Este ensaio ndo pretende corrigir esta situagAo mas
contribuir para assinalar alguns dos mais significativos
debates e contribuigoes que se t6m feito sobre a hist6ria
recente de Mogambique e assim minimizar os efeitos negativos
do limitado acesso de tais publicagdes entre os leitores
mogambicanos.
O objectivo principal do ensaio 6 situar a problerndtica
do processo revoluciondrio iniciado pela FRELIMO durante
a luta armada de libertagSo nacional, pretendendo demonstrar
a possibilidade e necessidade de reanalizar a pr6pria hist5ria
da FRELIMO e de Moqambique como base para uma andlise
mais correcta das contradigOes que se levantam hoje.
Sdo analisadas em particular duas obras publicadas
em 1984 e 1985 da autoria respectivamente de Joseph Hanlon
e de John Saul (1). Joseph Hanlon trabalhou em Mogambique
como jornalista coruespondente da BBC e do Manchester
Guardian. John Saul 6 um "compagnon de routertda FRELIN4O
@'dataquej6apoiavaes1aorganizag6oquatrdoera
professor na Faculdade de Ci6ncias Sociais da Universidade
de Dar-es-Salaam nos fins dos anos 60. De notar que o
texto de Saul 6 produto de um colectivo de vdrios autores
que trabalharam ou trabalharn em Mogambique. A colectAnea
cobre sectores como a educag5o (Judith Marshall) a agricultura
(Helena Dolny) a indristria (Peter Sketchley) o planeamento
fisico (Barry Pinsky) a saride (Carol Barker) e as
mulheres (Stephanie Urdang). Cabe no entanto a John Saul a
fundamentag5o das premissas te6ricas, gu€ d5o uma coesSo
ao texto, no que constitui a parte ntais significativa do livro.
Embora a realidade mogambicana seja o foco principal
DA IDEALTZA9AO OA FRELTMO 3 t
destes dois estudos, salienta-se tamb6m o inter-relacionamento
entre os acontecimentos que ocorreram em Mogambique
e os que constituem um pano de fundo mais vasto da
hist6ria regional da Africa Austral dominada hoje pelo
crescimento do movimento popular contra o regime do
"apartheid".
Ambos os livros testemunham o impacto regional do
crescimento politico e ideol6gico da luta de libertag5o
nacional desencadeada pela FRELIMO e os efeitos contradit6-
rios da independOncia de Mogambique, quer entre os nacionalistas
sul-africanos, quer sobre os dirigentes do "apartheid",
que viram no processo mogambicano uma aneaga directa
n5o s6 d sua hegemonia dentro da Africa do Sul como a
sua predominAncia politica e econ6mica e a do pr6prio
sistema capitalista em toda a regiao austral de Africa.
Assim, o primeiro capitulo do livro de Hanlon comega,
muito apropriadamente, com as palavras do Ministro da
Informag6.o, Jos6 Luis Cabago: "Construimos alguma coisa".
O ministro queria chamar a atengao ao facto de, apesar
de muitos erros graves, os mogambicanos conseguiram
alguns sucessos. Ndo hd drivida que muitos poderdo discordar
e afirmar que o cardcter duma revolugSo 6 determinado
nSo por aquito que foi, mas por aquito que 6. No entanto,
numa situagSo em que os ataques dos bandidos armados
estSo a fazer tudo para que aquilo que foi construido seja
destruido, ao ponto de fazer esquecer o caminho percorrido,
6 importante ter relatos do percurso.
Os dois livros t6m efectivamente como objectivo
principal de relatar as lutas que transformaram a Frelimo
dum movimento meramente nacionalista num movimento
dedicado e transformagSo revoluciondria da sociedade
mogambicana. Para as pessoas que nao participararn directanrente
neste processo, a Frelimo que conhecem 6 uma Frelimo
tao abalada que quase irreconhecivel. Os autores n5o
s5o neutros, e concordam inteiramente com as opgoes da
Frelimo. Paradoxalmente, 6 este engajamento que constitui
um dos problemas centrais dos livros.
