Sunday, September 2, 2012

“Não fui um homem do partido... É muito mais fácil para mim falar do Estado do que do partido”

Terça, 10 Abril 2012 00:00 Olívia Massango
Magid Osman.
Magid Osman foi uma das figuras que participaram no conturbado processo de construção do Estado, a seguir à independência. Ocupou, entre outras funções, o cargo de ministro das Finanças.
Onde estava Magid Osman na altura da luta de libertação?
No meu caso particular, a minha participação é mais intensa após a independência nacional, porque, antes da independência, eu trabalhava numa instituição financeira em Portugal, a Caixa Geral de Depósitos, e a actividade política, na altura, fazia-se, fundamentalmente, através das forças que em Portugal lutavam contra o colonialismo. Portanto, ainda não tinha um contacto com a Frelimo, embora acompanhasse a luta da Frelimo. Esse contacto faz-se imediatamente a seguir ao 25 de Abril, em Portugal. Fui contactado por algumas pessoas para regressar e só pude regressar em Janeiro de 1975 (...). Comecei por trabalhar, na altura, no Ministério da Administração Interna, que era dirigido pelo actual Presidente, Armando Guebuza.
E qual foi a motivação para deixar Moçambique?
Na altura, fui fazer o curso superior de Economia e Finanças em Lisboa, porque não havia ainda este  curso em Moçambique. Depois de concluir o curso, fiquei mais dois a três anos em Portugal, como assistente universitário - ensinava matemáticas gerais e trabalhava na Caixa Geral de Depósitos. Não tinha grande vontade de voltar a um Moçambique colonial. Era mais fácil participar na vida política em Portugal do que em Moçambique, na altura colonial.
Como é que essa consciência política materializa-se em acções concretas em Moçambique, quando retoma em 1975?
Fui colocado no Ministério da Administração Interna. Isso tinha como objectivo fundamental testar o grau de compromisso das pessoas que voltavam para Moçambique, e eram muitas. No meu caso particular, fui colocado no Ministério da Administração Interna, embora a ideia inicial fosse a de trabalhar num banco, mas fui para o Gabinete de Estudos, e havia, digamos, a indicação de que deveria ir para a província do Niassa, o que nunca chegou a acontecer. Mas, de qualquer maneira, era um teste para saber se a pessoa tinha um compromisso firme ou não. No meu caso particular, o compromisso era firme, porque, mesmo quando estava em Portugal, a ideia de voltar para Moçambique era tão forte que as oportunidades de constituir raízes em Portugal foram rejeitadas. Por exemplo, trabalhava numa instituição financeira e podia obter empréstimo em condições excepcionais para adquirir uma casa, mas não o fiz, porque não queria criar raízes. Queria ficar completamente disponível para voltar para Moçambique. E mesmo mais  tarde, quando em 1992 saí de Moçambique para trabalhar para as Nações Unidas, em Nova Iorque, continuava com o propósito de voltar, não obstante ter uma posição muito elevada nas Nações Unidas. Quando viajava pelo mundo fora em missões de consultoria a vários governos, sentia uma certa saudade de participar na vida política, o que mantinha o desejo de voltar para Moçambique, para dar a minha contribuição. Havia o receio em relação à saída dos quadros portugueses, mas ao mesmo tempo a convicção de que ia acelerar o processo de formação dos quadros nacionais.
E acelerou, ou melhor, criou uma certa pressão?
