Sunday, September 2, 2012

“O grupo de Kavandame não queria o II Congresso no interior de Moçambique”

Sérgio Vieira
Sérgio Vieira, ex-ministro da Segurança, ex-governador do Banco de Moçambique e ex-parlamentar, diz que Lázaro Kavandame propôs a proclamação da independência de Moçambique em Mueda e depois a libertação do resto do país, assim como queria beneficiar do esforço produtivo em favor próprio.
Como é que um jovem da classe em que pertencia decide fazer parte de um movimento de libertação de Moçambique?
Tudo depende do termo que nós vivemos e da classe a que pertencíamos. Não vamos dizer que eu nasci no Materiola, hoje é uma cidade talvez com a maior expansão no país, que é Tete. Na altura havia o quê? 2 000 a 2 500 famílias quando muito. era um sítio isolado e, para se ir à Beira, levava-se quase uma semana. Para se ir ao Zóbuè, que fica a cento e poucos quilómetros, levava-se um dia inteiro. Bom, era uma Materiola isolado. Acontecia que havia ali, como havia em todas as terriolas, dois ou três grupos de pessoas. Havia um grupo de colonos ou de pessoas portuguesas, vamos dizer assim. Essencialmente, naquele tempo, gente boa que ia para lá castigada, iam castigados pelas boas razões, porque eram republicanos, anti-facistas, anti-salazaristas. Por outro, havia uma pequena elite negra mestiça, gente que lia, que discutia, que falava. “O Brado Africano” era uma das leituras de referência, mas também outras coisas e o meu avô materno pertencia a esse grupo, os meus avós paternos eu não conheci. Os meus avós eram dali e vivi com eles também, conjuntamente com os meus pais. Meu pai era um motorista de camião. A minha mãe até aos anos 1946/47 era doméstica. Mas depois do nascimento da minha irmã, começou a trabalhar e, quando lhe perguntavam por que estava trabalhar, dizia que tinha filhos para educar. Era gente que lia, que discutia e, também, se convivia em grande parte com aquele grupo branco, que eram os bons brancos, os castigados. Eu lembro-me de um grande amigo do meu avô, que era um juiz, o Dr. Garção, que estava lá castigado e que frequentava a casa do meu avô. Esta gente tinha aspirações que eram progressistas na época. E a primeira grande aspiração era a igualdade. Quando punhámos outras perguntas, eles diziam-nos sempre que “cuidado, precisamos de formar os nossos doutores”. E porquê? Sem eles como é que vamos fazer funcionar as coisas? Sem a nossa gente como é que funciona? E nesse sentido havia um grande esforço para educar os seus filhos. Eu lembro de alguns amigos do meu avô, o velho Abreu, por exemplo, dos filhos há uma que é uma ministra, o outro é o vice-governador do banco. Estou a lembrar-me do velho Diogo, o enfermeiro, pai da Luísa e do médico Diogo. O esforço era educar os filhos e isso existia muito no nosso tempo. Depois há um segundo momento, por consequência não éramos gente rica, é verdade que na casa dos meus pais e dos meus avós havia livros e sempre houve livros. Já estávamos alfabetizados há mais de 100 anos. A segunda é quando começam as grandes mutações, e começamos a entrar em choque com aquilo que víamos com a sociedade colonial. Tive um tio avô que foi deportado para São Tomé. Nas minas que estavam ali houve parentes que morreram em desastres das minas; havia o trabalho forçado, o chibalo, havia isso tudo. E de repente numa cabeça duma criança começa a chocar. Depois veio o segundo momento, quando adolescentes, que já questionávamos. A adolescência é um período de questionamento. E veio o terceiro momento, foi muito importante dentro da minha evolução, quando chego à universidade. É preciso notar, quando digo quando chego à universidade, a universidade era em Portugal, porque, em Tete, por exemplo, em toda a província que faz 104 km2, apenas havia uma escola primária oficial. Não havia escolas secundárias, não havia nada, tanto que até os colonos abastados mandavam os filhos para Rodésia, Zimbabwe actualmente, para Niassalândia, Malawi hoje, e um a outro mandava para Lourenço Marques, porque inclusive na Beira nessa altura não havia ensino secundário, apareceu nos meados dos anos 50. Quando chego à universidade em 1958, havia uma instituição que era a Casa dos Estudantes do Império, que foi muito