Sunday, June 3, 2018

Pinho pode ser apenas a ponta do icebergue.

O que parecia ser um caso de alegados benefícios concedidos à EDP pelo ex-ministro Manuel Pinho, transformou-se numa espécie de mini Operação Marquês. Pinho pode ser apenas a ponta do icebergue.
O caso EDP ganhou um novo (grande) fôlego com a prova indiciária de que Manuel Pinho recebeu, por alegadas ordens de Ricardo Salgado, uma transferência mensal de cerca de 15 mil euros do Grupo Espírito Santo (GES), enquanto foi ministro de Economia de José Sócrates — uma notícia que o Observador revelou em exclusivo. O objetivo seria beneficiar a EDP, da qual o Banco Espírito Santo (BES) era acionista, e o próprio GES. É certo que a entrada em cena do ex-Dono Disto Tudo provocou uma espécie de promoção da Liga Europa para a Liga dos Campeões da importância judicial e mediática do caso EDP. Mas este processo está longe de se reduzir aos 2,1 milhões de euros que Manuel Pinho terá recebido entre julho de 2002 e abril de 2014 da Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do GES.
Na verdade, esta é uma história que explica como a EDP, a última grande empresa portuguesa com escala europeia depois da queda da Portugal Telecom e do próprio GES, conseguiu conquistar poder e influência sobre políticos, assessores de gabinetes ministeriais e reguladores desde a 1.ª fase de privatização em 1997. Poder e influência que serviram para construir um enquadramento legislativo que protegeu o máximo possível a empresa no novo contexto de liberalização do setor energético. Se o leitor preferir uma analogia mais rústica, os representantes do Estado olharam para a EDP como o mesmo objetivo que um pequeno agricultor olha para um suíno que acabou de nascer: engordá-lo o mais possível para maximizar o produto da venda.
No caso, a EDP foi vendida pelo Estado em oito fases de privatização que decorreram entre 1997 e 2012, tendo só a última fase rendido cerca de 2,7 mil milhões de euros pela venda de 21,35% do capital social.
Nesse processo de conquista de proteção legislativa, tanto se encontram alegados conflito de interesses – autênticas portas giratórias que potenciam acusações de promiscuidade entre a EDP e os que devem proteger os interesses do Estado –, como saltam à vista as suspeitas de alegados crimes de corrupção. E neste último ponto, Manuel Pinho não é o único ex-titular de cargo público considerado suspeito pelo Ministério Público.
Sim, porque apesar do juiz Ivo Rosa ter declarado nula a sua constituição de arguido no dia 18 de maio por razões formais, Pinho continua a ser encarado como suspeito pelos procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, titulares dos autos do caso EDP. Aliás, em breve o ex-ministro da Economia de José Sócrates voltará a ser constituído arguido, tal como o Observador noticiou logo a 18 de maio.
Nesse processo de conquista de proteção legislativa, tanto se encontram alegados conflito de interesses – autênticas portas giratórias que potenciam acusações de promiscuidade entre a EDP e os que devem proteger os interesses do Estado –, como saltam à vista as suspeitas de alegados crimes de corrupção. E neste último ponto, Manuel Pinho não é o único ex-titular de cargo público considerado suspeito pelo Ministério Público.

Como tudo começou

1 de fevereiro de 2012. Um dia extenuante de trabalho estava a chegar ao fim para a procuradora Amélia Cordeiro, chefe de gabinete do então procurador-geral Pinto Monteiro. Horas antes tinha tido uma reunião com Tiago Andrade e Sousa, também chefe de gabinete, mas do secretário de Estado da Energia, Henrique Gomes. Com idades e culturas muito diferentes, os dois tinham algo em comum: os seus chefes estavam em rota de colisão com os respectivos mundos onde viviam profissionalmente. Enquanto Pinto Monteiro era desprezado pela generalidade dos procuradores do Ministério Público (MP), que não se reviam no homem que tinha impedido uma investigação a José Sócrates no âmbito do processo Face Oculta, Henrique Gomes estava a um mês de pedir a demissão do Governo de Passos Coelho depois de ter declarado guerra às chamadas rendas excessivas da EDP.
Dois dias antes de conhecer Amélia Cordeiro, Andrade e Sousa tinha reencaminhado para a Procuradoria-Geral da República uma denúncia anónima que daria origem ao inquérito criminal do DCIAP que ficou conhecido como o caso EDP. Era precisamente sobre essa denúncia (que explicava também o essencial da guerra de Henrique Gomes com a EDP) que Andrade e Sousa quis falar com Amélia Cordeiro. Às 18h55, a chefe de gabinete do procurador-geral contou tudo a Cândida Almeida, diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). “Em 2007, como o Estado estava já aflito com o déficit[orçamental], celebrou com a EDP um prolongamento da concessão de exploração das barragens, tendo por esse negócio recebido a quantia de 750 milhões de euros. No entanto, todas as avaliações e pareceres técnicos indicavam montantes muito superiores, na ordem do 1500/2000 milhões!!!” – os três pontos de exclamação que se lêem no email enviado para Cândida Almeida enfatizam não só a alegada borla entre os 750 milhões os 1,2 mil milhões de euros dada à EDP, como também a indignação pelo que tinha ouvido. Tanto mais, acrescentava Cordeiro, que Andrade e Sousa tinha confirmado que “o círculo restrito de envolvidos [do Estado] no negócio, terão sido colocados em lugares de topo (presidência e administradores) de organismos tutelados”, como uma alegada compensação por esses alegados benefícios concedidos.
Este email, que faz parte dos autos do caso EDP consultados pelo Observador, é a única das seis denúncias enviadas para o DCIAP que não é anónima – sendo que uma delas até propunha um nome para a investigação: Operação Ciclone.
Às 18h55, a chefe de gabinete do procurador-geral contou tudo a Cândida Almeida, diretora do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). “Em 2007, como o Estado estava já aflito com o déficit [orçamental], celebrou com a EDP um prolongamento da concessão de exploração das barragens, tendo por esse negócio recebido a quantia de 750 milhões de euros. No entanto, todas as avaliações e pareceres técnicos indicavam montantes muito superiores, na ordem do 1500/2000 milhões!!!”, lê-se no email que enviou para Cândida Almeida.
Todas essas denúncias (incluindo o email de Amélia Cordeiro), contudo, tocam nos pontos que são a base dos alegados benefícios ilegítimos concedidos à principal elétrica nacional que, para já, estão quantificados em 1.246.556.000 euros em diversos relatórios dos reguladores ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, da Autoridade da Concorrência (AdC) e da empresa Rede Elétrica Nacional (REN) produzidos entre 2004 e 2013. E escrevemos “para já” porque, como o leitor vai perceber mais à frente, ainda faltam quantificar outros alegados favores concedidos à EDP, que poderão aumentar o valor.

