Na altura em que Moçambique vai de novo a votos, para eleições autárquicas cuja campanha foi marcada por vários incidentes e trocas de acusações de irregularidades em praticamente todo o país, publicamos a reportagem de uma visita ao quartel-general do principal grupo da oposição, política e armada. Uma viagem até ao “coração” da serra da Gorongosa, onde uma lata de refrigerante usada pode ser um objeto valioso
Texto e fotos Sílvia Fernandes
o alto da Serra da Gorongosa, a brisa sopra fresca e suave como um bálsamo, revigorando o corpo desgastado pela longa viagem até aquele ponto, no centro de Moçambique.
O destino final ficava ainda a algumas horas de distância, e o resto do caminho já não permitia a passagem do carro, deveria ser feito a pé. Para trás tinham ficado cerca de 1.200 quilómetros de estrada, desde a capital, Maputo, percorridos pela EN1, principal eixo rodoviário do país, mas cujas condições de circulação nos levaram a perceber porque são ali as vias também conhecidas como “corredores da morte”.
A partir daquele ponto, os cuidados deveriam ser reforçados. Afinal de contas, os avisos feitos na preparação da viagem tinham sido muito claros: “É uma zona de guerra. Não existe um Acordo de Paz, esse foi violado, o que está em vigor é uma trégua...”
Uma trégua “frágil”, dada o ambiente vivido nas últimas semanas, durante a campanha eleitoral para as autárquicas desta quarta-feira, marcada por vários incidentes e trocas de acusações de irregularidades em praticamente todo o país.
A trégua vigora desde finais de 2016, e foi alcançada depois de um acordo entre o Presidente da República de Moçambique, Filipe Nyusi, e o então presidente da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), principal partido da oposição, Afonso Dhlakama, falecido no passado dia 3 de maio.
Negociações de paz com supervisão internacional
Para além de terem posto cobro a mais de três anos de conflito armado, que se traduziram em violentos combates, particularmente na região da Serra da Gorongosa, as tréguas viriam também abrir caminho para as negociações de paz e para o processo de desmobilização e reintegração das forças da RENAMO nas forças armadas moçambicanas, processo que prossegue atualmente, mediado pela comunidade internacional, entre o Presidente da República e o novo líder da RENAMO, general Ossufo Momade, que substituiu Afonso Dhlakama na direção dos destinos do partido.
Texto e fotos Sílvia Fernandes
o alto da Serra da Gorongosa, a brisa sopra fresca e suave como um bálsamo, revigorando o corpo desgastado pela longa viagem até aquele ponto, no centro de Moçambique.
O destino final ficava ainda a algumas horas de distância, e o resto do caminho já não permitia a passagem do carro, deveria ser feito a pé. Para trás tinham ficado cerca de 1.200 quilómetros de estrada, desde a capital, Maputo, percorridos pela EN1, principal eixo rodoviário do país, mas cujas condições de circulação nos levaram a perceber porque são ali as vias também conhecidas como “corredores da morte”.
A partir daquele ponto, os cuidados deveriam ser reforçados. Afinal de contas, os avisos feitos na preparação da viagem tinham sido muito claros: “É uma zona de guerra. Não existe um Acordo de Paz, esse foi violado, o que está em vigor é uma trégua...”
Uma trégua “frágil”, dada o ambiente vivido nas últimas semanas, durante a campanha eleitoral para as autárquicas desta quarta-feira, marcada por vários incidentes e trocas de acusações de irregularidades em praticamente todo o país.
A trégua vigora desde finais de 2016, e foi alcançada depois de um acordo entre o Presidente da República de Moçambique, Filipe Nyusi, e o então presidente da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), principal partido da oposição, Afonso Dhlakama, falecido no passado dia 3 de maio.
