Kwchira
rezava o "Pai Nosso" todos os dias, tal como lhe foi ensinado pelo Pe.
Francisco. Recordou-se também que sua mãe se queixava todos os dias da
falta de pão.
- Pede pão a teu Deus... diz p'ra ele: Deus dá pão! - rosnou-lhe o soldado, que agora sorria cínicamente.
"Não
era preciso pensar! Para quê duvidar? Padre Francisco sempre disse que
Deus era bom, e que dava tudo o que se lhe pedisse..." -
pensou para consigo Kwchira. E estendendo a mão em forma de concha,
falou. E falou com ingenuidade pueril, falou como um 'Homem Grande',
falou a sua fé... e a voz saiu-lhe rouca:
- Deus... dá a mim pão...
O
sol abrasador continuou a brilhar e a queimar mais e mais a dura terra
cor de sangue de Macuty, e a mão de Kwchira, em forma de concha,
continuou estendida... estendida e vazia. E o "Pai Nosso" não lhe deu
pão.
E um silêncio...
Um
silêncio de Deus ardeu profundamente no coração pequeno de Kwchira.
Sentiu embaciarem-se-lhe os olhos, a pontos de não conseguir descortinar
claramente o grupo de soldados que tinha à sua frente, e que mais
rasgaram o rosto com gargalhadas que mais pareciam uivos de hienas em
tempo de cio. Kwchira não percebeu que uma lágrima se lhe escapara do
canto do olho, e escorria agora, mansamente, afagando com ternura o
rosto negro, negro de criança.
- Agora pede pão a Samora. Diz: Samora dá pão! - falou em tom muito baixo o soldado, tentando fazer crêr ter alguma compaixão.
- Vai... pede pão a Samora! - repetiu o soldado, num tom de fingida paternidade.
- Samora... dá a mim pão. - sibilou entre dentes o pequeno Kwchira.
Um
sorriso deformou o rosto preto de ferro do soldado, que muito
calmamente meteu a mão no bolso da calça, puxando por um pedaço de pão
embrulhado num papel e estendendo-o a Kwchira.
- Toma, que quem te dá é Samora... teu Deus não te deu nada porque não existe!
Kwchira
estendeu a mão e recebeu o pedaço de pão embrulhado no papel. Recebeu
as trinta moedas que pagavam a morte do seu Deus... um pedaço de pão que
crucificava o Deus do Padre Francisco.
Rodopiou
sobre os seus calcanhares e caminhou na direcção contrária, com os
olhos fixos no pedaço de pão, as trinta moedas que mancharam de sangue
as mãos de Judas e que faziam Kwchira perder-se em mil pensamentos, que
bombardeavam brutalmente a sua cabecinha pequenina de criança. Caminhava
em direcção contrária à dos soldados, e sem dar por isso, caminhava
em direcção à Igreja feita de barro e de canas, como que enfeitiçado
pela magia do espiritual negro que a assembleia aí entoava. Os
espirituais negros são, na verdade, cânticos mágicos e só os negros os
sabem cantar.
- Kwchira!... que me trazes? Pão?
O olhar de Kwchira chocou com a figura magra do Padre Francisco, com os seus olhos muito abertos, e não suportou.
- Meu filho... quem te deu esse pedaço de pão? Ah... Senhor... Senhor!!! Como és misericordioso... - soluçou o Padre Francisco, deixando-se emocionar pelo milagre. - Hoje vamos poder celebrar a Tua ressurreição... graças a Deus! - acrescentou, limpando as lágrimas com as mãos.
Olhou com ternura para Kwchira, que estava visivelmente assustado, pois nunca vira Padre Francisco em tal estado.
- Ah, Kwchira... não tinhamos pão para celebrar a Páscoa de Senhor... Isto faz-me lembrar Abraão... "O Senhor providenciará um cordeiro manso para o sacrifício..." - disse ainda cheio de emoção o Padre.
Kwchira
não percebeu nada do que se passara, mas sentia uma grande paz
invadir-lhe o coração. Era a paz de Deus, que mansamente acarinhava e
sossegava o menino e lhe dava sabedoria para compreender que o "Pai
Nosso" tinha dado pão...! É... o "Pai Nosso" tinha dado pão... e os
filhos de Macuty poderiam também celebrar a Páscoa do Senhor.
O
sol poente já declina no horizonte, e a bola alaranjada que lameja nas
águas serenas do rio Limpopo anuncia a noite. E de longe, bem longe, se
ouve o toque do batuque..., se ouve o toque do batuque..., o toque do
batuque..., o batuque..., tuque... tuque...
...e no entanto, o confronto entre as ideologias
e a mensagem evangélica, continua... e conti-
nuará...: Este Kwchira e estes soldados não são
mais que protagonistas do nosso tempo, e na
luta entre David e o gigante Golias...
...Kwchira venceu!