Quem concedeu os alegados benefícios à EDP

Manuel Pinho foi o ministro da Economia do Governo de José Sócrates, logo, o responsável máximo político pela concessão dos alegados benefícios ilegítimos à principal elétrica nacional. Mas não é o único protagonista da história.
Este complexo dossiê remonta a 1995, quando o Governo de Cavaco Silva criou os Contratos de Aquisição de Energia (CAE) para regular a compra de energia elétrica para o mercado nacional por parte da então empresa pública Companhia Portuguesa de Produção de Eletricidade.
Oito anos mais tarde, em 2003, o Governo de Durão Barroso inicia, através do ministro da Economia Carlos Tavares, o processo legislativo que levará à cessação dos CAE e à criação dos novos contratos designados por Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC). Este enquadramento legislativo, contudo, será terminado apenas em 2004, pelo Governo de Pedro Santana Lopes. É nessa altura que fica fechada toda a arquitetura jurídica, sendo inclusivé assinados a cessação de alguns CAE com a EDP, mas com efeitos suspensos.
Só em 2007 é que Manuel Pinho, ministro da Economia do Governo de José Sócrates, aplica o enquadramento definido pelo Governo Santana Lopes e, através da aprovação de diversos diplomas, dá luz verde para serem assinados os famosos CMEC com a EDP.
O centro da investigação do DCIAP descreve-se em dois pontos:
  • a transformação dos 32 contratos CAE celebrados em 1996 entre a Companhia Portuguesa de Produção de Eletricidade (posição herdada pela EDP) e a REN sobre 27 centrais hidroelétricas (barragens) e cinco centrais térmicas em contratos com o regime CMEC;
  • o processo de extensão da concessão do Domínio Público Hídrico (DPH) pela exploração das 27 barragens desde o fim da vigência dos CAE até ao fim da vida útil dessas barragens – uma nova questão que não estava contemplada nos contratos CAE.
Pelo meio, há diversos protagonistas que importa reter:
  • Rui Cartaxo – ex-adjunto do ministro Manuel Pinho, esteve diretamente envolvido na construção dos diplomas que regulam os CMEC, tendo sido indicado para o cargo de chief financial officer da REN por Pinho. Foi constituído arguido por suspeitas de corrupção passiva e participação económica em negócio.
  • João Faria Conceição – foi consultor do secretário de Estado Adjunto de Carlos Tavares no Governo de Durão Barroso entre junho de 2003 e junho de 2004, tendo colaborado na legislação que implementou a liberalização do mercado energético e que acabou com os CAE. Mais tarde, em 2007, foi adjunto de Manuel Pinho, tendo trabalhado, em conjunto com Rui Cartaxo, na implementação da legislação dos CMEC. Desempenha atualmente funções como chief operating officer (COO) da REN e foi constituído arguido por alegadas suspeitas de ter favorecido a EDP.
  • Miguel Barreto – ex-diretor-geral de Energia e Geologia entre 2004 e 2008, concedeu à EDP uma polémica licença ilimitada de exploração da central térmica de Sines. Mais tarde recebeu 1,4 milhões de euros da EDP pela venda de 40% do capital de uma empresa de certificação energética. Foi constituído arguido por suspeitas de corrupção, tráfico de influência e participação económica em negócio.
  • Pedro Bastos Rezende – ex-administrador executivo da EDP que assinou os primeiros contratos de cessação dos CAE em nome da principal elétrica nacional. Foi constituído arguido no caso EDP.
Há ainda os alegados suspeitos do crime de corrupção ativa que são António Mexia, presidente executivo da EDP, e o seu braço-direito João Manso Neto, administrador executivo da holding da EDP e líder executivo da EDP Renováveis. No caso de Manuel Pinho, são ambos suspeitos de alegadamente terem decidido o patrocínio da EDP à Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, no valor total de cerca de 1 milhão de euros entre 2010 e 2014, como financiamento para a criação de conteúdos educativos na área da energia renovável, mas com o alegado objetivo de Pinho ser contratado por aquela instituição universitária norte-americana.
António Mexia, presidente executivo da EDP, e João Manso Neto, administrador da EDP, foram constituídos arguidos por suspeitas da prática do crime de corrupção ativa
A este grupo de alegados corruptores ativos juntou-se recentemente Ricardo Salgado – que terá dado ordens para que a sociedade offshore ES Enterprises transferisse cerca de 15 mil euros por mês, num total de cerca de dois milhões de euros entre 2002 e 2012, para contas bancárias na Suíça abertas em nome de Manuel Pinho. Cerca de 780 mil euros foram transferidos enquanto Pinho foi ministro da Economia.