Negociações de paz com supervisão internacional
Para além de terem posto cobro a mais de três anos de conflito armado, que se traduziram em violentos combates, particularmente na região da Serra da Gorongosa, as tréguas viriam também abrir caminho para as negociações de paz e para o processo de desmobilização e reintegração das forças da RENAMO nas forças armadas moçambicanas, processo que prossegue atualmente, mediado pela comunidade internacional, entre o Presidente da República e o novo líder da RENAMO, general Ossufo Momade, que substituiu Afonso Dhlakama na direção dos destinos do partido.
Desde finais da década de 70 do século passado, a Serra da Gorongosa é considerada o “território da RENAMO”. Por aqui se passaram décadas da sua história, daqui saíram as suas principais decisões, aqui foram instaladas as suas bases e aqui se encontra ainda o seu Quartel-General, território interdito a pessoas estranhas à cúpula do partido e destino desta nossa viagem.
Logo no início da subida da serra, a forte presença militar das forças governamentais, de blindados e de vários postos de controlo não nos deixam esquecer o alerta: “estamos numa zona de guerra…”
Num dos postos, depois de uma exaustiva sessão de perguntas, os dados de identificação são retirados até ao ínfimo detalhe para um caderno, com a transcrição, inclusive, do cabeçalho do documento: “Re-pú-bli-ca-de-Mo-çam-bi-que”... vai ditando o agente policial para o colega.
“Este boné é mesmo da Nike? É bonito…”
A este, juntam-se dois homens à civil que nitidamente ocupam posições hierarquicamente superiores. A sessão de perguntas prossegue, enquanto um terceiro elemento revista o carro. Um objeto chama a sua atenção: “Este boné é mesmo da Nike? É bonito…” A partir dali o ambiente torna-se mais leve e a conversa flui. Fala-se do tempo, que “na serra a humidade não é para brincadeiras e as temperaturas podem descer até aos 2 ou 3 graus”, que a alimentação na região não é tão rica mas que “como a xima de mapira (prato típico de farinha de sorgo cozida) não há igual”, e que nesta época do ano “os ratos já não aparecem”, pelo que não os têm “comido muito…”
Um dos elementos confessa ser do Sul, enquanto os colegas são de Manica, província do centro, onde nos encontramos. Veio destacado de Maputo e está há várias semanas longe da família: “Custa muito, mas quero que tudo corra bem, que haja paz, para eu poder voltar para casa antes do final do ano”.
Não deixa de ser curioso como a palavra “paz” acaba por surgir em quase todas as conversas.
A viagem prossegue, e a serra vai desvendando trilhos que só se tornam visíveis a poucos metros de distância. O ar vai ficando cada vez mais leve e a presença humana torna-se escassa. Casas queimadas e uma igreja improvisada completamente destruída trazem-nos de volta à realidade: uma paisagem de sonho onde se viveu um pesadelo.
Para trás ficou a Base de Santujira, tomada em outubro de 2013 pelas forças governamentais e que representou para a RENAMO uma clara violação do Acordo de Paz, que vigorava desde 1992. Da troca de acusações sobre a responsabilidade por tal violação, reacendeu-se o conflito armado, que só viria a ser interrompido com um anúncio de tréguas unilateral feito por Afonso Dhlakama em dezembro de 2016, para permitir a livre circulação de pessoas e bens durante o período das festas.
Inicialmente temporária, a trégua viria a dar lugar a um cessar-fogo “sine die”, graças ao clima de entendimento e de confiança que, entretanto, se desenvolveu entre o então líder da RENAMO e o Presidente da República, e que abriu caminho para as conversações de paz…em clima de paz!
Uma “cimeira” no meio do mato, em agosto de 2017
A densa vegetação, de onde se destacam árvores seculares de troncos e copas majestosas, quais sentinelas de onde espreitam os espíritos vigilantes dos antepassados, vai-nos acompanhando ao longo da subida pela serra, até chegarmos finalmente a uma clareira sombreada por enormes mangueiras. Estamos na última fronteira que separa o acesso aos estranhos da Base Militar. Este foi também o local onde Afonso Dhlakama e Filipe Nyusi se reuniram no dia 6 de agosto de 2017, para consolidar a confiança mútua. A partir daqui foi anunciada ao mundo a intenção conjunta de se trabalhar em prol da paz, com o compromisso de ambas a partes de se empenharem nesse objetivo.
