres de Mucumbura (Novembro de 1971) e de Williamu (Dezembro de 1972). O primeiro divulgado pelos missionários de Burgos, Alfonso Valverde Leon, Enrique Fernando, entre outros (pp. 240 e sgs.), com reflexo posterior nas atitudes assumidas pelos Ps. Fernando e Mendes, da Paróquia do Macúti, Beira (pp. 70 e sgs.), em consequência das quais foram estes julgados em tribunal militar. O segundo com o eco que o Pe. Hastings lhe conferiu no The Times, londrino (pp. 119 e sgs.). Aí estão duas ocorrências que tiveram uma dimensão humana e política moçambicanas de capital importância. Ora você trata os dois assuntos com inexplicável ligeireza, subestimando o significado de ambos e ocupando-se de aspectos circunstanciais, por vezes até superficiais. Mal aborda a materialidade factual de ambos, o seu impacto interno e externo, a não ser no plano das dificuldades diplomáticas para a política externa portuguesa. Que se passou no terreno? Que interpretação é lícito extrair dos factos numa perspectiva historicista? Que papel coube aos investigadores e denunciantes (dos massacres), considerado o contexto da época? Na sua perspectiva, o que se verificou, no tocante ao primeiro caso, foi apenas isto: uma caça aos padres, isto é, aos padres missionários Alfonso Valverde Leon, Enrique Fernando, etc. (pp. 240 e sgs.), ao passo que, no que respeita aos padres da Beira, não passou de um ajuste de velhas contas entre os seus advogados e o Engº. Jorge Jardim (p. 76), o mesmo que utilizou o jornal de que era director para os calar; no que respeita a Williamu (pp. 119 e sgs.), ficamos a saber que o caso minou a credibilidade de Marcelo Caetano.
Voltando ainda ao massacre de Mucumbura, você separa dois lados duma mesma realidade, dispersando-os de modo arbitrário por diferentes capítulos da obra, o que objectivamente lhe diminui a discursividade e compreensão, além de a descaracterizar. A verificação do morticínio e divulgação do feito (que, por vias travessas, chegou ao Vaticano) couberam àqueles padres missionários de Burgos a que acima fiz referência, em consequência do que foram sujeitos a procedimento criminal. O que sucedeu é que, por via dos ataques jornalísticos desferidos pelo Eng. Jorge Jardim contra os Ps. do Macúti (que, como vimos, se fizeram eco das notícias divulgadas pelos primeiros), estes últimos foram julgados com precedência, apesar da acção penal contra eles ser, digamos, posterior. A instrução do processo em que os missionários de Burgos foram arguidos chegou ao fim e deve constar, segundo creio, dos arquivos do antigo Tribunal Militar de L. Marques. Mas o respectivo procedimento foi amnistiado, o que dispensou os missionários de Burgos de se sentarem no banco dos réus, expediente com que o poder político evitou os inconvenientes de um novo processo judicial público. Ora só é possível compreender as circunstâncias que estão por detrás do julgamento dos padres do Macúti (Beira) – e aqui é que quero chegar – relacionando uma coisa com outra. Isto é, confrontando a reacção à homilia do Pe. Sampaio e outros sucessos menores provocatórios, ocorridos na Igreja do Macúti, com as denúncias do massacre de Mucumbura pelos missionários de Burgos. Descontextualizados os factos e salientados outros cuja função genética foi desviar a atenção – a recusa da entrada da bandeira portuguesa na igreja, por exemplo, transportada pelos escuteiros – o que resta são apontamentos soltos que, quer se queira, quer não, relativizam o acontecimento.
3. Uma outra nota que gostaria de expressar diz respeito àquilo a que você, por mais do que uma vez, chama a oposição em Moçambique e suas manifestações cíclicas. Sobretudo a partir de 61, passou a ser manifesto que não havia uma oposição, mas pelo menos duas oposições. Uma anti-salazarista, que continuava a bater-se pelos direitos e liberdades públicos, mas que descobriu, de repente, estar com a ideia de unidade imperial, embora em alguns casos, com variantes federativas, por exemplo. Outra que, sem abdicar da democratização da sociedade, defendia a auto-determinação e independência dos povos africanos. O texto de 1973 que você refere, recomposto a partir dum outro trazido à Beira pelos enviados Drs. Adrião Rodrigues, primeiro e Rui Lacerda depois, foi alterado com o voto a favor dos oposicionistas da Beira, no sentido historicamente possível daquele segundo objectivo.