"Revolugao debaixo do fogo", "Um caminho diffcil", s6o
os dois subtitulos que Hanlon e John Saul, respectivamente,
utilizam para tentar fazer a ponte entre a Frelimo de 1975,
32 ESTUDOS MOQAMI
cheirando a vit6ria e a Frelimo de 1985, exangue, esgotada,
muito longe da imagem de 1975. O que os autores querem
mostrar 6 que a F-relimo de hoje, ds vezes aparecendo
derrotada, 6 tamb6m uma Frelimo vitoriosa. A falha maior
dos dois livros 6 Oe n6o analisar as contradigdes que levaram
a Frelimo vitoriosa i situagao actual.
Sem f.azer um elogio ao demotismo procuraremos
demonstrar neste ensaio que 6 .possivel analisar as actuais
contradigoes da Frelimo a partir da sua pr6pria hist6ria no
quadro da hist6ria da pr6pria sociedade mogambicana.
A formulagdo de novas perguntas e quest6es torna-se
contudo uma necessidade. Estas devem ser, por6m, colocadas
de modo a que permitam abordar a hist6ria da Frelimo, ndo
como um texto inalterdvel, mas como um processo contradit6rio
inserido na luta nacionalista e social de Mogambique.
Assim, como a luta contra o colonialismo trouxe
d luz uma hist6ria abafada e negada pelo pr5prio colonizador,
as lutas travadas desde a independ6ncia devem-nos permitir
olhar de forma diferente sobre aspectos e lutas anteriores
h pr6pria independ6ncia e ao seu processo e, assim, melhorar
os nossos instrumentos de an6lise para compreender as
contradigoes de hoje.
Ao fazerem uma an6lise critica da hist6ria de Mogambique
desde a independ6ncia os dois livros destacam os
aspectos mais significativos que constituiam intengdo da
opgSo socialista da Frelimo. Embora o seu enfoque seja
o periodo do ap6s independ6ncia, ambos os autores resumem
a hist6ria da luta armada e concluem com uma an6tise
do impacto do Acordo de Nkomati.
Nao pretendemos negar o m6rito dos dois autores,
mas mostrar a importdncia de aprofundar a crftica, se
queremos fortalecer as fileiras dos que combatem por uma
transformag5o socialista de Mogambique.
Estes dois livros destacam-se de muitos outros publicados
anteriormente na medida em que tentam produzir uma
andlise crftica da situagao a partir de uma posigSo de apoio
aos objectivos tragados pela Frelimo. Procuram ndo cair
numa mera justificagao ideol6gica, mas, ainda assim, a
sua caracterfstica principal 6 a de nao analisar a situagao
real, tal como ela 6, mas a de dar respostas a posigbes
DA IOEALIZACAO DA FRELIMO 3 3
ideol6gicas antag5nicas. Ernbora tenham a sua inrport6ncia
e as lutas ideol6gicas possam conduzir-nos a discuss6es e
anSlises justas e justificadas, falham neste caso por ndo
enfrentarem a realidade concreta.
1. OS PONTOS DE PARTTDA: A TRANSFORMA9AO DAS
PREMISSAS EM POSTULADOS
Urn dos problemas de fundo da Hist5ria da Frelimo
prov6m nao s5 da f orma vitoriosa como esta hist6ria 6
abordada, mas, sobretudo, da utilizag6o dos seus conhecimentos
de f orma inquestiondvel. O facto de a luta armada
ter desembocado na Independ6ncia em 1975 contribuiu
para que esta fosse vista como uma prova de justeza da
luta armada, criando-se assim um consenso, implicito e
silencioso, sobre as causas da vit6ria da independ6ncia.
Na cr6nica de uma historiografia vitoriosa 6 muito
raro encontrar relatos focando aspectos "menos vitoriosos".
Assim, na Hist5ria da Luta Armada, como o processo global
conduziu e vit6ria, considera-se ser desnecessdrio analisar
de uma forma critica o conterido e os limites dessa vit6ria:
n5.o se avaliam os aspectos que nessa vit5ria poderiam
no futuro comprometer e ameagar a consolidagdo de algumas
das conquistas alcangdas.