importante para a formação de todos nós. Esta casa dos Casa dos Estudantes do Império tinha sido fundada nos anos 30 pelo então comissário geral da Universidade Portuguesa, Marcelo Caetano, e que se destinava aos filhos dos colonos. Ora, filhos dos colonos que iam a Portugal eram gente abastada e tinham família lá, não ligavam aquilo. Depois da II Guerra Mundial, há um grupo das colónias, de Moçambique foi o Marcelino, o João Mendes, que foi expulso de Moçambique pela polícia política, o Walter Soares, a Noémia, uma série de moçambicanos, o próprio Mondlane esteve lá, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Alda Espírito Santo, Francisco José Tenreiro, o Amilcar. Toda essa gente, no fim da II Segunda Guerra Mundial, chega a Lisboa para estudar e tomam conta da Casa dos Estudantes do Império e voltaram o feitiço contra o feiticeiro. Aquilo tornou-se um espaço de troca de ideias, de formação, e um bocadinho do nacionalismo. Eu quando chego, estavam as coisas um pouco mais adiantadas e havia uma grande troca de ideias e aquelas ideias confusas, aquelas aspirações diluídas e espaças que podíamos ter começaram a encarreirar e a descobrirmos de facto o caminho. É preciso notar também que é um momento de grande convulsão, que são as independências africanas. Em 1959/60 é o assassinato do Lumumba e isto tocou-nos. São as conversas que nós temos, os livros que lemos, havia um médico de origem angolana branco, creio que era do partido comunista, que fazia assistência à Casa dos Estudantes do Império, no sentido de íamos lá às consultas (...) e ele passava-nos certos livros, revistas, etc., Presença Africana, os livros do Jorge Amado, Subterrâneos da Liberdade, e outros textos. E íamos alimentando a cabeça.
E quando é que se dá o momento crucial?
O momento crucial veio duma maneira muito forte e aberta, a exigência da libertação nacional, da independência, o que está ligado a todo o movimento que acontece no continente. É bom lembrarmos que o MPLA foi criado em 1956, celebrámos a pouco os 55 anos e, inclusivamente, eles tiveram a gentileza de convidar o Presidente Chissano, o Marcelino e eu (...). Então, havia já gente cá fora, o Marcelino, o Mario de Andrade, o Luís de Almeida, etc., e essa gente deu mais orientação. Lembre-se que é o momento que se forma a CNCP, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas; já havia o MPLA, o PAGC. Em Moçambique ainda estávamos divididos. Havia a UDENAMO, a MANU e a UNAMI. É neste momento que começam as grandes questões, o governo colonial fascista começa a intervir dentro da Casa dos Estudantes do Império, põem-nos comissões administrativas, por consequência destituindo as direcções e gerindo pessoalmente até mais tarde, por volta de 1963 (...). Em 1960 é o massacre de Mueda. Temos a informação do massacre de Mueda através dos marítimos, que nos traziam correspondências e grande parte deles eram cabo-verdianos. Andavam nos barcos da Companhia Nacional de Navegação e traziam correio e levavam correio. Isto foram os diferentes catalizadores, aceleradores, da nossa consciência e daquilo que foi acontecendo. Estamos já em finais de 1960. Em 1961, o ano começa com o ataque ao Paquete Santa Maria (...). Então, tinha se organizado uma organização para fugirmos de Portugal e juntarmo-nos à união de libertação. Cá fora estava o Marcelino, o Luís Almeida, o Lúcio Lara, e outros. Em Portugal, dos mais velhos em relação a mim, estava o Edmundo Rocha, o Paulo Teixeira Jorge, entre outros, e começámos a organizar a nossa fuga. Nesse momento havia dois grupos dos estudantes das colónias em Portugal. Havia um grupo que estava ligado à Casa dos Estudantes do Império e havia um segundo que estava no Lar de Carcavelos, que pertencia às igrejas protestantes. Tinha começado a luta em Angola e as igrejas protestantes estavam bastante ligadas à UPA, quiseram tirar estudantes cá para fora. E há dois momentos nessa ocasião, um primeiro momento em que eles queriam tirar os estudantes angolanos protestantes; e um segundo momento em que há uma discussão em Genebra (...) . Acontece que nessa discussão, as igrejas protestantes americanas não estavam envolvidas nisso, não queriam.
Mas isso foi antes da fundação da Frelimo?