Benefícios, que alegados benefícios?

“Um processo muito pouco transparente” – podia ser o título de um livro sobre este caso EDP, mas é mesmo uma frase escrita pelos peritos do Núcleo de Assessoria Técnica (NAT) da Procuradoria-Geral da República (PGR) no relatório que apresentaram em junho de 2015 ao procurador Carlos Casimiro, e que sintetiza bem este caso EDP. Ali estão estão descritos todos os avisos, críticas e constatações de todos os alegados benefícios recebidos pela principal elétrica nacional, no entender da ERSE, da Autoridade da Concorrência e da REN, em diversos relatórios produzidos entre 2004 e 2012.
Se os alegados benefícios se concretizaram por decisão do poder político e, segundo o MP, à custa do interesse público, não foi por falta de aviso. Tal como também houve situações em que as mesmas entidades públicas foram ignoradas em alturas-chave do processo legislativo que está aqui em causa.
A saber:
  • Ponto prévio: é pacífica a ideia de que a liberalização do setor energético, imposta por uma diretiva da Comissão Europeia de 2003, e a criação do Mercado Ibérico de Energia impunham o fim dos contratos CAE criados em 1995. Estes eram contratos de fornecimento de energia que asseguravam os rendimentos dos produtores e anulavam o risco comercial para o dono da central produtora. Logo, a EDP (dona da maioria das centrais produtoras) tinha de ser indemnizada face aos lucros cessantes com o regime CMEC. O problema é que essa indemnização terá sido sobrevalorizada, enquanto que as obrigações da EDP foram subvalorizadas;
  • a ERSE e a REN começaram por avisar os governos de Durão Barroso e Santana Lopes, logo em 2004, que o projeto do diploma que acabava com os CAE e abria as portas ao regime CMEC asseguravam à EDP “ganhos superiores aos previstos nos CAE a cessar, através de utilização de taxas de juro inapropriadas, da inclusão de custos não previstos nos CAE, da omissão de regras de verificação da disponibilidade e da prestação de serviços de sistema das centrais e da previsão da possibilidade da EDP continuar a explorar as 27 centrais hidroelétricas [barragens], entre o termos dos CAE e o fim da sua vida útil, sem concurso público”. Nenhuma das recomendações foi seguida pelos dois executivos do PSD/CDS;
  • os acordos de cessação dos CAE foram assinados em 2005 mas continham cláusulas suspensivas de produção de efeitos;
  • só em 2006 e em 2007, já com o Governo Sócrates, é que os contratos foram fechados na sua versão definitiva. O ministro Manuel Pinho, que tutelava a área energética, ignorou novamente as recomendações da ERSE e da REN e terá alargado ainda mais os benefícios da EDP através de um “processo muito pouco transparente”, lê-se no relatório do NAT.
Em termos arredondados, como já escrevemos, a EDP terá sido alegadamente beneficiada em cerca de 1,2 mil milhões de euros. Como? As contas são estas:
  • 339,5 milhões de euros – sobrevalorização do valor inicial dos CMEC como compensação pelo fim dos 32 contratos CAE celebrados em 1996;
  • 852 milhões de euros – valor da extensão da concessão do Domínio Público Hídrico (DPH) que a EDP não pagou pela continuação da exploração de 27 barragens, seguindo a avaliação da REN;
A estes dois benefícios alegadamente ilícitos que o Ministério Público imputa ao Governo de José Sócrates, acresce ainda um terceiro, igualmente concreto:
  • 55 milhões de euros – valor de Taxa de Recursos Hídricos que, por despacho governamental de Manuel Pinho, foi considerado pago no âmbito do procedimento do valor da extensão da concessão do DPH, mas que os peritos entendem que deveria ter sido cobrado.
“Um processo muito pouco transparente” – podia ser o título de um livro sobre este caso EDP, mas é mesmo uma frase escrita pelos peritos do Núcleo de Assessoria Técnica (NAT) da Procuradoria-Geral da República (PGR) no relatório que apresentaram em junho de 2015 ao procurador Carlos Casimiro, e que sintetiza bem este caso EDP. Ali estão estão descritos todos os avisos, críticas e constatações de todos os alegados benefícios recebidos pela principal elétrica nacional, no entender da ERSE, da Autoridade da Concorrência e da REN, em diversos relatórios produzidos entre 2004 e 2012.
De acordo com o relatório dos peritos do NAT, estes alegados benefícios são “ajudas de Estado que iam além dos custos ociosos com impacto na saúde económica e financeira dos produtores”. Terminologia com a qual a Comissão Europeia não concordou, visto que arquivou uma queixa feita por alegada violação das leis europeias da concorrência.

