Saturday, December 31, 2016

Conversa sobre a ecologia da corrupção

Opinião

De facto, nem é preciso ter grande sofisticação, basta estar lá. No sítio certo.
Salviati, Sagredo, e Simplício encontram-se de novo.
Simplício veio de táxi.
Simplício – Amigos, a rua ferve.
Sagredo – A rua nunca ferve.
Salviati – A rua em Portugal nunca ferve.
Simplício – Ferve, ferve. Deviam ouvir o que ouvi no táxi.
Sagredo – Nunca se deve ouvir os taxistas. Ele não tinha saudades do Salazar? Os taxistas não são a vox  populi.
Simplício – Nem vocês. Continuem a não ouvir nada e depois aparece o Trump.
Salviati – O que é que ouviste?
Simplício – Está tudo corrupto. É só escândalos. Foi o BPN, foi o Sócrates, foi o BES, foi o SEF, foi a Misericórdia, foi o INEM...
Salviati – E depois?
Simplício – A culpa é dos políticos.
Sagredo – Até que ponto a corrupção tem que ver com a política? São os políticos que são corruptos? É o sistema, seja lá que isso for? Vem de fora, vem de dentro? Vem de cima, vem de baixo?
Salviati – Vem de todo o lado, é ecológica. É um ambiente.
Simplício – Explica-te.
Salviati – Uma coisa são os actos concretos de corrupção, que são sempre uma minoria...
Simplício – ... porque muitos não são descobertos...
Sagredo – ... não sei. São certamente muito menos do que a percepção pública que existe desses actos, embora haver esta discrepância aponte para um problema. Por que razão é muito fácil a muita gente acusar tudo e todos de serem corruptos?
Simplício – Por que há muitos corruptos...
Sagredo – Talvez não haja assim tantos, mas os que são movem-se bem e medram...
Simplício – Medram?
Sagredo – Sim, têm carreiras. Enriquecem à nossa vista e nós sabemos que não pode ser assim muito direito. Mas medram: vão de um lugar para outro, sempre fazendo o mesmo e todos sabem.
Simplício – Sabem?
Sagredo – Sabem, sabem. Têm de saber. As secretárias, os colegas, os próximos, os familiares, os inimigos, os empregados, os companheiros de partido. Há sempre muita gente que sabe, mas depois há medo, indiferença, ou vantagem. Mas sabem, não podem deixar de saber, podem não saber os pormenores, mas sabem, ou suspeitam. Daí a dimensão.
Salviati – Reconheço que é um problema, mas podemos avançar sem nos fixarmos aqui. Na verdade, seja qual for a dimensão do fenómeno da corrupção, ele é preocupante. É estrutural ou não?
Sagredo – É sem dúvida estrutural. Basta ver a lista que o Simplício fez. Inclui um primeiro-ministro, uma parte da elite financeira e económica, sectores essenciais da administração pública, instituições de solidariedade social, empresas, bancos, gente com carreira política e profissional, ministros, governantes, autarcas.
Simplício – Mas como nunca mais há julgamentos, tem de se presumir a inocência.
Salviati – Sim, é verdade. Mas vamos fazer como na física, uma experiência mental, como o gato de Schrödinger. Seja qual for a hipótese, isto está muito mal. Se tudo for falso, temos um grave problema com a Justiça; se tudo ou quase tudo for verdadeiro, então a corrupção campeia. Podemos ficar pelo meio termo, ou melhor, deixar de centrar a questão na culpa e na inocência e colocá-la no que se sabe, métodos, práticas, módus operandi, cumplicidades...
Sagredo – Mas muitas dessas coisas não são corrupção.
Salviati – É verdade, mas são o terreno da corrupção. É por isso que eu falo de ecologia. Está nas más práticas da administração, numa cultura de favores, em escolhas por confiança política ou amiguismo, nas cunhas e no patrocinato, na partilha da informação apenas entre os “pares”, nos círculos informais do poder político... Está na ausência de uma cultura anticorrupção nos partidos políticos, que são mais sensíveis à dissidência do que à vergonha...
Sagredo – Nesse círculo de confiança de que tens falado: a gente que pode ser escolhida para tudo porque “é de confiança” é a ecologia da corrupção “alta”. Já se sabe que circula entre os negócios, a política, certas profissões com acesso muito próximo do poder político: grandes advogados, auditores e consultores, gestores, gente ligada à comunicação.
Simplício – Os que bebem do fino...
Sagredo – E deixam pequeno rastro, conversas em almoços, emails e telefonemas. É por isso que as escutas telefónicas têm o papel que têm. Imagina as centenas, milhares de conversas deste género:
“Olha para o teu projecto, devias falar com o A do gabinete do secretário de Estado. Vou-te dar o número privado.”
“Para essa privatização tens de falar com B. Se não falares com B, nada feito.”
“Seria possível agilizar esta autorização? É que o meu cliente tem muita pressa e está a perder muito dinheiro.”
“Sim, eu concorro, mas não posso perder, e tu podes dar outra coisa ao meu concorrente.”
Todas estas conversas são anódinas, nem sequer incluem a parte das vantagens, nem chegam à corrupção. Mas um dos interlocutores fica sempre em vantagem, seja em poder – é por ele que se conseguem algumas coisas –, seja em favores que podem ser retribuídos, seja no resto... a corrupção propriamente dita.
Salviati – E quem pode fazer isto fá-lo porque tem “acesso” – tal acesso que valia um milhão (a frase foi dita) ou que abre “todas as portas” (a frase foi dita). Ou tem informação, sabe com quem falar e o seu nome faz com que outrem atenda os telefonemas e faça os favores. O círculo de confiança que ninguém escrutina, porque a discrição é norma.
Simplício – Bebem do fino, repito.
Sagredo – E ganham do grosso.
Salviati – De facto, nem é preciso ter grande sofisticação, basta estar lá. No sítio certo.

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