Quer no livro de Saul, como no livro de Hanlon, n5o se
encontra uma tentativa de repensar a hist5ria de libertagSo
a partir de 1962. O processo das transformag6es da Frelimo
entre 7962 e 1975 ndo 6 visto como podendo constituir
um tema de estudo hist6rico necessdrio para analisar o
presente. Ora, na hist6ria, como em qualquer ci6ncia, 6
necessdrio, ds vezes, voltar atrds e requestionar os conhecimentos
corr;iderados como definitivos. No caso da Frelirno
n5o se trata de questionar o objectivo escolhido, trata-se
de analisar como o caminho foi percoruido e se a maneira
como se conta este percurso n5o tenr gerado erros de compreensdo,
erros de conhecimentos. Ao nfvel de reflex6es e
de andlises da vit6ria da luta armada, os textos s6o dominados
3q ESTUDOS I,IOQAMBICANOS
por uma problemdtica teleol6gica. Isto significa que a prova
da vit6ria estd na pr5pria vit6ria e, portanto, ndo hd necessidade
de colocar perguntas que ponham em drivida esta
quest6o.
Uma das palavras de ordem da Frelimo diz que a
vit6ria prepara-se, a vit6ria organiza-se. A pr6pria Frelimo
tem dito tamb6m que o 25 de Abril de I97 4 ocorreu cedo
demais; pode-se deduzir correctamente que a vit6ria, alcangada
sem ter sido preparada suficientemente, n6o foi tdo
satisfat6ria como devia (ou podia) ter sido. Por outras palavras,
apesar do facto dos pr6prios dirigentes da Frelimo
terem sugerido que a vit6ria teve limites, os historiadores
desta vit6ria preferiram focar sobre a vit6ria e n5.o sobre
os problemas "pendentes" da luta armada.
Salvo erro, nao existem at6 hoje textos que tentam analisar
objectivamente o conterido, os limites e as contradig6es
da vit6ria sem cair no reducionismo, quer ent dar prim azia
a um facto, ou conjunto de factores, gu€ simplificam e,
portanto, distorcem um processo complexo Q). Isto, pelo menos,
no que diz respeito aos textos de esquerda, pois os
textos de direita t6m uma tendGncia inversa: a Frelimo
6 apresentada como uma organizagdo militarista enfeudada
aos interesses dos pafses socialistas. Esta inversSo teleol5gica
tem servido, ali6s, para alimentar a estrat6gia de agress5o
dos paises imperialistas. E, para esses, como a Frelimo
estd colocada no campo inimigo tudo serd feito para impedir
a vit6ria ou a consolidag5o desta vit6ria (3).
2. A HISTORIA COMO FRENTE DE LUTA POLTTICA E
IDEOLOGICA
No contexto corrente da Africa Austral e tendo em
conta o desenvolvimento das lutas e a import6ncia dos
interesses em jogo, 6 extremamente dif icil f.azer uma andlise
hist6rica que seja ao mesmo tempo um contributo para
a luta. Dito de uma outra maneira o problema consiste
enl saber produzir uma hist5ria critica e construtiva, sem
DA IDEALiZAQAO DA FRELIMO 3 5
cair no paternalismo acad6mico e no triunfalismo cego.
Como se ir6 combater a propaganda ideol6gica de direita,
sem produzir uma hist5ria-propaganda cuja utilidade serd
limitada a fung5o de contra-ideologia, 6 a questSo que
levantamos.
Embora n5o esteja abordado explicitamente por nenhum
autor, a questSo do foco 6 importante. Fazer a Hist6ria
da Frelimo corresponde a fazer a hist6ria de libertagao
nacional de Mogambique? Da maneira como a periodizagSo
predominante 6 apresentada, a resposta 6 ambigua. O periodo
anterior d fundagao da Frelimo 6 visto como fazendo parte
dum outro perfodo, nitidamente separado do periodo da
Iuta armada. Nao se p6e em drivida a validade dum estudo
da hist6ria da luta armada, o que se questiona 6 saber,
se produzir uma hist6ria da luta armdada dirigida pela
Frelimo permite, automaticamente, compreender a hist6ria
global do processo ao nivel do pafs.