As barragens da discórdia

Eram 10h30 do dia 5 de maio de 2015, hora a que as inquirições do procurador Carlos Casimiro costumavam iniciar-se. Pelas instalações do DCIAP já tinham passado o ex-secretário de Estado Henrique Gomes, o seu chefe de gabinete, diversos ex-assessores e ex-diretores-gerais da Energia e administradores e técnicos da REN. Era chegada a vez da economista Maria João Baía, coordenadora da Área de Previsões Energéticas da REN, que fez parte do grupo de trabalho criado em 2007 para avaliar o valor que a EDP teria de pagar para continuar a explorar as 27 barragens no novo regime CMEC.
A inquirição aproximava-se do fim quando a economista, orgulhosa minhota do distrito de Braga, conta a Casimiro que uma das maiores divergências entre a REN, então empresa pública que também atuava como regulador do setor energético e defendia os interesses do Estado, e a EDP residia na determinação da taxa que se aplicava ao valor residual dos equipamentos – questão muito relevante para calcular a compensação pela concessão do DPH a pagar pela EDP. Enquanto a REN defendia uma taxa de 6,6% na actualização de todos os fluxos monetários (maximizando assim o valor que a EDP teria de pagar), a empresa de António Mexia queria uma taxa mais baixa: 4,13%. Esta diferença de 2,47% pode parecer ínfima mas corresponde a uma diferença monetária de mais de 830 milhões de euros.
Maria João Baía contou a Carlos Casimiro que, a pedido da hierarquia da REN, tinha sido mandatada para entregar no Ministério da Economia a fundamentação técnica da REN para defender a taxa de 6,6%, pois seria o Governo a determinar quem tinha razão. Recebeu-a Rui Cartaxo, então assessor de Manuel Pinho e futuro líder da REN, que, sem ter aberto a pen com as folhas de cálculo devidamente fundamentadas, “logo lhe disse discordar do entendimento da REN”. Baía enfatizou junto do procurador que, além da própria, apenas três pessoas sabiam do valor da taxa: Vítor Batista (o administrador da REN que defendia o valor apurado pela economista e que fez um depoimento igualmente arrasador para a equipa de Manuel Pinho), Francisco Saraiva (diretor da REN que pediu a Maria João Baía para ir ao Ministério da Economia) e José Penedos (então presidente da REN e militante do PS).
Esta, contudo, não era a única questão que estava em causa no dossiê das barragens e que levou o Ministério Público a dar credibilidade ao valor total de 852 milhões de euros de benefícios totais concedidos à EDP calculados pelos peritos da ERSE, da Autoridade da Concorrência e da REN.
Como foram concedidos os outros alegados benefícios?
  • A questão da concessão do DPH – Domínio Público Hídrico – não fazia parte dos CAE. A lei de 2004 permitia que a EDP pudesse manter a exploração das barragens até ao termo da concessão do domínio hídrico. Qual a importância disso? É que o final dos contratos CAE para as barragens (que iriam verificar-se nos anos seguintes) obrigava a REN a abrir um concurso público para concessionar a respetiva exploração. Com a criação do DPH e a concessão do mesmo à EDP por um período de 15 ou 20 anos, a empresa de Mexia ficava automaticamente habilitada a continuar a exploração das suas 27 barragens, evitando assim o concurso público. Logo em 2004, a REN manifestou a sua oposição por escrito a esta decisão porque beneficiava a EDP, segundo afirmou no DCIAP o ex-administrador Vítor Batista.
  • Por outro lado, o  art. 4.º, n.º1, alínea a), subalínea vii do Decreto-Lei 240/2004 de 27 de dezembro determinou que se a EDP “pretender manter a exploração até ao termo da concessão do domínio hídrico, ao valor do [contrato] CAE é deduzido o valor residual dos bens (…)”. Tal como Maria Lurdes Baía afirmou ao procurador Carlos Casimiro, era suposto no final do contrato CAE todos os equipamentos reverterem “gratuitamente a favor do Estado”. Este, por seu lado, “poderia colocar em leilão para a continuidade de exploração desses centros electroprodutores”. Mas o Governo Sócrates não só manteve a norma aprovada em 2004, como terá ignorado os avisos da REN de que a fórmula de cálculo não incluía (mas devia incluir) as “receitas expectáveis que essa exploração poderia trazer ao longo do período em estudo até ao final da concessão”, tal como afirmou Maria Lurdes Baía. Como se lê no relatório do NAT, “os contratos produzidos” pelo Governo Sócrates “não corrigiram os benefícios acrescidos da EDP face ao previstos nos CAE; antes pelo contrário, aumentaram-nos”.
Assim, o Governo Sócrates aprovou a Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/2007 de 15 de fevereiro e Decreto-Lei n.º 226-A/2007 de 31 de maio que consagrou a concessão do DPH a favor da EDP, em troca de uma compensação financeira correspondente ao valor do equilíbrio económico e financeiro. Tal valor seria fixado com base na avaliação de duas instituições financeiras: Caixa Geral de Depósitos (CGD) e Credit Suisse.
Enquanto a REN defendia uma taxa de 6,6% na actualização de todos os fluxos monetários (maximizando assim o valor que a EDP teria de pagar), a empresa de António Mexia queria uma taxa mais baixa: 4,13%. Uma diferença monetária de mais de 830 milhões de euros. Maria João Baía entregou no Ministério da Economia a fundamentação técnica da REN, pois seria o Governo a determinar quem tinha razão. Recebeu-a Rui Cartaxo, então assessor de Manuel Pinho, que, sem ter aberto a pen com as folhas de cálculo devidamente fundamentadas, “logo lhe disse discordar do entendimento da REN”.
O problema é que essas avaliações atingiram metade do valor da avaliação que a REN fazia e que a própria EDP também terá feito através de duas avaliações. Pior: as avaliações da CGD e do Credit Suisse terão sido produzidas quatro meses antes do processo legislativo liderado por Manuel Pinho ter sido concluído. Isto é, antes de ser aprovada a lei que ordenava tais estudos, os responsáveis do Ministério da Economia já sabiam que os resultados determinavam valores mais favoráveis à EDP.