Criou uma pressão, mas também criou dificuldades. Dou exemplo vivido por mim. saí da Administração Interna para o Ministério das Finanças, como director nacional de Finanças, e, na altura, tutelava quase todos os sectores, com excepção das Alfândegas, que eram uma unidade independente. Para suprir a falta de quadros, recrutámos 20 jovens que estavam na fase final da formação universitária, para criar capacidades nacionais, e devo dizer que alguns portugueses ficaram mais alguns anos e deram uma contribuição importante na formação e enquadramento de quadros moçambicanos.  Posso dar exemplos de algumas pessoas que trabalharam comigo: Ibraimo Ibraimo - que hoje é presidente Executivo do BCI, era chefe do Departamento de Finanças (mais tarde director nacional), e acabou o curso de Direito quando ainda trabalhava comigo, e como ele havia muitos outros quadros, como Bonifácio Dias, inclusive a antiga primeira-ministra Luísa Diogo, mas no caso dela concluiu o mestrado no ensino à distancia, numa iniciativa que foi desenvolvida ao nível do Ministério das Finanças, com a Open University de Londres. Foi uma - entre muitas outras - iniciativa de formar quadros sem perder capacidades que eram necessárias para a gestão corrente do Ministério. Houve um esforço muito grande de formação não só académica, mas também formação no lugar, e isso era absolutamente crucial, porque, ao contrário de muitas outras instituições, a Direcção nacional de Finanças não podia passar por grandes perturbações, como aconteceu em outras instituições públicas, pois tinha muitas exigências correntes por cumprir - preparar os orçamentos, pagar as despesas públicas, assegurar o pagamento de salários, gerir a dívida pública, cobrar impostos, etc., sob pena de paralisar sectores importantes da administação pública. Ao contrário do que  aconteceu em muitos países africanos, em que o funcionário público ficava períodos longos sem receber salários, Moçambique conseguiu evitar esta situação. É uma tradição que, no essencial, se mantém ainda hoje.
Logo após a independência, depois de ultrapassarmos o desafio da libertação nacional, vieram os desafios de construção de um Moçambique novo, um Moçambique nas mãos dos moçambicanos. Em 1977, a Frelimo organiza o seu congresso, onde traça várias políticas de desenvolvimento, incluindo aspectos económicos e sociais, com a colectivização dos campos. Relativamente ao Plano Prospectivo Indicativo, qual foi a visão dos economistas moçambicanos nessa altura, em particular do Dr. Magid Osman?
Talvez seja útil lembrar alguns dos fenómenos que aconteceram logo a seguir à independência. Primeiro, a economia de Moçambique era extremamente dependente da África do Sul. Tínhamos milhares e milhares de moçambicanos que trabalhavam na África do Sul, cujas remessas, em particular daqueles que trabalhavam nas minas, eram convertidas em ouro, a preço oficial, ou seja, 36 dólares por onça. Este ouro era vendido - pelo menos parte - ao preço de mercado, que subiu drasticamente, passando para os 200 dólares. O ganho, que era grande, sustentou durante algum tempo o  funcionamento regular da nossa economia. E o governo sul-africano, consciente da importância deste ganho para a nossa economia, denunciou unilateralmente este entendimento, deixando por isso de converter parte dos salários em ouro a preço oficial. Além disso, começou a reduzir significativamente o número de trabalhadores moçambicanos nas minas sul-africanas, uma prática que se estendeu a outras áreas – reduziu o uso do porto de Maputo, que chegou a manusear, no período colonial, cerca de 14 milhões de toneladas/ ano, desviando a carga sul-africana para os  portos sul-africanos. Em consequência, nos primeiros anos de Independência Nacional, surgiram  dificuldades enormes para  manter a nossa economia a funcionar, e é exactamente na altura do Congresso que surgem as carências generalizadas de produtos de primeira necessidade, o que determinou a necessidade de criar um sistema nacional de abastecimento, para assegurar que as populações urbanas tivessem acesso a um mínimo para a sua sobrevivência. E foi nessa na altura que, numa decisão pouco pensada, se contraiu um empréstimo, do Brasil, de 200 milhões de dólares para comprar bens de consumo, e, obviamente, estes bens de consumo aliviaram a situação de abastecimento apenas por um período curto de tempo. E rapidamente voltámos à situação de carência generalizada nas cidades, em particular na de Maputo. Esta solução, que não era sustentável, criou um outro problema, o de não conseguirmos honrar os nossos compromissos em termos da dívida que tínhamos assumido. Estávamos  super-endividados, e não conseguíamos pagar.