As vezes, implicitamente, a hist6ria da Frelimo 6
considerada como a concentragdo das contradigoes da sociedade
mogambicana. Esta interpretagao aparece claramente
quando se discute a famosa luta das duas linhas. A luta,
localizada dentro do seio da direcg5o da Frelimo, constitui
uma passagem chave da hist6ria da Frelimo. Por6m, se
questionannos em que medida esta luta permite compreender
as contradigoes QU€, naquelas alturas e depois, dividiam a
sociedade mogambicana, serd diffcil encontrar uma resposta.
A vit5ria da independ6ncia em 1975 contribuiu significativamente
para impor a ideia de que a hist6ria da luta
pela independ6ncia nacional pode, no essencial, ser reduzida
a hist6ria da Frelimo. E a maneira como decorreu o 3e
Congresso pode ser vista como a confirmag5o da ideia
de que todos os mogambicanos se reconheciam dentro da
Frelimo. Havia uma aparente coincid6ncia entre as duas
hist6rias mas, na realidade, a hist6ria da Frelimo s6 pode
ser entendida em toda a sua especificidade quando colocada
no global da hist6ria de toda a sociedade mogambicana.
Por exemplo, no que diz respeito d caracterizaglo ideol6gica
da Frelimo seria possivel argumentar que a Frelimo
estava mais pr5xima do marxismo-maoismo revolucion6rio,
quando do processo da criagao das zonas libertadas, do
36 ESTUDOS MOQAMBICANOS
que quando se proclamou partido marxista-leninista, partido
de vanguarda, no 3s Congresso em 1977? Uma das dificuldades
mais 6bvias desta argumentagao serd, evidentemente, a
questAo de saber o que se deve entender por marxismo-
-leninismo. Se for aceite esta hip6tese de trabalho, ser6
necess6rio explicar por que houve esta inversSo, por que
6 que a Frelimo parece ter-se tornado menos revoluciondria
precisamente no momento em que foi proclamado o socialismo
como meta a atingir. Pode-se perguntar: terd havido
uma relagEo de causa a efeito entre a ascensdo de um movimento
de guerrilha a um aparelho de Estado herdado do
inimigo? Seja o que for, 6 diffcil no contexto desta problemdtica
n5o pensar nas palavras do Presidente Samora em
19?5: trAo retirar os quadros das zonas libertadas, estamos
a retirar o peixe da dgua"(4).
E preciso tamb6m lutar para preservar o sentido
de certos conceitos produzidos no processo da luta. Um
desses 6 o de zonas libertadas, muitas vezes vulgarmente
idealizadas ao ponto Oe se perder totalmente o significado
especffico que tinha. Predomina na sua utilizagao o sentido
quase literal de libertagSo da presenga ffsica da administragao
portuguesa. Ora esta libertagao s6 constitufa um aspecto
do sentido das zonas libertadas. Para a Frelimo, o conceito
referia-se ds transformag6es das relagoes s6cio-econ6micas
nas zonas controladas por ela. Contrariamente ao sentido
quase literal, este riltimo significado implicava que o processo
de transformag6o I'osse o resultado de lutas cujo 6xito
final n6o podia ser considerado como automaticamente
realizado. AI6m disso, importa salientar que o nfvel das
transformag6es ndo tinha atingido o mesmo grau em todas
as frentes da luta. Mas como hd uma tend6ncia em generalizar
a partir das transformag6es mais radicais e excepcionais,
acaba por se transmitir uma ideia distorcida do processo.
O facto de nas zonas libertadas se ter combatido as prdticas
do inimigo n6o significa, de maneira nenhuma, QU€ essas
pr6ticas tinham desaparecido totalmente. Assimr &o lado
de situagoes em que as mulheres assumiam posigoes de
chefia, havia mulheres que continuavam a ser utilizadas
como objectos de prazer e fontes de rendimentos para
os homens e familias.
