16 Canal de Moçambique | Quarta-Feira, 27 de Março de 2013
Centrais
Mikhail Gorbachev: alterou as relações URSS-Ocidente e encorajou Moçambique a rever relações
com países ocidentais e a optar por soluções pacíficas para conflitos regionais e domésticos
Entre os defensores da teoria
de que a morte do Presidente
Samora Machel terá sido o resultado
de uma conspiração, há
os que alegam que o acidente
de Mbuzini foi planeado pela
URSS pelo facto de Moçambique
ter-se distanciado da zona
de influência soviética. A visita
de Machel aos Estados Unidos
em 1985, onde foi recebido
com pompa e circunstância por
uma administração que vinha
projectando a imagem de um
presidente moçambicano capaz
de romper com o bloco comunista
para passar a ser subserviente
aos interesses do Ocidente,
terá selado o seu destino.
Esta posição viria a ser defendida
pelo Major General Jacinto
Veloso, proeminente membro
da Frelimo à altura do acidente
de Mbuzini e que integrou a
Comissão de Inquérito instaurada
pelo governo moçambicano
para investigar as suas causas.
Veloso afiançou em livro de memórias
que “Machel estava condenado”,
que “era um homem
a abater porque tinha ‘traído o
campo soviético’ na confrontação
bipolar, decidindo optar
pela liberalização da economia e
da sociedade, aderindo ao sistema
capitalista internacional, ao
Banco Mundial e ao FMI.” (1)
Quando confrontados com
os erros flagrantes da tripula-
ção do Tupolev presidencial e
que foram a causa do acidente,
outros defensores da teoria
da conspiração argumentam
que os pilotos cumpriam uma
“missão suicida” e que haviam
sido “programados” pela
KGB para provocar o acidente.
Os estudiosos de questões relacionadas
com a Guerra Fria,
em particular o desmoronamento
da União Soviética, certamente
que rejeitarão essa teoria
quando vista à luz das reformas
empreendidas por Mikhail Gorbachev
no contexto das quais “a
países como Moçambique foi
indicado de que deveriam diversificar
as suas relações econó-
micas internacionais dado que
a economia soviética havia atingido
o ponto de exaustão, não
podendo mais comportar o tipo
de relações que até então vinha
mantendo com os países do
Terceiro Mundo, nem tão pouco
servir-lhes de modelo”. (2)
Mesmo antes da subida de
Gorbachev ao poder em Abril
de 1985, a União Soviética dava
indícios de fragilidade econó-
mica, impedindo a adesão de
Moçambique e de outros paí-
ses às instuições financeiras e
económicas do Comecon. De
acordo com Joaquim Chissano,
embora Moçambique se
definisse como país marxista-
-leninista, esperando em contrapartida,
a atribuição do mesmo
estatuto que Cuba usufruia
a nível do Comecon, a União
Soviética rejeitava essa pretensão
com o argumento de que
Mocambique não era um país
socialista, mas antes um Estado
de orientação socialista. (3)
Em 1983, segundo a então ministra
das finanças de Moçambique,
Luísa Diogo, “registava-se
um declínio na ajuda dos países
do bloco socialista ao nosso
país, mormente assistência técnica,
e fornecimento de peças
sobressalentes e outros bens de
consumo.(4) Face a esta situação,
Moçambique concordou
em assinar a Cláusula de Berlim
como pré-condição para beneficiar
da ajuda da Comunidade
Económica Europeia. Em 1984,
o governo mocambicano iniciou
conversações com o Banco
Mundial e o FMI, tendo aderido
a estes órgãos das Nações Unidas
em Setembro desse ano, não
obstante reticências manifestadas
pelo responsável do planeamento
económico do Partido
Frelimo, Marcelino dos Santos.
Regressado de uma reunião do
Comecon na RDA em Outubro
de 1983, Marcelino dos Santos
insistia que “a única via para
se ultrapassar a complicada situação
internacional em que
Moçambique se encontra está
no reforço da unidade de acção
da comunidade socialista”. (5)
A retirada de Moscovo
A ascenção de Gorbachev
ao poder assinalou importantes
mudanças na política externa
da União Sioviética. “A
seguir à minha eleição como
secretário-geral do Partido Comunista
em Março de 1985”,
refere Gorbachev num artigo
de opinião(6), “os nossos objectivos
internacionais imediatos
incluíam acabar com a corrida
às armas nucleares, reduzir as
forças armadas convencionais,
resolver os numerosos conflitos
regionais envolvendo a União
Soviética e os Estados Unidos,
e substituir a divisão do continente
europeu em campos hostis
por aquilo que eu chamei
de casa comum europeia”. E
salienta Gorbachev: “Compreendíamos
que isto poderia ser
alcançado apenas se trabalhássemos
com os Estados Unidos”.