O dia de todas as decisões: 15 de junho de 2007

Na prática, a REN defendia que a EDP teria de pagar cerca de 1,6 mil milhões de euros para continuar a explorar as 27 barragens, enquanto a elétrica defendia metade desse valor. Adivinhe quem ganhou? Pelo despacho n.º 16.982/2007 de 15 de junho, assinado por Nunes Correia (Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, que tutelava o setor da água) e de Manuel Pinho, foi fixado em 759 milhões de euros o valor do equilíbrio económico e financeiro a pagar pela EDP, em contrapartida da extensão da concessão do DPH. Era esse o valor que o Credit Suisse e a CGD tinham calculado.
No mesmo dia 15 de junho de 2017, foi publicada outra norma fundamental em todo este processo, desta vez uma portaria do Ministério da Economia apenas assinada por Manuel Pinho. Trata-se de mais uma guerra de taxas entre a REN e a EDP. Agora estava em causa a taxa de custo do capital – determinante para o valor que a EDP teria a receber dos consumidores de eletricidade no âmbito das rendas anuais fixas dos contratos CMEC.
Enquanto a REN defendia uma taxa de 6,6%, a elétrica queria uma taxa de 7,55%. Desta vez, e ao contrário da concessão do DPH, a EDP queria uma taxa mais elevada para maximizar o valor a receber dos consumidores. Por outro lado, e mais uma vez, estamos perante uma diferença aparentemente residual (desta feita de cerca de 1%) mas que vale centenas de milhões de euros em termos contratuais e corresponde a um acréscimo de acréscimo de 10% em cada renda anual fixa que a EDP passou a receber a partir de 2007.
Curiosamente, e de acordo com a prova reunida pela investigação, a própria EDP tinha indicado no início de 2007 que a melhor taxa de custo de capital era de 6,6% – precisamente aquela que veio a ser defendida pela REN. Mas certo é que o ministro Manuel Pinho fixou pela Portaria n.º 611/2007 de 15 de junho a nova taxa que a EDP defendia: 7,55%. O relatório do NAT da PGR evidencia que o ministro Manuel Pinho não podia desconhecer os pareceres da REN e da ERSE que defendiam a taxa de 6,6% e não se rodeou de outras opiniões técnicas que pudessem colocar em causa as conclusões dos técnicos que estavam do seu lado. Isto é, do lado do Estado.
Agora estava em causa a taxa de custo do capital – determinante para o valor que a EDP teria a receber dos consumidores de eletricidade no âmbito das rendas anuais fixas dos contratos CMEC. A própria EDP tinha indicado no início de 2007 que a melhor taxa de custo de capital era de 6,6% – precisamente aquela que veio a ser defendida pela REN. Mas certo é que o ministro Manuel Pinho optou pela nova taxa que a EDP defendia: 7,55%. O relatório da PGR evidencia que Pinho não se rodeou de outras opiniões técnicas que pudessem colocar em causa as conclusões dos técnicos que estavam do seu lado. Isto é, do lado do Estado.
Finalmente, há ainda um terceiro diploma publicado no dia 15 de junho de 2007: o despacho n.º 15 290/2007 de 15 de junho que aprovou as adendas aos acordos de cessação dos CE e permitiu a entrada em vigor dos contratos CMEC no dia 1 de julho de 2007 — data da entrada em funcionamento do MIBEL (Mercado Ibérico de Eletricidade). Com a entrada em vigor dos CMEC e a fixação de uma taxa de custo de capital de 7,55%, o valor inicial dos CMEC foi o seguinte:
  • 833 milhões e 467 mil euros – montante total relativo ao período de 2007 a 2027. O que representante uma alegada sobrevalorização de 339,5 milhões de euros.
De acordo com um relatório da Autoridade da Concorrência de Novembro de 2013, os CMEC tiveram o seguinte peso nos lucros da EDP antes dos impostos:
  • 16,3% em 2007
  • 20% em 2008
  • 34,2% em 2009
  • 18,8% em 2010
  • 14,9% em 2011
  • 32,4% em 2012
Ainda de acordo com o mesmo documento, as margens brutas das centrais CMEC teriam uma margem bruta para a EDP de cerca de 900 milhões de euros anuais. Se retirássemos os apoios concedidos pelo Governo Sócrates, essa margem variava entre os 410 e os 682,3 milhões de euros.

