AS NOSSAS VIOLÊNCIAS
Eu fico estarrecido quando ando a ler os argumentos dos que andam a justificar os regulares excessos das nossas forças policiais, sempre que temos eventos eleitorais em Moçambique. Dizem eles que a ilegal “manutenção da ordem pública” a menos de 300 metros das assembleias de voto, a escandalosa “movimentação e protecção de urnas” no processo de apuramento dos resultados, a instauração do “Estado de Sítio” na via pública no período de anúncio dos vencedores e, muito mais caricato ainda, a imposta “garantia de segurança pessoal” de candidatos da oposição (como é o caso do António Muchanga, na Matola) são assuntos de interesse nacional que justificam a presença e o uso desproporcional de violência da Polícia. No entanto, os mesmos acólitos da omnipresença policial em assuntos que não lhe dizem respeito deliberadamente nunca alargam o seu horizonte de análise para as causas que, objectivamente, tornam a nossa Polícia também um “actor eleitoral” recorrente. Por exemplo, o que faz com que os nossos processos eleitorais sejam potencial e efectivamente um eterno barril de pólvora.
Posso explicar. Os factores que levam os eleitores moçambicanos a desenvolverem crescentemente a necessidade de controlar ou de proteger o seu voto devem-se a também crescente convicção de o mesmo não reflectir aquilo que eles determinam na urna. Portanto, sabem os eleitores que há uma indústria de viciação da vontade popular já a se institucionalizar nos nossos actos eleitorais. Quem se beneficia dessas artimanhas, e estando na condição de controlar politicamente a nossa Polícia, claramente que vai sempre destacá-la para intimidar os que se barricam junto das assembleias de voto desde que votam até ao momento em que confirmarão que os resultados finais efectivamente reflectem a sua vontade. Não é então de estranhar a recorrente militarização da Polícia como efeito dissuasor da vigilância popular. Não é também de admirar a “prisão domiciliária” imposta ao Muchanga, como antecipação de uma eventual revolta popular perante a infame injustiça eleitoral que ele deve estar a viver, após as eleições autárquicas de 10 de Outubro.
Aliás, nessa tradição crescentemente consolidada de alguns recorrerem sempre à violência (e à batota) para continuarem no poder, sempre se tende a olhar as revoltas populares (algumas mesmo violentas) como a pior das violências… nunca se fala da violência estrutural que as origina, por exemplo. Essa violência, que eu considero a pior de todas exactamente por ser a mãe de todas as outras, caracteriza-se essencialmente pela sistemática negação dos direitos políticos, económicos e sociais de muitos moçambicanos por parte de alguns (que todos nós conhecemos). A proibição, objectiva ou subtil, da liberdade de votar na oposição, do direito de ser eleito mesmo sendo da oposição, das liberdades de circular, de se reunir ou de se manifestar livremente em espaços públicos, etc etc… O uso abusivo das instituições do Estado para impedir que “moçambicanos de segunda ou de terceira categoria” ascendam ao poder. Aquela violência que não parte montras de lojas e que não queima pneus nas ruas, mas que atormenta eternamente de miséria, de frustração,n de perseguição, de marginalização e de desespero a quem “não é nosso”. Pessoas penduradas em “My Loves” governadas por dirigentes que circulam em viaturas luxuosas lançadas recentemente. Condomínios de pouquíssimos novos ricos construídos no meio de enormes ghettos de pobreza aguda.
Esse tipo de violência (perpetrada de modo discricionário por quem controla o poder e os recursos do Estado) quase nunca é visível e denunciada, ao contrário das revoltas populares, quase sempre legítimas mas facilmente combatidas ou reprimidas. É esse tipo de violência que determina, por exemplo, que o Muchanga não pode ser Edil da autarquia mais industrializada do país apenas porque é da Renamo, mesmo que tenha claramente ganho as eleições locais. Essa violência quase ninguém vê e dela quase ninguém fala, nessas análises pretensamente intelectuais que tenho visto sobre Moçambique. Todos esses nossos iluminados desenvolvem muito rapidamente uma propensão esquisita para condenar ou para dissuadir uma potencial revolta popular, provocada pelas agressões sistemáticas que o povo tem sofrido regularmente, mas nunca se posicionam contra a violência que a cria.
PS: Só para termos um modesto exemplo da amplitude da nossa “sociedade de violência”, olhemos para a estrutura directiva de algumas das nossas empresas do futuro”, como a EMATUM, de alguns órgãos de comunicação social, de diversas instituições públicas ou mesmo, já agora, do STAE da cidade da Matola: todas elas dirigidas por agentes da nossa política secreta… gestores por excelência da violência organizada.
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