Um dos estudiosos do processo
soviético e das relações
entre a União Soviética e os
países do Terceiro Mundo é
Melvin Goodman, que durante
cerca de 25 anos desempenhou
as funções de analista de questões
soviéticas junto do Departamento
de Estado e da CIA.
Num livro publicado em 1991,
Goodman refere que “logo de
início, Gorbachev manifestou a
intenção de proceder a mudan-
ças políticas, em particular em
relação ao Terceiro Mundo”.
As mudanças introduzidas pelo
líder soviético, diz Goodman,
“indicavam que Gorbchev dava
prioridade à melhoria das rela-
ções com os Estados Unidos e o
Ocidente, e a soluções políticas,
em vez de militares, para problemas
do Terceiro Mundo”.(7)
Por ocasião do 27º Congresso
do PCUS, realizado em
Abril de 1986, lê-se na obra de
Goodman, “Gorbachev sublinhou
que gostaria num futuro
próximo de mandar regressar
as forças soviéticas que se encontravam
no Afeganistão”.
Um ano depois, salienta Goodman,
a União Soviética havia
retirado mais de cem mil
(100.000) soldados desse país.
Em consonância com a nova
política de Moscovo, entidades
soviéticas passaram a enunciar
os princípios orientadores da
linha definida por Gorbachev.
Goodman cita o caso de Andrei
Kozyrev, vice-chefe da Administração
das Organizações
Internacionais a nível do Ministerio
dos Negócios Estrangeiros
soviético. Num artigo
publicado na revista “Relações
Internacionais” deste Ministé-
rio, Kozyrev argumentou que
o “envolvimento directo e indirecto
de Moscovo em conflitos
regionais havia resultado em
perdas colossais, dando lugar
a um aumento da tensão internacional,
justificando a corrida
ao armamento e prejudicando
o estabelecimento de laços
mutuamente vantajosos com o
Ocidente”. Segundo Kozyrev, a
“ajuda militar concedida a regimes
do Terceiro Mundo contribuiu
para conflitos prolongados
com uma oposição que depende
de apoios externos, sem contrapardidas
para Moscovo em
função da enorme assistência
económica por ela prestada”.
Kozyrev cocluiu que “não fazia
qualquer sentido desenvolver
relações com regimes do Terceiro
Mundo na base da sua oposição
à influência ocidental”,
tendo apelado para uma “cooperação
económica e tecnoló-
gica mutuamente vantajosa”.
Num outro artigo publicado
conjuntamente com Andrei
Shumikhin na mesma revista,
Kozyrev afirmou que “o apoio
soviético, directo e indirecto,
prestado a certas forças e regimes
no Terceiro Mundo propensos
ao uso da força para
a resolução de problemas internacionais
deu azo a acusa-
ções propagandísticas de que
a União Soviética apostava na
expansão e que tencionva utiDe
novo a morte de Samora Machel – 5
O Acidente de Mbuzini e a Política
Externa da União Soviética
Por: João Cabrita
Canal de Moçambique | Quarta-Feira, 27 de Março de 2013 17
Centrais
lizar a redução de tensões na
Europa para ficar em posição
de vantagem em relação ao
Ocidente no Terceiro Mundo”.
Fundamentalmente, as reformas
de Gorbachev reflectiam a
difícil situação económica em
que a União Soviética se encontrava,
razão pela qual afigurava-
-se necessário reduzir drasticamente
as despesas militares
e rever a prestação de ajuda
economica a países do Terceiro
Mundo. Nikolai Shmelyov, um
dos defensores das reformas
empreendidas por Gorbachev,
declarou perante o Congresso
dos Deputados do Povo em
1988 que a União Soviética
“enfrantava o colapos económico
e que por esse motivo devia
cortar ajuda ao Terceiro Mundo”.
Shmelyov deu como exemplo
os 6 mil milhões de dólares
concedidos anualmente a Cuba
e Nicarágua, montante esse
que “devia ser usado para manter
o equilíbrio do mercado de
consumo na União Soviética”.
Goodman aponta ainda o “artigo
de referência” da autoria de
Vyacheslav Dashichev, membro
do Instituto para a Economia
do Sistema Socialista Mundial,
e um dos defensores das reformas
empreendidas por Gorbachev.
Na opinião de Dashichev,
“a URSS havia feito uma avaliação
incorrecta da situação
global e ignorado o efeito que
a conduta da Moscovo a nível
do terceiro Mundo havia tido”.
No mesmo estudo, Goodman
faz notar que “a moderação da
política de Moscovo para com o
Tereiro Mundo e o ênfase dado
por Gorbachev à criação de relações
estáveis entre a União
Soviética e os Estados Unidos
haviam causado preocupação
entre os aliados soviéticos”.