As portas giratórias

2 de junho de 2017. Os inspetores da Polícia Judiciária (PJ) entram num discreto mas distinto prédio do número 7 da Rua Chagas. É ali que mora uma anónima mas poderosa consultora internacional chamada The Boston Consulting Group (BCG). A 80 metros da sede do Ministério da Economia, um dos principais cliente da consultora, os investigadores procuram toda a documentação relacionada com as intrigantes siglas CAE, CMEC e DPH. Experientes, os inspetores da brigada chefiada pelo coordenador Afonso Sales pesquisam nos arquivos em papel, mas principalmente nos servidores informáticos da consultora, para encontrar o máximo possível de informação que ajude a clarificar as suspeitas de que a EDP terá sido favorecida. Mais tarde, boa parte dessa prova não foi aceite pelo juiz de instrução criminal Ivo Rosa por razões legais.
A BCG, uma importante consultora norte-americana fundada em 1963 que conta com 16 mil empregados em mais de 50 países e que terá faturado cerca de 5,6 mil milhões de dólares em todo o mundo em 2017, é um importante player da consultoria do mercado energético português. Pelo menos, em termos de know how sobre o setor. E não é caso para menos, já que pela BCG passaram uma parte significativa dos arguidos do caso EDP.
Da esquerda para a direita: João Conceição, Ricardo Ferreira, Pedro Rezende, Rui Cartaxo e Tiago Andrade e Sousa
Consultores privados que dão conselhos a governos e empresas sobre o enquadramento legislativo do setor energético, que passam a assessores de ministros que aconselham sobre como deve ser feito o referido enquadramento legislativo, e que, finalmente, passam a administradores ou diretores de empresas do setor energético que são reguladas por essas mesmas leis que eles ajudaram a criar – este é um percurso comum de vários arguidos do caso EDP, num autêntico jogo de portas giratórias entre o setor público e o privado.
João Faria Conceição, por exemplo, trabalhou na BCG entre 2000 e 2007 como especialista na área da energia. Entre 2003 e 2004, o engenheiro aeroespacial com MBA do INSEAD foi consultor de Franquelim Alves, então secretário de Estado Adjunto de Carlos Tavares, tendo colaborado ativamente na legislação que terminou com os CAE em nome da liberalização do mercado energético. No depoimento que fez nos autos do caso EDP, Tiago Andrade e Sousa acusou João Conceição de ter sido preponderante no desenho da solução jurídica que abriu as portas aos contratos CMEC – papel este que é recusado por Conceição em declarações ao Observador
João Conceição voltou para a BCG para continuar a trabalhar no mesmo setor, tendo regressado ao Governo em 2007 como assessor de Manuel Pinho, então ministro da Economia, e colaborado ativamente na legislação dos CMEC. Terminado o trabalho, Pinho indicou-o para o cargo de administrador executivo da REN numa altura em que esta sociedade central no mercado energético era controlada pelo Estado.
Pedro Rezende, por seu lado, foi sócio e vice-presidente da BCG entre 1990 e 2003, tendo posteriormente sido nomeado como administrador executivo da EDP por convite de João Tallone, então presidente da eléctrica nacional. Depois ter assinado a extinção dos primeiros CAE da EDP, Rezende sai da elétrica e entra numa consultora chamada AT Kearney. De acordo com o testemunho de Pedro Cabral, ex-assessor de Henrique Gomes e ex-diretor-geral de Energia, a AT Kearney terá sido contratada pelo Governo em 2012/2013 para estudar a melhor forma de cortar nas rendas excessivas da EDP no setor das eólicas, fazendo igualmente parte das suas funções calcular as “eventuais rendas excessivas que estavam implícitas nos contratos CAE e CMEC [da EDP]”. Mas, “a determinada altura, manifestaram indisponibilidade” para fazer esse trabalho. Porquê? Segundo Pedro Cabral, Pedro Rezende terá alegado “conflito de interesses”, pois tinha sido este gestor que “tinha assinado os primeiros acordos de cessação dos CAE” pelo lado a EDP.
Consultores privados que dão conselhos a governos e empresas sobre o enquadramento legislativo do setor energético, que passam a assessores de ministros que aconselham sobre como deve ser feito o referido enquadramento legislativo, e que, finalmente, passam a administradores ou diretores de empresas do setor energético que são reguladas por essas mesmas leis que eles ajudaram a criar – este é um percurso comum de vários arguidos do caso EDP, num autêntico jogo de portas giratórias entre o setor público e o privado.
Em declarações ao Observador, Rezende nega: “Não foi feito qualquer trabalho sobre os CAEs ou os CMECs, nem no âmbito deste trabalho nem em qualquer outro.”

O diretor da EDP e o irmão de Marcelo

Fora do grupo de arguidos do caso EDP, existem ainda dois casos relevantes no jogo das portas giratórias.
Comecemos por Ricardo Ferreira. Este economista doutorado pela University College London e professor universitário trabalhou na BCG entre 2001 e 2003 na área da energia e noutras áreas, altura em que saiu para adjunto do Governo PSD/CDS, tendo trabalhado com os ministros Carlos Tavares (Governo Durão Barroso) e Álvaro Barreto (Governo Santana Lopes). Ferreira cruzou-se com João Conceição não só na BCG como também no Governo. E se Tiago Andrade e Sousa acusa este último de ter sido preponderante no desenho jurídico dos CMEC, também constatou no DCIAP que Ricardo Ferreira foi o responsável pela “conclusão formal da arquitetura dos CMEC”. Quer João Conceição, quer Ricardo Ferreira foram assessorados pela Morais Leitão Galvão Teles, sendo que o sócio Rui Patrício é o defensor de Conceição nos autos da EDP e o escritório é um dos habituais fornecedores de serviços jurídicos da principal elétrica nacional.
Enfatize-se que, apesar do testemunho de Andrade e Sousa, Ricardo Ferreira não foi constituído arguido nem é considerado suspeito pelos procuradores que investigam o caso EDP.
Terminada a experiência governativa, Ricardo Ferreira aceitou um convite da EDP e chegou a diretor do Departamento de Regulação e Concorrência. Dois anos mais tarde, quando começam a ser negociados os contratos CMEC com o Governo José Sócrates, Ricardo Ferreira é mesmo um dos nomes que representam a EDP. Do outro lado da mesa, estava o seu velho conhecido João Conceição e Rui Cartaxo.
Ou seja, o enquadramento legislativo de 2004 que Ricardo Ferreira ajudou a construir começa a ser aplicado três anos depois com o economista a servir os interesses da EDP. Mais tarde, já em 2012, Ferreira voltou a defender a EDP nas negociações com o Governo de Passos Coelho, sendo mesmo o braço direito do administrador João Manso Neto nessas duras negociações que deixaram pelo caminho Henrique Gomes.
Fonte oficial da EDP respondeu por Ricardo Ferreira: “Toda a legislação está ao alcance de todos os cidadãos, não sendo o know-how legal deste ou de outros setores exclusivo dos elementos de gabinetes ministeriais.” Mais: os “elementos de gabinetes ministeriais não têm o poder, capacidade ou competência para aprovar legislação ou sequer regulamentação. Limitam-se a prestar o apoio técnico que lhes é solicitado pelos responsáveis políticos”, assegurou a mesma fonte.
A EDP fez ainda questão de informar o Observador que a “arquitetura legislativa dos CMEC, na qual o dr. Ricardo Ferreira colaborou enquanto elemento de gabinete ministerial, foi apoiada pontualmente na sua fase final pelo escritório de advogados do dr. Pedro Rebelo de Sousa” – o irmão do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
A EDP fez ainda questão de informar o Observador que a “arquitetura legislativa dos CMEC, na qual o dr. Ricardo Ferreira colaborou enquanto elemento de gabinete ministerial, foi apoiada pontualmente na sua fase final pelo escritório de advogados do dr. Pedro Rebelo de Sousa” – o irmão do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. O escritório SRS (na altura Simmons & Simmons Rebelo de Sousa) diz que foi contratado mas para tratar de assuntos relacionados com "notificação e aprovação junto da Comissão Europeia dos chamados CMEC"
Contactada pelo Observador, fonte oficial do escritório SRS (na altura Simmons & Simmons Rebelo de Sousa) confirmou que foi contratada pelo Ministério da Economia em 2003 mas para tratar da “notificação e aprovação junto da Comissão Europeia (Direção-Geral de Concorrência) dos chamados CMEC, os quais careciam de aprovação no quadro do regime europeu de auxílios de Estado”.