O local é propício para uma pausa e para se tentar recuperar o fôlego. Poucos minutos passados, uma estranha sensação de que estamos a ser observados começa a pairar no ar. De repente, da densa vegetação que cerca a clareira surge uma figura. Depois outra, e depois mais outra. Em menos de nada, estamos cercados por cerca de dez homens. “São nossos, não se preocupe”, diz o dirigente do partido RENAMO que me acompanha. Toda a viagem havia sido cuidadosamente preparada e esta situação estava prevista. “São os nossos Rangers e vêm-nos apanhar para fazermos o resto do percurso”.
De olhar desconfiado mas sorriso afável, um a um os homens vão-se aproximando e cumprimentando. Vivem há anos no meio do mato, longe de tudo e de todos. Conhecem a serra como a palma das suas mãos. Mãos ásperas e cansadas da guerra. Mas prontas a regressarem a combate se assim for necessário. “Estávamos nas nossas casas quando o nosso chefe, o Presidente Dhlakama, nos chamou em 2013. E nós viemos. Voltamos aqui para a serra. Estamos aqui e vamos continuar até nos deixarem voltar para casa com alguma dignidade. É só isso que queremos, alguma dignidade”, dizem.
“Desta vez não nos vamos deixar enganar”
As expressões dividem-se entre o sentimento de revolta e de alguma desilusão. “É que desta vez não nos vamos deixar enganar, não podemos deixar que volte a acontecer, como em 1992, em que nos deram uma catana, um balde, um saco de cimento mais uma enxada e mandaram-nos para casa. Não podem fazer isso connosco. Também lutamos pela liberdade deste país, estamos aqui a dar as nossas vidas para que haja justiça com o povo, merecemos ser respeitados”. A afirmação surge quase como um grito de revolta.
Todos sabem o que se passa em Maputo. Está uma Comissão a trabalhar com esse objetivo, para a sua reintegração ou desmobilização, conforme os casos. “Sim, mas não sabemos se podemos confiar, já fomos enganados no passado. Agora temos que ser ainda mais cautelosos do que fomos”, sublinha um dos rangers.
O caminho prossegue, sinuoso, entre plantações de bananas e outras verduras que servem de base à alimentação da população com que nos vamos cruzando no caminho. “São pessoas que vieram atrás de nós. Com a intensificação dos combates nestas terras, a população veio procurar refúgio”, diz um dos rangers. “Lá ao fundo, naquela direção, (diz, apontando para o sul), está o Parque Nacional da Gorongosa”. O parque, que chegou a ser um ex-libris da África Austral na época colonial, depois de décadas de abandono tem vindo a recuperar o seu prestígio nacional e internacional. Atualmente, a reserva é um destino turístico de referência no país e presença habitual na imprensa estrangeira da especialidade.
A reserva animal prolonga-se até à serra e em algumas épocas do ano são visíveis algumas espécies a vaguear pelas encostas. A vegetação serve-lhes de alimento e de refúgio. Mas a relação com a população nem sempre é pacífica. A escassez de alimentos na região não permite desperdiçar uma boa fonte de proteínas quando esta aparece. Aliás, nada ali se desperdiça, tudo é aproveitado.
A lata de refrigerante vazia pode e deve ser atirada para o chão, de preferência próximo de uma povoação. “O que pode parecer um gesto pouco cívico para um europeu, nestas zonas é um gesto humanitário. Esse objeto, que na cidade consideramos lixo, aqui vai ser apanhado e servir de copo para alguém”, explicam.
Horas depois, chegamos finalmente ao quartel-general da RENAMO. A aguardar está uma comissão de boas-vindas formada por altas patentes militares. Com olhares curiosos mas desconfiados perante uma presença estranha ao local e ao partido, um a um vão-se apresentando e cumprimentando. Ao longe, a uma distância imposta pela disciplina militar a que está sujeita a base, alguns militares acompanham também a chegada.