DA IOEALIZACAO DA FRELIMO 3 7
Apesar da Frelimo ter sempre insistido sobre a necessidade
de ndo abordar a guerrilha s6 do ponto de vista militar,
o grande historiador e simpatizante da Frelimo, Basil
Davidson, no seu, alids excelente, livro The People's Cause,
cai preci,samente neste reducionismo (5). Davidson pensa
correctamente que a operagdo ''N6 G6rdio" saldou-se pela
derrota militar de Kaulza de Arriaga, mas a andlise ndo
devia ter parado ai porque a Frelimo visava muito mais
do que uma derrota militar. O avango militar da Frelimo
em L972 na provfncia de Tete foi possibilitado pela solidez
polftica e ideol6gica das zonas libertadas de Cabo Delgado
e Niassa, mas este avango militar n6o significou uma
extensSo, uma ,reprodug6o das zonas libertadas. Resta
perguntar se. teria sido possivel fazer coincidir o avango
militar com o avango das zonas libertadas. A Frelimo tinha,
na altura, os quadros necess6rios para cumprir esta tarefa?
Nao 6 possfvel responder a esta pergunta sem uma
investigagao -rnais ,aprofundada, mas 6 necessdrio que esta
seja feita sobr.etudo porque a questao da falta de quadros
6 levantada muito mais f requentemente para o periodo
ap6s 1975 do que para o perfodo anterior.
, E preciso analisar a luta n6o s6 a partir das transformagoes
do, lado dos oprimidos mas tamb6m das modificagoes
do Estado colonial provocadas pelo impacto da guerrilha.
O. impacto n5.o 6 analisado porque o colonialismo continua
a ser visto comp um sistema imutdvel enquanto eram visfveis
as tentativas do colonialismo em se manter por via de reformas.
A guerrilha n6o modificou a natureza do sistema colonial.
Mqs, ,cern o avango Qa guerra, notava-se que o Estado
colonial tornava-se mais repressivo e violento ou mais
reformador, de acordo com o facto dos grupos ou os indivfduos
visados constitulrem ou ndo uma ameaga d continuagao
do sistema.
3., O ENQUADRAMENTO TEoRTCO DAS FONTES OFTCTATS
Hanlon e os autores do livro de John Saul recoruem
38 ESTUOOS MOQAMBTCANOS
muito aos discursos oficiais para fundamentar os seus argumentados,
mas nenhum dos autores tenta problematizar
essas fontes. A problemdtica aceite 6 a problem6tica dos
discursos. Ao fim e ao cabo a dificuldade principal parece
ser a incapacidade de colocar perguntas fora Cas perguntas
postas pelo percurso da hist6ria jd percorrida. Sem nenhuma
excepgdo o molde predominante 6 o seguinte: os problemas
enfrentados pela Frelimo n5o vieram s6 do exterior, alguns
foram o resultado de erros - argum6ntam que esforgos foram
feitos para os corrigir. Uma hist6ria oficial, portanto, tem
a tend6ncia de ser uma hist5ria teleol6gica, autojustificativa.
E por via desta pr6tica que a hist6ria da Frelimo
tem sido contada por meio de acontecimentos chaves. Dentro
desses destacam-se os congressos. E duma certa forma,
os autores n5o conseguem libertar-se deste formalismo
na utilizagao das fontes. Assim, por exemplo, est6 aeeite
a ideia de que a colocagSo de Jorge Rebelo e de Marcelino
dos Santos na direcASo do Partido a tempo inteiro foi um
dos resultados do 3e Congresso em que tinha sido decidido
dar mais peso ao Partido e, neste sentido, fornecer mais
quadros ao Partido. Ora, o que aconteceu na realidade
foi diferente. De L977 a 1983, o Partido foi enfraquecendo
constantemente em relagSo ao Estado. Os esforgos feitos para
modificar a situagdo, da ofensiva ds revitalizag6es, podem
ser considerados como provas das dificuldades encontradas
nas tentativas infrutuosas de concretizar palavras de ordem
no sentido de reforgar o Partido.