A questão da Central de Sines

Dos benefícios alegadamente concedidos à EDP que ainda não foram calculados, salta à vista o caso da licença de produção não vinculada da Central Térmica de Sines que terá sido concedida em julho de 2007 por Miguel Barreto, então diretor-geral da Energia e de Geologia e que foi constituído arguido do caso EDP no verão de 2017 por suspeitas de corrupção passiva, tráfico de influências e participação económica em negócio.
Tal como aconteceu com Manuel Pinho, também a constituição de arguido de Barreto foi anulada pelo juiz Ivo Rosa por razões formais. Mas, tal como acontece com Pinho, também vai voltar a ser constituído arguido em breve pelo MP.
O caso foi revelado nos autos do caso por Henrique Gomes, ex-secretário de Estado da Energia do Governo de Passos Coelho. Ouvido a 23 de fevereiro de 2014, Gomes disse que a licença valeria várias centenas de milhões de euros mas que foi emitida para a EDP sem uma aparente contrapartida para o Estado e sem qualquer data de término.
Miguel Barreto e a EDP defenderam ao Observador a legalidade decisão tomada, invocando legislação que remonta a 1995 para defenderem que a elétrica tinha direito a uma licença para a Central de Sines sem limite temporal.
Certo é que, tal como Tiago Andrade e Sousa testemunhou no DCIAP, verificou-se um negócio entre a EDP e Miguel Barreto que foi revelado pelo Observador e que está a origem da constituição de arguido do ex-diretor-geral da Energia pelo crime de corrupção.
Três anos depois de ter concedido a polémica licença à EDP para a Central de Sines, Miguel Barreto vendeu 40% de uma sociedade de certificação energética que tinha fundado com a Martifer à EDP em troca de 1,4 milhões de euros.
A Home Energy II, SA, assim se chama a empresa, foi fundada em maio de 2008 pelo Grupo Martifer de acordo com um projeto que lhe foi apresentado por Miguel Barreto – depois deste ter saído da Direção-Geral de Energia em janeiro de 2008.
Com o capital dividido entre a Martifer (60%) e Miguel Barreto (40%), a Home Energy começou a ser cobiçada pela EDP em 2009, tendo fechado um contrato-promessa para a aquisição da totalidade das ações da sociedade pelo valor de 3,4 milhões de euros no final de 2010. A Martifer Solar (subsidiária do Grupo Martifer) veio a receber cerca de 2 milhões de euros, enquanto que Miguel Barreto recebeu cerca de 1,4 milhões de euros já em 2011.
Quer a EDP, quer o próprio Barreto, refutaram ao Observador qualquer ligação entre a concessão da licença da Central de Sines e este negócio estabelecido entre a principal elétrica nacional e a Martifer. “O Grupo Martifer decidiu, por opções estratégicas, vender em 2011 a sociedade Home Energy ao Grupo EDP. Como sócio minoritário, estava contratualmente obrigado a acompanhar a referida operação”, afirmou Barreto.