Isso significa que tínhamos dificuldades em várias frentes ao mesmo tempo, grande parte das quais com origem na sabotagem económica e militar dos sul-africanos, às quais se acresceram outras, como a de não termos acesso aos mercados financeiros internacionais, porque estávamos em incumprimento sistemático das nossas obrigações. As nossas exportações também começaram a cair, por razões que não vale a pena mencionar. O Serviço Nacional de Abastecimento (SNA), quando foi criado, era fundamentalmente para assegurar que as populações urbanas tivessem acesso a alguns produtos básicos em quantidades muito limitadas e preços controlados. no mercado, os mesmos produtos, quando existissem, custavam 20 vezes mais do que os preços controlados. Esta é a vivência que tínhamos do dia-a-dia no que toca ao abastecimento. Como é que surge a ideia do PPI – Plano Prospectivo Indicativo? O impacto das sanções à Rodésia foi enorme e afectou-nos a vários níveis, pois o porto da Beira deixou de funcionar, porque servia, fundamentalmente, a economia rodesiana. Na reunião do Conselho de Segurança que discutiu esta questão, Moçambique estava representado pelo  então ministro dos Negócios Estrangeiros, Joaquim Chissano, que apresentou o porquê das sanções e solidariedade que esperávamos da comunidade internacional, e, na altura, pedimos o apoio de economistas experientes para a preparação de um programa que identificasse as nossas necessidades para um eventual apoio da comunidade internacional. Mas os economistas solicitados não vieram e decidimos, por isso , juntar dezenas de quadros moçambicanos e alguns portugueses com grande experiência da realidade moçambicana para elaborar esse programa. Foi um exercício colectivo que envolveu muita gente e permitiu fazer, pela primeira vez, um esforço  de programação. Este programa foi mais tarde apresentado numa nova reunião do Conselho de Segurança, e a delegação moçambicana era chefiada por Marcelino dos Santos, que era, na altura, o ministro do Desenvolvimento, para apresentar aquilo que pensámos que seriam as nossas necessidades. Foi, digamos, o primeiro exercício de programação na utilização de meios para satisfazer as necessidades consideradas prioritárias (...), depois disso houve muitos outros esforços de planificação que deram origem, mais tarde, ao PPI. Quanto ao apoio da comunidade internacional, ficou-nos uma lição – qualquer emergência em termos de apoio da comunidade internacional tem uma duração muito limitada, até surgir outra emergência. Tivemos uma ajuda considerável no primeiro ano, mas, depois, foi baixando, porque, entretanto, surgiram outras emergências em outros pontos de globo e os países esqueceram-se das necessidades de  Moçambique, e, em consequência, tivemos que arcar sozinhos com as consequências económicas e outras das sanções. É verdade que as sanções foram aplicadas por uma causa nobre, mas o sacrifício que tivemos que suportar foi imenso, e o mesmo não acabou com o regime de Ian Smith, pois, entretanto, surgira um inimigo mais poderoso, que era o regime de apartheid. Um economista americano, Reginald Green, estimou que a redução do PIB de Moçambique, por causa da guerra de desestabilização, tinha sido brutal, isto é, todos os anos, a produção de  Moçambique decrescia consideravelmente, ao ponto de, em alguns anos, termos perdido no conjunto o equivalente à produção de um ano. Hoje, quando em alguns países europeus a economia decresce menos de 1% há tumultos e uma profunda crise política. No nosso caso, a queda da produção durante anos e anos foi violentíssima, com destruição massiva de infra-estruturas, pontes, centenas de escolas, postos de saúde, empresas paralisadas, etc..
 De onde é que surgiu a ideia do Plano Perspectivo Indicativo?