Na formulag5o das crfticas, os discursos presidenciais
constituem uma fonte privilegiada porque constituem uma
prova imef utSvel da capacidade autocritica da Frelimo
ao mesmo tempo que sdo uma protecAdo contra possiveis
acusag6es de ultra-esquerdismo e/ou conf usionismo. Por
exemplo, o discurso contra as ilegalidades do aparelho
repressivo do Estado 6 utilizado como prova s6ria da intengao
do Estado em estabelecer o poder popular. Al6m disso o
contexto em que foi feito o discurso - a ofensiva politica
e organizacional - 6 tamb6m utilizado como prova da vontade
de valorizar e enraizar as ligoes da luta armada: tratar
o povo como a fonte de inspiragdo do poder (6). As intengoes
demonstram a exist6ncia formal de estabelecer o poder
DA IDEALIZAQAO DA FRELIMO 3 S
popular, mas neo sao concretizadas. Porqu6? Se ndo pudermos
por esta pergunta analisar o porquG da n5.o coincid6ncia
entre as intengoes e a realidade, o campo ficar6 totalmente
aberto para as respostas do inintigo. Respostas que, de
forma nenhuma, est6o interessadas em encontrar solugdes
para a construgao duma sociedade socialista.
4. 1975: CONTINUAEAO OU RUPTURA?
Cronologicamente, os dois livros de Saul e Hanlon
centram-se sobre o perfodo ap6s 19?5. A fraqueza dos dois
textos reside precisamente na utilizagao de 1975 como
ponto de partida. A problematizagao utilizada de chamar
a atengao ds diferengas entre o governo que toma o poder
em 1975 e vdrios regimes neocoloniais ndo 6 suficiente (?).
A Frelimo f oi efectivamente dif erente de muitos
outros movimentos, mas a melhor prova desta dif erenga
n5o passa por uma idealizagao da Frelimo. John Saul, apesar
de confrontar este problema da idealizagao, n5o consegue
estabelecer as bases duma crftica objectiva (8). Para John
Saul, a diferenga entre a Frelimo e outros partidos polfticos,
que se intitulam marxistas-Ieninistas, reside na pr6tica.
Segundo John Saul, a Frelimo conseguiu evitar quase todos
os aspectos negativos de todos os tipos de marxismo-Ieninisffio,
e mesmo quando estava a cair num desses defeitos
havia sinais prometedores de corecA6o. Assim a Frelimo
evitou as falhas do Socialismo Africano e do hipercentralismo
do socialismo dos pafses socialistas da Europa Oriental (9).
Mas quando comega a enfrentar os problemas actuais profundos
que impedem o avango da revolugao socialista, os analistas
caem no pessoalismo, falando das personalidades dos
dirigentes da Frelimo.
Neste aspecto, o texto de Hanlon, menos preocupado
com uma discuss6o sobre o marxismo-leninismo, estd muito
mais perto da tradigdo dominante da Frelimo (10). O que
importa era saber se a luta estava ou nAo a defender os
q0 ESTUDOS MOQAMBICANOS
interesses da maioria. Como muito bem disse Marcelino
dos Santos: "O nosso objectivo principal era de nos colar
ao povo". Evidentemente, "o povo" pode-se tornar numa
f5rmula vazia, mas pelo menos tem a vantagem de se referir
a uma realidade concreta enquanto o marxismo-Ieninismo
serd sempre uma nogdo abstracta. Querendo a todo o prego
denronstrar o marxismo da Frelimo, Saul acaba por produzir
uma discussdo que est6 mais perto da casuistica do que
duma metodologia marxista.