4. Por fim, fico com a impressão de que você aproveitou a oportunidade para saldar umas contas pessoais com a Beira onde viveu, suponho, durante bastante tempo. Digo isto tanto pelo que enuncia, como pelo que omite. Você concebe a Beira como um corpo estranho no conjunto moçambicano, dotada de personalidade própria (p. 16), embora contraditoriamente afirme adiante que se foi criando outro mito, que dura até hoje, o de que se trata de uma “cidade especial” […] quando a vontade do povo é contrariada, entendimento e mito que, ao que parece, faz seus. Entendamo-nos: de que povo fala? Pelo que se lê a seguir percebe-se que tem em mente a comunidade constituída pelos colonos, ilação que se confirma no relato dos principais casos ocorridos nos últimos anos do sistema colonial (p. 17), isto é, as eleições presidenciais de 1958, os reflexos da tomada de Goa pelos indianos, a greve dos cinemas.
Ora nenhum juízo objectivo cauciona essas conclusões ligeiras sobre uma suposta especificidade da Beira, expressas ao sabor de uma intuição falível. Ainda se você indicasse alguma ideossincrasia cultural, sociologicamente estruturada em grupos étnicos, bem demarcados, se referisse a qualquer específica característica comportamental diferenciadora, com reflexo na comunidade geral. Agora à população metropolitana que aí aportava como a qualquer outra cidade costeira de Moçambique! Não faz nenhum sentido dizer-se que a cidade era diferente das demais. Mais racista (pp. 77 e sgs.), por exemplo. Então não foi em L. Marques que ocorreu o 7 de Setembro e não foi em Nampula que o bispo Vieira Pinto se viu cercado e vilipendiado (p. 244), como de resto pude testemunhar, aliás, na deslocação que, na sequência, fiz àquela cidade? Não. O substrato ideológico da população colonial era idêntico em todos os agregados urbanos, o que não significa que não existissem grupos e pessoas de matizes diferentes e convicções progressistas em todos eles.
As prevenções que você aparentemente alimenta em relação à Beira levam-no a emitir a opinião de que a PIDE conhecia os membros do grupo (isto é, o pequeno grupo de oposição da Beira), mas tolerava-os porque entendia que não seriam eles a derrubar o regime” (p. 53). Mas, Fernando Amado Couto, porventura acha que era diferente o entendimento da PIDE em relação à oposição de L. Marques, por exemplo? Que os jogos florais (sem desprimor) sobre o estado de direito, as liberdades públicas, a denúncia da ditadura, que ocorriam de tantos em tantos anos, por pouco tempo embora, acordavam na PIDE o pavor da queda do regime? Lembro-lhe que a PIDE nem sempre foi tão benévola na Beira como você dá a entender. Houve demissões, purgas, prisões e algumas com efeitos nefastos (casos do Rafael Nunes de Carvalho e do Engº. Madeira da Silva, por exemplo).