Em 1961, isto são antecedentes. Então, há um certo momento que o pastor Mark Bignely insiste que saiam todos, quando a discussão está acesa ele levanta-se e mostra a tatuagem que ele tem no braço do campo de concentração, durante a segunda guerra mundial, preso pelos nazistas e diz: “estão a ver, eu sou sobrevivente e nós sobrevivemos porque cristãos, protestantes, comunistas, todos unimo-nos (...) se vocês não querem, a igreja protestante de França vai fazer”. E a igreja de França, já com todos, faz e começam as discussões sobre como fazer. Vem para Portugal um senhor francês que, era parente do ministro dos Negócios Estrangeiros, que era protestante, começa a organizar a saída. E a um certo momento, nas nossas discussões, eu disse que é bom que com cada grupo vá um pastor americano (...) e assim fez-se. O primeiro grupo saiu bem e o segundo grupo, em que fazia parte Joaquim Chissano, Pascoal Mocumbi, João Nhambine, é preso em Espanha, na fronteira com a França. Então aí, o tal pastor americano joga, apresenta o seu passaporte americano e era amigo pessoal do embaixador americano em Madrid, cujo embaixador tinha sido um daqueles apoiantes de Kenndy. E então ele fala com o presidente e o presidente fala com o governo espanhol e passaram. quando chegaram os aviões da força aérea para evacuar, voltaram vazios.
E quais foram as consequências disso?
Isso desorganizou a nossa organização. E ficou cada um por si e Deus por todos. Em Dezembro, eu fugi clandestinamente. Pouco antes tinha saído o Paulo Jorge, depois saiu o Fernando Ganhão. Quando chegámos na França, estavam muito poucos moçambicanos. Estava o Mocumbi e Chissano em Puatiey; em Paris estava eu, Ganhão, o António Matos, Rui Nogueira, Isabel Brito. Estávamos em contacto com o Marcelino e vem o presidente Mondlane em Janeiro de 1962. Tivemos vários encontros com o presidente Mondlane e, entretanto, tínhamos formado uma organização estudantil que era UNAMI, União Nacional dos Estudantes Moçambicanos e tínhamos tomado uma decisão, não íamos apoiar nenhum partido, não queríamos a repetição do que estava a acontecer em Angola.
O que vos guiava?
Queríamos a unidade. Quem era o guião, o pastor, o condutor da unidade era Mondlane. Ficámos com o Mondlane e, efectivamente, quando se faz a união, em 25 de Junho, das três organizações, aderimos à Frelimo. Chissano, se não me engano, esteve no dia 25 de Junho em Dar-es-salaam. Depois o Mocumbi esteve no I Congresso, em Setembro.
Qual era o seu principal papel quando surge o movimento?
Eu era um estudante e recebi tarefas (...). 1963, o presidente Mondlane mandou-me para Marrocos, interrompi os estudos, para cumprir tarefas e, depois em 1964 manda-me para Argélia, onde fiz também o treino militar (...) e acabei os meus estudos e depois voltei, comecei a trabalhar com o presidente Mondlane directamente
Fala-se de um período de crise no movimento entre 1965 e 1967. Qual era o motivo dessa grande crise de que tanta gente fala e que pouca vezes tentou-se explicar?
A crise teve várias origens. Está a falar da crise que depois vai culminar com o assassinato de Eduardo Mondlane. A crise teve vários momentos. Num primeiro momento, na gloss que forma a Frelimo havia uma amalgama de gente e, esse tipo de gente, não estava muito segura do que é que queria e não queria. Pensavam que a independência seria sei lá, como tinha acontecido com Tanganhica, com outros países, seria negociada e Portugal dava a independência e havia os que estavam convencidos que não, Mondlane era um deles, o Marcelino era um deles, e outros companheiros, o Gundana, o Jeremias Nhambire que agora é nosso embaixador em Portugal. Estavam convencidos que não era nada assim, não era um passeio. De tal maneira havia essa convicção de passeio que 1963 quando se forma a OUA, o secretário-geral, que era o Diala Toure, diz ao Mondlane venha a Addis Abeba e nós vamos libertar. E ele disse não, nós é que vamos libertar e não vamos a Addis Abeba. Então aqui faz-se um processo de decantação, entre os que queriam entrar numa via séria consequente e os que não queriam e que estavam à espera que as coisas viessem do céu. Então há uma decantação. Se você verifica, entre 1962, quando se forma a Frelimo, e o I Congresso e 1964/65 já há uma grande mudança naquilo que era a composição da direcção. Tinham saído, fundamentalmente, as pessoas que já estavam cá fora, não tinham raízes. Logo do princípio, Mondlane levou a sério a preparação dos quadros para desencadearem a luta de libertação nacional. É assim que vai o primeiro grupo e segundo para Argélia. No primeiro grupo até dirigiu o Magaia, que mais tarde vai para academia militar em Nanjin. O segundo grupo é dirigido por Samora, na Argélia, e começa-se a preparar a luta armada de libertação nacional, que é desencadeada em 1964. Quando começa a luta armada estava tudo bem, as pessoas estavam convictas, mas depois começam a surgir as zonas libertadas...