A ideia de preparar o Plano Prospectivo Indicativo resulta de um discurso do Presidente Samora Machel, em que traça os objectivos a longo prazo, onde define que é necessário criar uma fábrica têxtil em todas as cidades e enumera outros projectos  regionais. e aproveitou-se  alguma experiência anterior de programação, por exemplo, aquando do Congresso, com a preparação das directivas económicas e sociais, para iniciar a preparação do plano. Este processo de preparação era abrangente, com muitas reuniões participativas, e com pessoas de todos os quadrantes, e este processo era, digamos, uma marca da Frelimo. Lembro-me que se  faziam reuniões que iam até à meia-noite a discutir as directivas económicas e sociais, e, às vezes, tínhamos discussões muito agitadas entre as pessoas que não concordavam com determinado tipo de objectivo. Alguns não concordavam em absoluto com a ideia das directivas, outros porque achavam que os objectivos fixados não seriam atingidos por serem irrealistas, e noto que, na altura, as directivas económicas e sociais eram muito detalhadas e tinham, inclusive, metas quantificadas. Importa, também,  salientar que este processo era mais importante que o resultado, pois embora algumas metas fixadas fossem irrealistas, o processo, no entanto, permitia que muitos problemas e soluções fossem adequadamente internalizados, facilitando a definição das medidas e a sua implementação. A outra experiência anterior foi a de organização do Plano Estatal Central (PEC), que passou a ser uma referência nacional. Em qualquer distrito do país mencionava-se o PEC, o que revela a grande capacidade mobilizadora da Frelimo. Como disse, o programa de emergência, aquando das sanções ao regime de Ian Smith, terá sido pioneiro neste esforço de programação. Na elaboração do PPI, seguiu-se o mesmo processo de participação, e muitos projectos nele contemplados, tidos como irrealistas, estão hoje a tornar-se realidade, mas com um conceito de modelo de negócios completamente diferente. Recordo-me que, na altura de preparação do PPI, discutíamos se a meta para o carvão seria 10 ou 12 milhões, e existia um consenso generalizado de que era uma meta quase impossível, e hoje a meta para o carvão situa-se entre 100 e 120 milhões de toneladas por ano. Isso revela que, afinal, o PPI não era assim tão ambicioso e irrealista, pelo menos no que se refere a recursos minerais. O mesmo se pode dizer em relação ao alumínio, cimentos, etc. Infelizmente, as metas referentes à agricultura não têm tido o mesmo comportamento. O PPI pecava no facto de considerar que o Estado faria todos os investimentos necessários. ora, o Estado - incluindo as empresas públicas - não tinha capacidade, nem em termos financeiros, nem em termos de capacidade de gestão e técnicos. A nossa base de recursos humanos era e continua a ser muito débil. Hoje, são as grandes multinacionais que tornam uma versão muito mais avançada do PPI  realidade, pelo menos em alguns sectores.
Na década 80, os desafios tornaram-se cada vez maiores para o partido Frelimo. Houve pressão vinda da guerra de desestabilização, das  calamidades naturais, com cheias  seguidas de secas e vice-versa, criando fome generalizada, agravada pelo grande número de refugiados (...) que não estavam de acordo com  a linha de desenvolvimento que o partido Frelimo tinha traçado, o que o obrigou a abandonar o modelo de economia centralmente planificado para liberalizar a economia. Como é que viveram esses momentos? Qual foi o nível de influência de Magid Osman desde os primeiros anos da mudança, nas visitas aos EUA, na adesão às instituições de Bretton Woods até à elaboração do Programa de Reabilitação Económica (PRE)?
Falava, muito recentemente, com um colega sobre este assunto, destacando a qualidade dos dirigentes da Frelimo, que mesmo em situações desesperadas mantiveram a determinação de optar por soluções políticas correctas em cada momento, pois eram propostas soluções que aparentemente resolveriam o problema do conflito, mas a longo prazo transformariam o país numa neo-colónia. Exemplificando, tentou-se, em determinado momento, devolver as casas aos donos anteriores à Independência Nacional, e no caso de sul-africanos, as casas que tinham na Ponta de Ouro, como um gesto de rendição disfarçado como sendo de boa vontade. Por outro lado, pode imaginar o desespero provocado pela escassez de recursos. a Defesa e Segurança absorviam uma grande percentagem de recursos do Estado, mas era manifesto que este esforço, mesmo desproporcionado, era insuficiente, porque o  abastecimento às forças armadas continuava sendo  insuficiente. A destruição de infra-estruturas e de equipamento era colossal - locomotivas  recém-adquiridas eram  destruídas na primeira emboscada  e cada uma das locomotivas custava  1 milhão de dólares que faziam falta para o funcionamento de outros sectores. As linhas de alta tensão eram sabotadas e havia falta sistemática  de energia nas cidades; compraram-se dezenas de camiões para se transportar o chá de Gurúè, que foram também destruídos. 