Goodman cita os discursos de
vários dirigentes de países do
Tereceiro Mundo proferidos
durante o 27º Congresso do
PCUS em Abril de 1986. Fidel
“lembrou Gorbachev de que
havia sido vertido sangue no
Terceiro Mundo e que a tarefa
de desenvolvimento económico
era tão importane como o evitar
uma guerra nuclear.” O dirigente
etíope, Mengistu Mariam,
acrescenta Goodman, “instou os
soviéticos a não atribuírem aos
conflitos regionais uma prioridade
inferior à das questões
nucleares”. O presidente angolano,
José Eduardo dos Santos,
diz Goodman, apelou a uma
maior assistência, tendo feito
recordar que “Angola sofrera
não apenas os efeitos da guerra
mas da deterioração da situa-
ção económica internacional”.
A desislusão de Samora
Machel
Segundo Olívia Machel, o
chefe de Estado moçambicano
manifestou-se “desiludido
com a União Soviética” após
o regresso de Moscovo em
Abril de 1986, onde também
havia participado no 27º Congresso
do PCUS. De acordo
com a filha do presidente mo-
çambicano, Samora Machel
considerava ser “necessário
encontrar outros aliados”. (8)
Olívia Machel não deu mais
pormenores sobre as revelações
feitas pelo chefe de Estado mocambicano
em conversa em família.
Mas Joaquim Chissano,
que acompanhou Samora Machel
a Moscovo, refere que na
última visita do presidente mocambicano
à União Soviética
notara que “havia uma divisão
lá, em como ajudar, continuar a
ajudar ou não ajudar Moçambique
e a Frelimo e os movimentos
de libertação”, concluindo
que o problema “era do lado
de lá, não do lado de cá – é do
lado de lá onde existe o problema.
Eles tinham problemas
para resolver internamente”. (9)
Sérgio Veira fornece uma
imagem mais clara das relações
que passaram a existir entre
Moçambique e a União Soviética
com Gorbachev no poder. Na
altura ministro da Segurança,
Vieira revela que posteriormente
a uma visita por ele efectuada
a Moscovo, juntamente como
Joaquim Chissano e Jacinto
Veloso em 1985, por ocasião
das celebrações da “Grande
Revolução Socialista de Outubro”,
foi dada a Samora Machel
uma conclusão unâmine:
“Vamos ficar sós. Do que
vimos e ouvimos dos dirigentes
soviéticos e da nossa gente
que estuda e estagia nas
Forças Armadas e nas mais
diversas universidades, só se
pode tirar uma conclusão, a
crise interna é muito grave e
que os soviéticos vão abandonar
os apoios a todos.” (10)
Embora Olívia Machel não
tenha explicado a “desilusão”
do seu pai e chefe de Estado
moçambicano é sabido que na
altura ele encontrava-se em
rota de colisão com o Malawi.
Segundo revelam Paul Fauvet e
Marcelo Mosse, “Samora estava
preparado para cem mil (100
000) mortes imediatamente,
numa guerra com o apartheid,
uma vez que receava que o
número de mortos seria muito
maior se o ‘apartheid’ continuasse
a existir e a devastar a
região” (11). Ciente de que o
recurso à força militar contra
o regime de Banda provocaria
uma inevitável reacção da África
do Sul, Samora Machel terá
pretendido assegurar junto de
Moscovo os necessários apoios
que fizessem refrear os ânimos
dos sul-africanos; apoios que
fossem além “dos navios que
a URSS enviava para os nossos
portos e águas territoriais,
como sinal de possível reac-
ção e intervenção solidária”,
sempre que Maputo “sentia
próxima uma agressão”. (12)
Uma coisa é Samora Machel
estar pessoalmente “preparado”
para seguir uma determinada
via, e outra é saber se ele dispunha
dos necessários apoios
– internos e externos – para alcançar
o objectivo em mente.
A nível das Forças Armadas de
Moçambique-FPLM, era óbvio
que Samora Machel não dispunha
da garantia de que poderia
contar com elas. O teor do manifesto
dos “Antigos Combatentes
e Fundadores da República”,
que circulou em Maputo cerca
de uma semana após o acidente
de Mbuzini, é claro: “Não devemos
internacionalizar o conflito
como forma de solucioná-
-lo. Só será adiar o problema,
a perder tempo. O nosso povo
quer a paz. E nós, como Governo,
devemos procurar as
soluções mais adequadas e duradoiras
para esta guerra civil.”
Face ao que hoje se sabe a
respeito da política externa soviética,
em particular a opção
de Moscovo por soluções polí-
ticas, em vez de militares, para
problemas do Terceiro Mundo,
é lógico concluir que a União
Sovietica não terá dado aval
às intenções beligerantes do
chefe de Estado moçambicano,
subvalorizando a campanha
de desinformação que a partir
de Maputo vinha sendo feita
através da comunicação social
oficial sobre uma suposta
invasão do território moçambicano
por forças da Remamo
provenientes do Malawi.
