Próximo
da palhota feita de canas e barro, um grupo de soldados conversava
animadamente sobre os seus heroísmos e saudosismos dos tempos da guerra,
quando Kwchira surgiu abruptamente, em desenfreada correria - as
crianças andam sempre em correrias -, furando entre a multidão de
pessoas que afogavam a rua.
Kwchira
era um menino igual a muitos outros meninos da sua aldeia. Os seus
dentes, muito brancos, sobressaíam no seu rosto preto de menino.
- Ei, miúdo... anda cá! - alguém chamou do grupo de soldados.
Kwchira estacou. Olhou, meio incrédulo, para o grupo de soldados que, orgulhosamente, exibia as suas metralhadoras.
- Buera Kuno! - insistia o soldado, reforçando o chamamento com um gesto da mão.
Kwchira
aproximou-se, receoso. Não gostava de soldados! Tinha pavor às armas
desde a noite em que uns homens trouxeram o seu pai aos ombros, com um
grande buraco na garganta. Tinham sido os soldados, disseram-lhe. A
partir daí, qualquer soldado era o assassino do seu pai!
- Tu vai na reza? - perguntou-lhe, seco, o soldado.
- Si... eu vai na reza! - respondeu-lhe, vacilante, o pequeno Kwchira.
- Que tu vai fazer na reza? Tu acredita no Deus? - replicou o soldado, que foi acompanhado por um coro de gargalhadas.
Os
olhos de Kwchira tornaram-se maiores, enormes, e na sua pequena testa
esboçou-se uma ruga. Não precisava pensar na resposta. Sabia-a de cor.
Padre Francisco já o tinha ensinado.
- Si! Eu acredita... respondeu.
As
gargalhadas atingiram um tom mais estridente. Apenas o soldado que
tinha interpelado Kwchira permaneceu impassível. E olhando o pequeno com
dureza, disse-lhe:
-
Esse Deus não existe! Deus só há um... o Presidente Samora Machel! Esse
é que é o teu Deus, esse é que lutou para a tua liberdade e para tu
teres pão! - disse o soldado, ao mesmo tempo que apontava para o
crachá que trazia pregado ao peito, com uma fotografia do Presidente de
Moçambique.
Foi
a vez do pequeno Kwchira sorrir, mostrando os dentes pequeninos, muito
brancos, e, como um grande homem, testemunhou a grandeza dos seus
talentos:
- Padre Francisco dizer a mim... Deus é bom!...
- Ah é? Teu Deus então é bom? Então pede pão ao teu Deus! - disparou-lhe o soldado, tentando deste modo destruír os andaimes da fé que já se espelhavam no rosto criança de Kwchira.
O coro de risos fez-se ouvir de novo, de forma hilariante, misturado com alguns "deixa lá o miúdo" dos mais complacentes.
Kwchira fulminou com o olhar o grupo de soldados... '''recordou-se
do seu pai e daquela noite em que o viu entrar em casa com a garganta
furada, e... recordou-se que nunca mais chamou pai a ninguém... só a
Deus... porque o Padre Francisco lhe tinha ensinado que esse Deus era o
Pai de todos e também o pai de Kwchita e'''... estremeceu.
"Pedir pão a Deus"... murmurou para consigo e... recordou-se das palavras do "Pai Nosso", a oração que já sabia de cor,... "O pão nosso de cada dia nos dai hoje...". (CONTINUA)