Algumas mulheres fardadas sobressaem de entre as presenças masculinas. Pertencem ao DF, Destacamento Feminino, braço armado da RENAMO composto por mulheres que se entregaram à causa. Poucas pessoas conhecem a sua existência, contudo, ninguém nega a sua importância no terreno. Presença discreta nas bases e no campo de batalha, as suas funções passam pela logística, serviços de saúde e alimentação, mas também pela luta armada. Em alguns casos, muitos casos, ao longo da história do movimento, acabaram por se casar com os companheiros de luta e formar família. Hoje como no passado, ali estão novamente. Também elas regressaram à luta quando o líder da RENAMO chamou a si os seus militares.
Alerta constante
A leveza do ar da montanha contrasta com o ambiente da base, onde vigora o constante estado de alerta. A poucos metros do ponto de chegada está um pequeno conjunto de casas típicas de construção precária que preenche uma pequena clareira, devidamente protegida por árvores de grande porte.
De uma das casas, um homem cuja autoridade se impõe pela sua simples presença sai para nos receber. A reverência perante a sua figura é notória. Chama-se Ossufo Momade e é novo líder da RENAMO. Encontra-se nesta base desde maio passado, onde antes estava também o seu antecessor, Afonso Dhlakama.
Após a morte do líder histórico da RENAMO, Ossufo Momade foi o nome escolhido para lhe suceder. A sua nomeação por parte da Comissão Política foi feita por unanimidade. General que durante quatro décadas lutou ao lado de Dhlakama, ocupou o cargo de secretário-geral do partido durante seis anos e é deputado há três legislaturas, conciliando uma longa carreira política e militar dentro do partido desde a sua fundação.
Com uma atitude discreta desde que assumiu a liderança interina do partido, Ossufo Momade explica porque optou por abandonar a capital para ficar na base. Ali está com os seus homens, a partir do quartel-general vai coordenando as negociações que estão a decorrer e a campanha eleitoral que terminou no passado domingo.
Reiterando o compromisso do partido para o alcance de uma paz efetiva, o general não deixou de lamentar a forma como decorreu a campanha, com vários incidentes violentos e deixa um aviso: a RENAMO irá recorrer à intervenção dos seus rangers caso a FRELIMO engendre algum plano que ponha em causa a integridade física dos seus membros ou os resultados nas eleições do dia 10.
É preciso deixar de alimentar os “espíritos maus”
Quando o Sol ameaça desaparecer atrás da serra, está na hora de partir. Não sem antes se beber um refrigerante. Quente, porque não há gelo nem frigoríficos…nem eletricidade. Na despedida a esperança é de que o próximo encontro já seja em Maputo. O desejo de paz no quartel-general é ouvido do soldado até à mais alta patente.
A saída da base e a descida da serra têm de acontecer antes do anoitecer. A operação está montada e tudo decorre como previsto. Estamos numa zona de guerra mas em tempo de paz. Há blindados, tropas e postos de controlo. A paz existe mas é ainda frágil. Ainda há um caminho a percorrer e a vontade das partes irá ditar o sucesso ou fracasso das atuais negociações.
No regresso a Maputo, depois de longas horas de viagem, uma paragem para descansar. Com os coqueiros da província de Inhambane a servirem de pano de fundo, a conversa com os locais volta a trazer a palavra “paz” à baila. Desta vez, os interlocutores são da FRELIMO. Em vésperas de eleições, todos falam na paz, todos querem a paz. Então porque não se vive definitivamente em paz e a ameaça da guerra continua a existir?
A resposta na voz de um veterano resume de forma inesperada a profundidade da sabedoria africana: “Porque não são os homens que fazem a guerra. São os espíritos maus que se alimentam do ódio no coração dos homens. E enquanto os homens lhes derem alimento, não teremos paz”.
EXPRESSO(Lisboa) – 09.10.2018
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