Estas Cartas, caros presentes, podem resumir-se a uma ou duas frases: O direito de pensar diferente. O direito de dissentir.
Nestes mais de 40 anos de independência, sofremos de uma fobia castrante: o medo de desafiar a doutrina oficial, o discurso do dia. Aos que se especializam em fobias, chamam a esta de Heresofobia.
Tivemos, nestes mais de 40 anos, de entrar em jogos de cintura, muito ao jeito do jogo da Capoeira, evitando lances, não querendo ferir o oponente, enfim, o querer se safar, como se diz na gíria. Tivemos, é bom que se diga, os nossos períodos de degelo. E a segunda República foi, em termos constitucionais, a assunção de novas balizas, novos horizontes, para o nosso país. A carta mãe deu-nos tudo para sermos felizes, mas a heresofobia toldou-nos a mente, arregimentou-nos ao já dito, à cartilha matricial da nação.
O meu/ nosso saudoso amigo e confrade nas letras, companheiro da Charrua, Eduardo White, publicou em 1989, o livro, O PAÍS DE MIM. O Título contrapunha-se a de outro grande poeta moçambicano, o Rui Knophili: O País dos Outros. Esse país dos Outros, sentíamo-lo no nosso dia-a-dia. Sentíamo-nos marginalizados nas grandes decisões da nação. Éramos objecto e não sujeitos. Recordo-me, à época, ter chegado à sede da Associação dos Escritores Moçambicanos, uma delegação de alto nível do Partido dirigente da Nação, a nossa Frelimo, para nos perguntar se queríamos uma sociedade de Partido único ou uma sociedade multipartidária. O muro de Berlim havia caído há meses. Os meus colegas de geração estão aqui na sala, e devem recordar-se das nossas respostas. Falo do Filimone Meigos, Pedro Chissano, Juvenal Bucuane, Marcelo Panguana, Pinto de Abreu (espero que esta história conste nas memórias do Abreu), Hélder Muteia, Ídasse Tembe, Suleimane Cassamo, Armando Artur, Eduardo White, Carlos Paradona Rufino Roque, Tomás Vieira Mário. Para nós, eles eram os Outros, os que mandavam, os que ditavam, os que tinham a terra e os homens sob seu comando. E White quis assumir o seu país, daí o País de Mim, o país a quem ninguém o podia tirar, porque ele era sujeito e não objecto. Retenho-me a algumas estrofes:
“Não quero muros quando te canto,/ quero estradas largas,/ quero asas ousadas,/ quero a imensa casa dos astros/ ou então nada/ e não te canto./ Quando te canto,/ é como se quisesse o mar/ por estrada,/ o seu silêncio, as suas algas/ e o fundo sem fim das águas./ Quero isso, /quero ver tudo,/ como um navio apátrida/ a passar pelo mundo... / No amor a loucura veste os rostos que quiser/ Temos que senti-lo a mover o mundo/ com essa força ingovernável que o alimenta./ Ao amor não ponhas vendas, nunca, / nem sequer aos poemas/ Prova a magia toda das palavras/, dá-lhes os sentidos que têm/ ou que merecem,/ que as palavras, são como as aves, se as tiveres não as prendas,/ toca-as apenas/ para que voltem aos espaços.”
Esta é a minha geração, a geração da Charrua, a geração que recusou, por princípio, alinhar no espírito cortesão então em voga. Estas cartas a ela pertencem.
Mas há a outra geração a que pertenço, a chamada geração 8 de Março, aquela a quem recaiu o famoso discurso de 8 de Março de 1977, do então Presidente da República, Samora Moíses Machel. É a geração do Francisco Esaú Cossa, a geração dos funcionários zelosos, cumpridores das orientações centrais. É a geração que não ousou questionar, mas que cumpriu sempre. E hoje, essa geração, a caminho dos sessenta anos, anda, aos fins-de-semana, atrás de blocos e cimento, e pedra, tentando construir a casa do tal homem novo. A eles também dedico estas cartas de Inhaminga.
E aos outros, nossos filhos e netos, espero que não façam do espírito de adulação, o tal espírito cortesão, o seu modo de estar. Nós precisamos de autonomizar os discursos. Queremos que o discurso literário, científico, desportivo, económico, informático, jornalístico, e todos outros discursos possíveis, não sejam contaminados pelo discurso político. Que todos os discursos tenham o seu lugar de honra na grelha de partida. Que haja pluralidade. Que haja democracia
E muito obrigado.
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