E tudo Ricardo Salgado mudou

Quando Manuel Pinho foi constituído arguido na sede da Polícia Judiciária a 3 de julho de 2017 pelos crimes de corrupção passiva e participação económica em negócio, os próprios procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto estavam longe de imaginar a volta que o caso ia dar meio ano depois. Naquele momento, a única alegada contrapartida que estava em causa era um patrocínio de cerca de 1 milhão de euros em quatro anos que a EDP tinha dado à Universidade de Columbia para que, de acordo com as provas indiciárias recolhidas pelo MP, aquela instituição universitária norte-americana contratasse Manuel Pinho como professor. Segundo documentos da própria Universidade de Columbia, Pinho terá recebido cerca de 137 mil dólares (cerca de 110 mil euros ao câmbio atual) para dar uma cadeira no ano letivo de 2010/2011 como visiting professor de Columbia.
Em janeiro último, depois de ter tido acesso a mais de 56 mil páginas de documentos da Espírito Santo (ES) Enterprises, o famoso saco azul do GES, o Observador já tinha noticiado que Manuel Pinho tinha recebido nas suas contas pessoais no Banque Priveé Espírito Santo mais de 315 mil euros entre 21 de fevereiro de 2013 e 11 de abril de 2014 – altura em que desempenhava funções como vice-presidente da subholding BES África. Todas as transferências, segundo Manuel Pinho, foram-lhe “comunicadas pelo dr. Ricardo Salgado, merecendo o meu acordo”, afirmou.
Um mês depois, o procurador Carlos Casimiro aproveitou a morada que Manuel Pinho deixou na PJ para a aplicação do termo de identidade e residência – a medida de coação mínima a que todos os arguidos são sujeitos – para realizar uma pesquisa nas bases de dados imobiliárias de Nova Iorque e descobriu que o apartamento perto da famosa praça Times Square onde Pinho morava tinha sido adquirido por cerca de 1 milhão de euros através da sociedade offshore Blackwade Holding Limited.
Foi o próprio Manuel Pinho quem confirmou ao Observador que era o beneficiário da Blackwade – e já depois da Autoridade Tributária e do Banco de Portugal terem informado o MP de que a sociedade das Ilhas Virgens Britânicas não tinha actividade em Portugal, não existindo assim informação no nosso país sobre os nomes dos beneficiários da sociedade.
Poucas semanas depois, já em março, os procuradores Rosário Teixeira e José Ranito, respetivamente titulares da Operação Marquês e do caso Universo Espírito Santo, enviam as informações fulcrais que vão mudar todo o caso EDP – e que foram reveladas em exclusivo pelo Observador:
  • Além da Blackwade, Manuel Pinho e a sua mulher Alexandra Fonseca Pinho eram beneficiários de mais duas sociedades offshore: a Tartaruga Foundation e a Mandalay Asset Management Corporation. Todas estas sociedades tinham contas bancárias na Suíça.
  • A Tartaruga Foundation, com sede no Panamá, recebeu 1.032.511,86 euros entre o dia 18 de outubro e 2006 e 20 de junho de 2012. Tal valor total foi alcançado após 69 transferências mensais de 14.963,94 euros.
  • Só durante o período em que foi ministro da Economia de José Sócrates, cargo que ocupou entre março de 2006 e julho de 2009, recebeu um total de 508 mil euros. Sempre repartido por um valor mensal de cerca de 15 mil euros.
  • O apartamento em Nova Iorque terá sido adquirido com o montante recebido da ES Enterprises e transferido entre a Tartaruga e a Blackwade.
  • De acordo com os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, tais valores foram transferidos para as contas da Tartaruga no Banque Priveé Espírito Santo “por ordem de Ricardo Salgado” para que o “aqui arguido, ex-ministro da Economia, Manuel Pinho” alegadamente beneficiasse “esses grupos empresariais [Banco Espírito Santo/Grupo Espírito Santo] e a EDP (do qual o BES era acionista) durante o tempo em que exerceu tais funções públicas”.
  • Mais tarde, a revista Visão acrescentou que o MP tinha na sua posse mais elementos bancários sobre uma quarta sociedade offshore de Pinho: a Meset II. Esta sociedade teria recebido igualmente 293 mil euros enquanto Pinho foi ministro da Economia. No total, a Tartaruga e a Meset II terão recebido cerca de 2,1 milhões de euros.
  • A Mandalay é a única sociedade offshore que ainda não tem transferências bancárias conhecidas.
Com estas informações bancárias na sua posse, o MP avançou para a constituição de arguido de Ricardo Salgado pelo crime de corrupção, já que terá ordenado aqueles pagamentos a Pinho para obter alegados benefícios para a EDP, empresa da qual o BES tinha uma posição qualificada de 3% do capital, e para o próprio GES. Uma diligência antecipada pelo Observador e que vai mudar todo o caso EDP.
Primeiro, porque os dados dos pagamentos do saco azul do GES a Pinho, particularmente os valores recebidos enquanto foi ministro da Economia, reforçam as suspeitas de corrupção. E, em segundo lugar, porque o âmbito da investigação é igualmente alargado aos alegados benefícios concedidos por Manuel Pinho ao GES – benefícios esses que ainda são desconhecidos.

O que vai acontecer agora?

Os investigadores continuam a procurar mais informação sobre os pagamentos do saco azul do GES. Nomeadamente, pretendem esclarecer se António Mexia, presidente executivo da EDP e, como Manuel Pinho, antigo administrador do GES nos anos 90, também terá alegadamente recebido alguma transferência da ES Enterprises.
A prioridade da investigação, contudo, vai ser interrogar pela primeira vez as seis testemunhas e os 8 arguidos do caso (eram 10 antes do juiz Ivo Rosa ter declarado nula a constituição de arguido de Manuel Pinho e de Miguel Barreto) e confrontá-los com toda a prova recolhida. Será nessa altura que Pinho e Barreto voltarão a ser arguidos.
Todos os suspeitos (com a exceção de Ricardo Salgado) foram apenas constituídos arguidos no início do verão de 2017, visto que o prazo de prescrição do caso colocava-se a 1 de julho do ano passado. Ou seja, a diligência visou apenas evitar que o caso prescrevesse, já que a constituição de arguido interrompe a contagem do prazo de prescrição.
Assim, o prazo começou a contar a partir de junho de 2017 – em vez de 2007. Mas a lei impõe um prazo máximo de prescrição, que implica que esta questão venha a ser debatida entre 2022 e 2025. Será que é tempo suficiente para o caso ficar esclarecido?
Este texto foi publicado originalmente na revista do 4.º aniversário do Observador que está na bancas.

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