E como é que foi para o Presidente Samora Machel aceitar a ideia de que é preciso “bater a porta” das instituições de Bretton Woods e estabelecer contacto com os americanos? Creio que foi em 1983 que fez a primeira viagem e já em 1984 Moçambique fazia parte dessas instituições de Bretton Wodds.
A Frelimo tinha um princípio que era o de criar amigos para isolar o inimigo, e, a partir de uma certa altura, a direcção da Frelimo terá percebido que o modelo que estava a seguir de contar apenas com ajuda dos países socialistas, em particular da União Soviética, não resolveria nem o problema da situação de guerra que nós vivíamos, nem traria os meios económicos necessários para o processo de desenvolvimento, e, sobretudo, não isolaria o inimigo. Por exemplo, os Estados Unidos, que não eram propriamente um país amigo, tornam-se, no âmbito do programa de emergência, o principal doador em termos de ajuda alimentar, digamos que eram o principal suporte do programa de emergência. Além disso, a ajuda que recebíamos dos  países nórdicos e de outros  países europeus ultrapassava em grande medida a ajuda proveniente de países socialistas, em que só a União Soviética, RDA e  Cuba davam alguma contribuição significativa. O apoio vinha também de outros quadrantes, por exemplo, vivíamos o drama anual de  assegurar o fornecimento dos combustíveis, pois não havia divisas para a sua importação, e isso levou-nos a procurar apoio dos países produtores de petróleo. Por exemplo, o Iraque vendeu-nos 300 mil toneladas de crude a crédito. Depois a Líbia,  e seguir a  Argélia venderam-nos a mesma quantidade, também a crédito. Quando foi esgotado o apoio destes três países, que não repetiam este tipo de ajuda  porque não conseguíamos honrar o serviço da dívida, procurávamos apoio de outros países, embora sem grande sucesso .
Em 1986, em Abril, foi convidado a ocupar a pasta de ministro das Finanças. Que desafios encontrou neste Ministério, tendo em conta a situação do país?
Em 1986 fui indicado, mais do que convidado, para assumir a pasta de ministro das Finanças, e a razão fundamental era a consciência ao nível da direcção do país que era necessário mudar, experimentar outras soluções de gestão económica. Na terminologia moderna, dir-se-ia que era necessário um agente de mudança, e governo na altura, no seu conjunto, foi um agente de mudança,  e isso foi possível  porque o ambiente político era favorável à mudança. Com isso, quero dizer que não basta uma vontade própria e subjectiva, pois é necessário que existam outras condições propícias para que as mudanças ocorram. As crises criam, por vezes, essas oportunidades.
E qual foi a mudança mais marcante?
A mudança mais marcante foi termos introduzido uma economia de mercado. Ou melhor, preparámos um programa que, na altura, se designou PRE, que teve a contribuição de muita gente e cujo objectivo foi introduzir a afectação de recursos pela via das forças de mercado. Esse processo foi muito complexo em termos negociais. Por exemplo, não conseguimos convencer o FMI de que estávamos determinados a introduzir as medidas previstas no PRE, pois, no passado, tinha havido promessas que não foram implementadas. Isto é, embora gostassem do nosso programa,  não acreditavam na nossa capacidade  de implementação, porque  não tínhamos credibilidade. A solução de compromisso foi a de iniciarmos a implementação em Janeiro de  1987, sem um a acordo formal com FMI , o que veio   a suceder alguns meses mais tarde, depois de implementar as primeiras medidas. Um acordo com o FMI, politicamente, era crucial, pois representava uma disponibilidade institucional para evoluir para uma economia de mercado e traduzia a imagem de que a direcção da Frelimo era, acima de tudo, pragmática e nacionalista. Isto é, estava disponível para adoptar medidas que fossem as mais convenientes para os interesses nacionais. O Presidente  Samora, certamente, interrogava-se sobre o que seria melhor para Moçambique, socialismo ou capitalismo? E respondia a esta questão com outra: “Mas se o capitalismo é tão bom”, dizia ele, “por que é que o Malawi não se  desenvolveu?”, e dizia que “não tenho problema nenhum de seguir a via capitalista, desde que a cidade de Maputo possa, no futuro, ser como a cidade de Nova Iorque”. Contudo, a adopção do PRE, que chegou a ser aprovado pela Comissão Política, presidida pelo Presidente Samora, revela que o pragmatismo tinha se sobreposto à ideologia.