No tocante ao Engº. Jorge Jardim, uma espécie de factotum, com jus a uma grande fatia da obra (pp. 42 a 62, 184 a 194 e o mais que se encontra disperso) afirma você que os advogados dos padres do Macúti foram movidos por um ódio pessoal à pessoa do dito (e não ao poder que ele simbolizava). Um ajuste de velhas contas, afirma você, não se sabendo onde foi buscar a ideia, fazendo, porventura, suas as recriminações que o próprio invocou em desespero de causa e passando uma esponja sobre o significado humano e político que os advogados atribuíram ao acontecimento acima referenciado. Esses advogados, que nas páginas do Notícias da Beira defenderam os dois padres contra as investidas do Engº. Jorge Jardim e contribuíram indirectamente a dar voz ao acontecimento de Mucumbura (você evita identificá-los, metendo tudo no saco dos advogados dos padres (p. 74)), foram dois e têm nomes: o Dr. Williem Gerard Pott e eu próprio, uma vez que os Drs. Adrião Rodrigues e Pereira Leite intervieram somente no julgamento que decorreu, mais tarde, no Tribunal Militar de L. Marques. Considerei na altura – e ainda hoje considero – que a pugna jornalística e o julgamento posterior foram os acontecimentos sociais mais relevantes ocorridos em Moçambique antes de 25 de Abril de 1975 (descontados os sucessos da luta armada), ainda que, por motivos óbvios, fosse mais visível a primeira. Por aquilo que significou em si mesma e pelo que pôs a claro. E, Fernando Amado Couto, pela parte que me toca, só conheci o Engº. Jorge Jardim quando o interroguei como testemunha no plenário do tribunal militar. Já agora esclareço-o que, ao contrário do que afirma (p. 75), os padres Teles Sampaio e Mendes não foram absolvidos, mas condenados. O acórdão vem transcrito em O Julgamento dos Padres do Macuti, ed. Afrontamento, Porto, 1973 (pp. 165 e sgs.), a que você de resto alude, mas, segundo se percebe, sem o ter lido. O Pe. Sampaio foi condenado em vinte meses de prisão e quarenta e cinco dias de multa e o Pe. Mendes em cinco meses de prisão e cinco meses de multa. Mas se considerarmos que os dois padres vinham acusados da prática de crimes contra a segurança nacional, incitamento à violência, etc., a que correspondiam penas de reclusão celular muito pesadas, o desfecho do processo foi extremamente favorável. Os dois padres saíram da cadeia, um porque teve a pena suspensa, o outro porque viu a pena absorvida pela prisão preventiva. Não comungo na sua ideia de que a pequena dimensão da pena (você, já vimos, fala erradamente em absolvição) se deveu ao peso da igreja católica. A hierarquia católica em Moçambique era, de modo geral, conservadora e comprometida com a ditadura, como se sabe. A meu ver, o papel do juiz togado foi determinante, movido pela sua consciência julgadora. Na liberdade inabitual que concedeu aos advogados durante a audiência e, é claro, na elaboração da decisão. Vivia-se então em pleno consulado Marcelista.
É ainda – suponho – a sua prevenção em relação à cidade que o leva a omitir da sua longa e generosa lista de Democratas de Moçambique (p. 292) os democratas da Beira, apesar de ressalvar que foi esta a cidade escolhida para se proceder à unificação dos vários núcleos regionais do movimento (p.p. 292, 293). Os democratas de Moçambique, sediados na Beira, tiveram um papel idêntico ao dos outros e poderia até referir alguns actos simbólicos de reconhecimento do seu empenho, mas isso excede o propósito destas notas.
Mas mais extraordinária é a sua alusão de pp. 287 e sgs. às alterações ocorridas a partir do início de Junho de 1974, com a nomeação dos novos directores para os diversos órgãos de informação e a entrada de redactores simpatizantes e militantes assumidos da FRELIMO (p. 287). Você indica, um a um, os nomes dos vários directores e até sub-directores nomeados para o Notícias, Tribuna, Tempo, Rádio Clube de Moçambique (esquecendo-se aqui do José Rebelo) e, no tocante ao Notícias da Beira, escreve o seguinte: Bem mais complicada foi a situação do “Notícias da Beira”. As mudanças estavam dependentes do controlo financeiro da equipa composta por Jorge jardim, Evo Fernandes e Mário Simonetti, que tinham um projecto próprio. Entram em disputa com a maioria da redacção que sai ganhadora em finais de Maio, com o apoio dos “Democratas de Moçambique”. Quer dizer, você silencia o facto de que o director nomeado fui eu e o chefe de redacção o José Quatorze. Dir-se-á: então tem assim tanta importância indicar os nomes das pessoas responsáveis pelos órgãos informativos? Não, é claro. Mas uma vez que se dá ao trabalho de mencionar todos os restantes (o seu livro é, de resto, um minucioso repositório de nomes), não deixará de se estranhar a omissão e mais do que a omissão a forma como você ladeia o obstáculo identitário, numa obra que – supõe-se – se pretende objectiva. Para lhe dizer francamente, eu, apesar da minha modéstia, estranhei.
Aceite os meus cumprimentos.
Lisboa, 22.08.2011
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