Thursday, September 20, 2012

Um conto Moçambicano...II


Próximo da palhota feita de canas e barro, um grupo de soldados conversava animadamente sobre os seus heroísmos e saudosismos dos tempos da guerra, quando Kwchira surgiu abruptamente, em desenfreada correria - as crianças andam sempre em correrias -, furando entre a multidão de pessoas que afogavam a rua.
Kwchira era um menino igual a muitos outros meninos da sua aldeia. Os seus dentes, muito brancos, sobressaíam no seu rosto preto de menino.
- Ei, miúdo... anda cá! - alguém chamou do grupo de soldados.
Kwchira estacou. Olhou, meio incrédulo, para o grupo de soldados que, orgulhosamente, exibia as suas metralhadoras.
- Buera Kuno! - insistia o soldado, reforçando o chamamento com um gesto da mão.
Kwchira aproximou-se, receoso. Não gostava de soldados! Tinha pavor às armas desde a noite em que uns homens trouxeram o seu pai aos ombros, com um grande buraco na garganta. Tinham sido os soldados, disseram-lhe. A partir daí, qualquer soldado era o assassino do seu pai!
- Tu vai na reza? - perguntou-lhe, seco, o soldado.
- Si... eu vai na reza! - respondeu-lhe, vacilante, o pequeno Kwchira.
- Que tu vai fazer na reza? Tu acredita no Deus? - replicou o soldado, que foi acompanhado por um coro de gargalhadas.
Os olhos de Kwchira tornaram-se maiores, enormes, e na sua pequena testa esboçou-se uma ruga. Não precisava pensar na resposta. Sabia-a de cor. Padre Francisco já o tinha ensinado.
- Si! Eu acredita... respondeu.
As gargalhadas atingiram um tom mais estridente. Apenas o soldado que tinha interpelado Kwchira permaneceu impassível. E olhando o pequeno com dureza, disse-lhe:
- Esse Deus não existe! Deus só há um... o Presidente Samora Machel! Esse é que é o teu Deus, esse é que lutou para a tua liberdade e para tu teres pão! - disse o soldado, ao mesmo tempo que apontava para o crachá que trazia pregado ao peito, com uma fotografia do Presidente de Moçambique.
Foi a vez do pequeno Kwchira sorrir, mostrando os dentes pequeninos, muito brancos, e, como um grande homem, testemunhou a grandeza dos seus talentos:
- Padre Francisco dizer a mim... Deus é bom!...
- Ah é? Teu Deus então é bom? Então pede pão ao teu Deus! - disparou-lhe o soldado, tentando deste modo destruír os andaimes da fé que já se espelhavam no rosto criança de Kwchira.
O coro de risos fez-se ouvir de novo, de forma hilariante, misturado com alguns "deixa lá o miúdo" dos mais complacentes.
Kwchira fulminou com o olhar o grupo de soldados... '''recordou-se do seu pai e daquela noite em que o viu entrar em casa com a garganta furada, e... recordou-se que nunca mais chamou pai a ninguém... só a Deus... porque o Padre Francisco lhe tinha ensinado que esse Deus era o Pai de todos e também o pai de Kwchita e'''... estremeceu.
"Pedir pão a Deus"... murmurou para consigo e... recordou-se das palavras do "Pai Nosso", a oração que já sabia de cor,... "O pão nosso de cada dia nos dai hoje...". (CONTINUA)