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Saturday, December 31, 2016
A morte de Saddam devia ter marcado uma “nova era”. Não durou nem cinco minutos
Will Bardenwerper
Opinião
“Vão desejar ter-me de volta”. É perturbador acolher esta premonição
[de Saddam Hussein], expressa como foi por um tirano implacável com
tanto sangue nas mãos.
Numa sexta-feira há 10 anos, às seis horas da manhã, hora de Bagdad,
Saddam Hussein foi levado por um lance de escadas na antiga sede dos
seus serviços secretos, no bairro de Kadhimiyah, na capital iraquiana. O
espaço tinha servido, segundo alguns rumores, para abrigar salas de
tortura onde alegados “inimigos do Estado” sofreram durante o regime.
Oficiais de rosto tapado conduziram o antigo Presidente em direcção a um
grande alçapão. Ele seguiu-os obedientemente, sem qualquer medo
aparente, recusando-se a usar um capuz. Enquanto palavras de ordem
pró-xiita de “Muqtada, Muqtada, Muqtada” rompiam a quietude mórbida, as
câmaras giravam e encadeavam, criando uma aura espectral.
Uma voz gritou: “Vai para o inferno.”
Saddam respondeu: “O inferno que é o Iraque?”
A meio da sua recitação da chahada, a profissão de fé do
Islão, o piso cedeu por baixo de Saddam, com um estrondo audível ecoando
no espaço semelhante a um armazém, enquanto o pescoço se partia. Pouco
depois, estava morto.
Num comunicado emitido na sequência da
execução, o presidente norte-americano George W. Bush afirmou que,
embora este facto não fosse pôr um fim imediato à violência sectária que
já estava a despedaçar o Iraque, marcaria “um importante marco no
caminho do Iraque em direcção a uma democracia” que pudesse “governar,
sustentar e defender-se a si própria, e ser um aliado na guerra contra o
terrorismo.” Esperava-se que a morte de Saddam desse início a uma nova
era no Iraque e na região.
Mas essa nova era nem durou cinco
minutos. Uma pequena multidão de xiitas celebrou efusivamente ao lado do
corpo de Saddam, criando a sensação de um linchamento indisciplinado em
vez de uma operação calculada e liderada pelo Estado. Em poucas horas,
pelo menos 75 pessoas foram mortas em ataques bombistas pelo país,
naquilo que terão sido provavelmente ataques sunitas de retaliação com
os xiitas como alvo. Os militares dos Estados Unidos, entretanto,
anunciaram a morte de seis soldados, transformando aquele Dezembro no
mês mais violento para as forças norte-americanas em dois anos.
Fumo
crescente turva o nascer do sol nas cidades pelo Médio Oriente dez anos
depois da execução de Saddam, e 13 anos depois da promessa de Bush de
que um “Iraque livre terá um efeito extraordinariamente positivo na sua
vizinhança.” A vizinhança é agora um jazigo.
Na altura da
execução, a Primavera Árabe ainda não se tinha inflamado – nem sido
impiedosamente extinta. Embora a Síria e a Líbia continuassem a ser
ditaduras repressivas, as relações com a Líbia estavam no melhor ponto
em décadas, com a administração Bush a retomar por completo as suas
relações diplomáticas com o regime de Khadafi. Também o Egipto
aparentava uma confiável estabilidade, embora os críticos de Hosni
Mubarak permanecessem descontentes com o alcance e o ritmo das reformas
limitadas com que tinha concordado avançar. O sempre volátil Iémen
continuava sob controlo do corrupto autocrata Ali Abdullah Saleh, que,
numa frase que ficou célebre, se referiu ao desafio de unir aquele país
fraccionado como “dançar em cima de cabeças de serpentes”. As brasas
da violência no Iraque, a incandescerem numa sangria sectária que
piorava de dia para dia, ainda não tinham deflagrado num incêndio que se
espalharia para além das suas fronteiras.
Sabah Arar/AFP
Fotogaleria
Mas acabaria por acontecer, no entanto. As ditaduras da região
provariam ser uma caixa de fósforos que, depois de acesa, consumiria a
vida de mais de 400 mil pessoas na Síria, milhares no Egipto, Líbia e
Iémen, e eventualmente entre 200 mil e 500 mil no próprio Iraque.
Milhões seriam desalojados, provocando uma crise humanitária para a qual
o mundo não estava minimamente preparado. Em alguns anos, os refugiados
tornar-se-iam uma ameaça ao tecido social europeu e nasceria uma nova
organização terrorista, chamada Estado Islâmico, ainda mais letal e
bárbara do que a Al-Qaeda.
Com o inimigo sunita do Irão e Saddam
eliminado, a teocracia xiita tornou-se predominante, exercendo uma
poderosa influência sobre o novo governo iraquiano, expandindo o seu
alcance até ao Iémen com os rebeldes houthi a tomarem a capital, e
posicionando-se para contribuir para a vitória de Bashar al-Assad na
Síria.
Quem consegue esquecer a declaração de Donald Rumsfeld –
marcada pela inabalável confiança que caracterizou a sua liderança – de
que a guerra no Iraque poderia durar “cinco dias ou cinco semanas ou
cinco meses, mas que certamente não iria durar mais do que isso”? Como
se veio a revelar, o actual esforço para libertar Mossul – pela terceira
vez, desta vez de uma organização terrorista, o Estado Islâmico, que
nem sequer existia quando Saddam foi morto – prevê-se que dure mais do
que aquilo que Rumsfeld assegurou que iria durar toda a guerra. Só esta
semana, 1700 soldados da 82.ª Divisão aerotransportada do Exército
norte-americano despediram-se dos seus ente-queridos antes de serem
destacados para o Iraque. Os mais novos tinham apenas cinco anos quando
os Estados Unidos iniciaram a invasão para derrubar Saddam.
Pergunta-se
como é que alguém, sobretudo os arquitectos da guerra, se pode agarrar à
ideia de que encaminhar Saddam para o enforcamento valia milhares de
milhões de dólares, já para não mencionar os 4500 oficiais em serviço
mortos, os mais de 30 mil feridos, ou as centenas de milhares de mortes
violentas que ocorreram pela região desde o seu derrube. Sem contar com
os milhões que foram forçados a fugir da violência com pouco mais do que
a roupa que tinham no corpo, ou as ameaças terroristas que agora são
habituais nos cenários americano e europeu. Nenhum dos legisladores
americanos responsáveis por isto foram responsabilizados tal como os
seus homólogos britânicos foram no condenatório Relatório Chilcot.
Tudo
isso me lembra algo que aprendi enquanto trabalhava no meu livro sobre o
Iraque. Saddam expressou repetidamente o mesmo sentimento a algumas das
pessoas responsáveis por ele durante os seus três anos de prisão: “Vão
desejar ter-me de volta”. É perturbador acolher esta premonição,
expressa como foi por um tirano implacável com tanto sangue nas mãos. É
especialmente perturbador quando penso em amigos corajosos e soldados
cuja crença na sua missão nunca definhou, alguns deles derrubados no
melhor tempo das suas vidas. No entanto, quando interpretadas em relação
à cadeia sísmica de eventos desencadeada pela guerra para o remover do
poder, as palavras de Saddam Hussein parecem perversamente proféticas. Will
Bardenwerper é escritor e foi militar da Infantaria no Exército dos
Estados Unidos e, mais recentemente, trabalhou como funcionário público
no gabinete do Secretário da Defesa. Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
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