Num outro estudo publicado
em 1990, Goodman fez notar
que para além da retirada das
tropas soviéticas do Afeganistão,
a União Soviética colaborou
com os Estados Unidos na
resolução de outros conflitos,
designadamente a retirada das
forças cubanas de Angola, permitindo
a resolução do problema
da independência da Namíbia.
Goodman salienta que a
política externa de Gorbachev
“ajudou a estabilizar o Golfo
Pérsico e o Sudeste Asiático,
a melhorar as relações com os
Estados Unidos e a China e a
moderar a posição da Organização
da Libertação da Palestina,
o que deu lugar a um di-
álogo com Washington”(13).
Visto neste contexto, torna-se
claro que é errado interpretar o
acidente de Mbuzini como corolário
de uma suposta conspiração
de Moscovo, ou como
uma acção punitiva de Moscovo
para com o Presidente Samora
Machel face às suas relações
com o Ocidente. Os factos demonstram
que a diversificação
das relações económicas de
Moçambique com os países
ocidentais foram encorajadas
pela União Soviética numa altura
em que este país estava à
beira do colapso económico.
O recurso à ajuda económica
ocidental, em particular as
negociações que resultariam
na adesão de Moçambique ao
Banco Mundial e FMI, a par
do incremento de apoios da
Zona Euro, são anterioes à ascenção
de Gorbachev ao poder.
Na fase que precedeu o regime
de Gorbachev, a União Soviética
resistiu aos insistentes
pedidos de Moçambique para
intergrar o Conselho de Ajuda
Económica (Came). E é na
fase inicial do regime de Gorbachev
(Abril de 1985 – Outubro
de 1986) que Moçambique
é aconselhado por Moscovo
não apenas a incrementar as
relações económicas com o
Ocidente, mas também a encontrar
uma solução política
para os conflitos interno (com
a Renamo) e regional (com
a África do Sul e o Malawi).
As teorias da conspiração,
como a acima analisada, e outras
que defendem a existência
de “mão interna” (14) têm a
particularidade de fazer tábua
rasa dos factos apurados pela
equipa tripartida que investigou
o acidente, os quais demonstram
erro humano como causa
do sucedido. A própria ala
“samoriana” do regime da Frelimo
rejeita ambas as teorias:
“Considero até hoje que se
carecem de quaisquer factos
que fundamentem as tentativas
de se buscarem cumplicidades
deste crime dentro do nosso
país, ou ainda imputar à URSS
a autoria do atentado.” (15)
NOTAS
1. Jacinto Veloso, “Memórias
em Voo Rasante” (Maputo:
JVCI, Lda, Maio de 2007).
2. João M. Cabrita, “A Morte
de Samora Machel” (Maputo:
Edições Novafrica, 2005).
3. Joaquim Chissano, “Grande
Entrevista” conduzida por Simião
Ponguane (Maputo: TVM,
12 Maio de 2012).
4. Luísa Diogo, Entrevista conduzida
por Emílio Manhique
(Maputo: TVM, 7 de Agosto de
1988).
5. Marcelino dos Santos, citado
pelo «Notícias» (Maputo, 21 de
Outubro de 1983 p 1.)
6. Gorbachev, Mikhail, Is the
World Really Safer Without the
Soviet Union? (The Nation 9
Jan 2012).
7. Melvin A. Goodman,
“Gorbachev’s Retreat: The
Third World (Nova Iorque,
Londres: Praeger, 1991) .
8. Olívia Machel, “Debate da
Nação” conduzido por José
Belmiro (Maputo: STV, 19 de
Outubro de 2011).
9. Joaquim Chissano, entrevista
conduzida por Simião Ponguane
(Maputo: TVM 12 de Maio
de 2012).
10. Sérgio Vieira, “Participei,
por isso testemunho”
(Maputo:Ndjira, 2010) p. 606.
11. Paul Fauvet e Marcelo Mosse,
“É proíbido pôr algemas nas
palavras – Carlos Cardoso e
revolução moçambicana” (Lisboa:
Caminho, 2004), p 240.
12. Sérgio Vieira, op cit, p. 470.
13. Melvin A. Goodman, “Gorbachev
and Soviet Policy in the
Third World” (Washington, D.
C.: The Institute for National
Strategic Studies, Fevereiro de
1990, p 6.
14. Paul Fauvet e Marcelo
Mosse, op cit, p 241; Marcelo
Mosse, “Samora, Homem do
Povo” (Maputo: Maquezo Editores,
2001) pp 139-143.
15. Sérgio Vieira, op cit p. 492.
(Canal de Moçambique)
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