O PRE significou uma viragem muito profunda para a banca nacional, num contexto em que a guerra também criava uma certa pressão sobre a estabilidade da economia. Por um lado, o Governo queria que as empresas funcionassem, para dar conta deste programa de reabilitação económica e evitar que dezenas de milhares de pessoas fossem desempregadas, por outro, havia a necessidade de se criar  uma classe empresarial. O que é que mais determinou para a atribuição de crédito sem muito rigor naquela altura? Foi a questão do incentivo à emergência de uma classe empresarial ou o facto de se querer garantir que as empresas não entrassem em falência?
Uma das características do PRE foi exactamente tentar disciplinar o funcionamento das empresas estatais. O que é que isso significou? Significou que os bancos deviam começar a avaliar a concessão do crédito na base de mérito, com a excepção de algumas empresas estatais que tinham  uma importância muito grande para a economia, por isso, não podiam ficar paralisadas, mas mesmo nesses casos foi introduzida disciplina orçamental. Muitas empresas (eram centenas), que tinham a tradição de ir buscar dinheiro à banca, na altura o BPD e  o Banco de Moçambique,  deixaram de ter acesso automático a esses créditos. Significa que as empresas com comissões administrativas entraram em ruptura financeira que era esperada, pois, logo a seguir, implementou-se um programa ambicioso de privatização. Portanto, o PRE fez um saneamento e racionalização  da maior parte das empresas com comissões administrativas .
Magid Osman testemunhou vários projectos de combate à pobreza do governo da Frelimo, desde o PPI, PRE, até ao PARPA, mas a pobreza continua a ser um dos grandes desafios do governo da Frelimo. Qual é, de facto, o modelo mais acertado para reduzir a níveis bastante significativos a pobreza que nos assola?
Quando falamos de pobreza, economia e desenvolvimento, podemos, numa expressão muito simples, dizer que desenvolvimento é fundamentalmente o aumento de produtividade. Portanto, se não há aumento de produtividade não há desenvolvimento e,  sobretudo, não há alívio de pobreza. O que é que contribui para o aumento de produtividade? São vários factores que confluem para o aumento da produtividade: a criação de infra-estruturas, que nós chamamos capital físico, equipamento moderno, capacitar as pessoas (através de educação e formação e organização de trabalho mais eficiente) para que sejam mais produtivas no dia-a-dia. Enquanto não conseguirmos aumentar a produtividade dos nossos camponeses do sector familiar, será extremamente difícil termos sucesso no combate à pobreza. Para mim, a questão essencial é o aumento da produtividade dos nossos camponeses. Jeffrey Sachs, economista americano, faz referência a esse aspecto de uma maneira mais ilustrativa, quando se refere ao exemplo das mulheres de Bangladesh, que saem do campo para a cidade para trabalharem nas fábricas de confecções  em condições muito difíceis (pois, porque vivem em camaratas, comem em refeitórios, a vida privada é muito restrita, etc...), mas, mesmo assim, sair do mundo rural (onde as condições são muito piores) para ir trabalhar numa fábrica de confecções representa um salto histórico. Porque ela deixou de ser uma mulher rural (sujeita à brutal pressão e condicionamento que resulta da tradição) e passou a ser uma operária, aumentou a sua consciência política e dos seus direitos, dado que passou a ter acesso a todo um conjunto de informações que não tinha enquanto mulher rural. Diz ainda Jeffrey Sachs  que  o campo não se pode transformar sozinho, exige um grande investimento de transformação . Por exemplo, o nosso camponês, entregue a si próprio, não vai conseguir aumentar a produtividade de  400 a 500 quilos de algodão por hectare, para, como acontece na África Ocidental, produzir 1500 a 1600 quilos de algodão por hectare, sem uma intervenção mais forte do Estado e de outros agentes económicos.