Gostava de ouvir um pouco sobre a história das zonas libertadas, parece-me que a Frelimo usou as zonas libertadas como uma experiência daquilo que podia vir a ser uma nação. É uma ideia errada essa?
Com certeza. Começam a surgir as zonas libertadas e começa-se a organizar a produção. Quando se organiza a produção, organiza-se a criação de riqueza e surgiram contradições. Há aqueles que querem beneficiar do esforço produtivo em favor próprio. Era grupo dos Kavandane, etc. As coisas vão se avolumando e há um certo momento em 1967, eu estive presente, em que Mondlane encarregou-me de ver essa questão, e depois participei na reunião, na qual Lázaro Kavandame propõe que as nossas forças tomem Mueda e proclamem a independência de Moçambique em Mueda e depois ia-se libertar o resto do país

Qual era a ideia de libertar Mueda e deixar o resto do país?
Era essa mesma a pergunta que nos fazíamos. Eu lembro-me que na ocasião fui ter com o chefe do Departamento de Defesa, o camarada Samora Machel, falei com o Chipande, com o Pachinuapa e toda a gente disse que era uma loucura. “Neste momento, os portugueses estão a encurralar-nos em Mueda e depois ficamos nós encurralados em Mueda? E o que é isso de tomar Mueda e proclamarmos a independência?” Viu-se que era uma solução absurda. Mas o que acontecia com esse pedido de libertar Mueda e proclamar-se a independência? Era instalar o poder, era aquilo que depois o Comité Central falou dos ambiciosos, económicos e políticos e faz-se a junção entre os dois grupos. Vai-se ao II Congresso e o grupo Kavandame boicota. Não queriam o II Congresso no interior de Moçambique, e nós queríamos discutir as coisas dentro de Moçambique. Então, vai-se ao II Congresso e o mesmo afirma os princípios fundamentais da nossa luta, que era guerra popular prolongada; o princípio de servir o povo; o princípio de respeitar o inimigo, no sentido de não maltratar civis, prisioneiros e nós temos, desculpe, essa coroa de glórias. Não houve nenhum prisioneiro de guerra que morreu nas nossas mãos. Houve situações em que morreram soldados nossos e que nossos soldados deram sangue para salvar a vida de soldados inimigos. E quando chegou o momento de troca de prisioneiros, os portugueses não nos entregaram nada e nós tínhamos a lista completa (...). O grupo do Kavandame, que era apoiado por outros que estiveram no congresso, como Simango, Nungo, etc., boicota o resultado do congresso e quer fechar a fronteira. É nesse processo de fechar a fronteira que eles assassinam o camarada Paulo Samuel Kamkomba. Que é assassinado quando ia levar abastecimento, ele era o chefe das Operações da província de Cabo Delgado. O Lázaro deserta depois do assassinato de Mondlane, junta-se abertamente aos portugueses. O assassinato aconteceu em Dar-es-salaam, com a carta-bomba, preparada na Beira, por um agente muito conhecido da PIDE, que também esteve envolvido no assassinato de João Delgado e Cassimiro Monteiro. Depois segue-se um período perturbado, até que se reúne o Comité Central.
Sentiu-se um pouco de luta pelo poder depois da morte de Eduardo Mondlane. Como é que conseguiram superar esse momento?
Penso que falar de luta pelo poder é um bocado exagerado. Havia um grupo pequeno, em termos reais, que era da junção dos ambiciosos políticos e económicos, dos que queriam fazer negócios das zonas libertadas e dos que queriam poder e havia o grosso. E a essência do grosso era a população e as forças armadas, de modo que quando chega a sessão de Abril do Comité Central, o pequeno grupo dos ambiciosos já estava isolado. Lázaro fugiu depois do assassinato de Mondlane e juntou-se aos portugueses. Então foi-se ao Comité Central e este organismo tomou as suas decisões e falou das duas linhas. Pouco depois, Simango deserta, o Nungo morre e Murrupa junta-se aos portugueses. E a partir daí acabou esse período de conflitos.
O que foi importante para o movimento voltar a unir-se, depois da desertação de Simango, que era uma figura influente?
O que foi importante é que de facto estes elementos que desertam tinham pouca presença no seio do povo.
Estamos a falar do vice-presidente da Frelimo
Sim, mas fazia muito trabalho de fora, não estava enraizado nem nas forças armadas, nem na população (...) mesmo na organização da produção o próprio Nungo estava cá fora, quem esteve ligado à produção foi o Manuel dos Santos, o Lopes Tembe, essa gente esteve ligada e tinha presença no seio do povo, os outros não.
Leia mais na edição impressa o "Suplemento Especial- 50 anos- Frelimo "do «Jornal O País»