No centro desta discussdo sobre o marxismo, destaca-se
a questao da natureza do Estado, o que significa, automaticamente,
discutir as relag6es de classes dominantes na
sociedade mogambicana. Embora n5o satisfatoriamente,
Hanlor-r vai muito mais longe do que John Saul. Hanlon argumentava
de que "os aspirantes d burguesia" s6o aqueles
que v6m das camadas mais privilegiadas da 6poca coionial
e que continuam sendo saudosistas das sociedades de consumo
(11). O problema de fundo desta abordagem, 6 que
parte do principio da n6o inexist6ncia da burguesia porque
"n6o tem poder econ6mico". No entanto, o facto de a chegada
ao poder da Frelimo ter retirado as bases s6cio-econ5micas
dos aspirantes d burguesia, nao podia significar, por si s6,
que estes aspirantes ndo iriam tentar criar essas bases
a partir dos meios disponfveis. E mesmo que estes meios
n6o existissem, tentariarn cri6-1os. As relagoes de explorag5o
e de opress5o nAo esperam condigoes ideais para se manifestarem.
E verdade que a tomacia do poder pela Freiimo dificultou
as manobras deste grupo, mais unra vez que se deu
conta de que os meios s6 podiam ser obtidos pela via do
Estado, este grupo engajou-se num assalto sisterndtico
para conquistar posig6es de destaque no aparelho do Estado.
E este assalto foi de certo modo facilitado pela concepg5o
segundo a qual o Estado e o Partido podiam ser isolados
do resto da sociedade. Por um lado fala-se ntuito da necessidade
de impermeabilizar o Partido e o Estado, mas por
outro lado, o pr5prio Presidente Samora explica cono,
por exemplo, v6rias ligagoes de famflia, de classes e de
amizade fazem com que os que deviam implementar as
leis do Estado nAo o fagam porque elas v6o contra os interes-
oA IDEALIZAQAO DA FRELIMO q l
ses que aqueles querem de{'ender. Portanto, paradoxalmente,
v6-se na pr6tica, como o Estado e o Partido acabam por
ser afectados por estas forgas s6cio-econ6micas, pelo que,
no concreto, acaba por predominar uma paralisia. Mas
o paradoxo 6 s6 aparente pois se for aceite que o Estado
e o Partido foram permeados, n6o nos devemos admirar que
o Estado e o Partido nao consigarn desfazer-se das forgas
reacciondrias.
O conceito dominante de "infiltrado", para falar da
penetragao inimiga dentro do Partido e do Estado, 6 a contrapartida
da impermeabilizagao. Em ambos os casos, a andlise
tende focar sobre indivfduos em vez de processos e posigoes
de grupos.
S5o as condigoes materiais que acabarn por determinar
a consciGncia social. Como diz muito bem um texto do
Presidente Samora, homens podem alterar situagoes, mas
tambem novas situagoes podem transf ormar os homens,
mesmo os mais revoluciondrios (12).
A safda dos dois livros ocorreu no contexto das celebragoes
de vdrios aniversdrios: 1982, o vig6simo anivers6rio da
fundagao da Frelimo; 1983, o IV Congresso; 1984, o vig6simo
aniversdrio do infcio da luta armada e, finalmente 1985,
o d6cimo anivers6rio da independ6ncia. A16m disso, a assinatura
do Acordo de Nkomati a 16 de Margo de 1984 e as
acAoes cada vez mais destruidoras dos bandidos armados
f oram momentos que naturalmente levaram a f azer balangos.
Apesar dos progressos significativos, John Saul exprime
uma reserva importante: "efectivamente, com o risco de
exagerar, poder-se-ia dizer que a revolugSo se enfraqueceu
em vez de se reforgar na base, durante os anos que seguiram
imediatamente d independ6ncia. A Frelimo simplesmente ndo
conseguiu institucionalizar o poder popular..."(13). Nenhurn
dos autores p6e em dfvida as conquistas alcangadas, mas
Joseph Flanlon acaba por escrever aquilo que, provavelrnente,
milhares de mogambicanos se perguntam constaJrtemente
desde 1983: 'rO verdadeiro teste para saber se a desestabilizagAo
funcionou ou nao, estard na f'ornta como a Frelinto
escolher reconstruir a sua economia. A civilizada alternativa
foi destruida? A Africa do Sul. o Ocidente e os asDirantes
'.I2 ESTUDOS MOCAMBlCANOS
a burguesia na Frelimo aceitarAo assumir o socialisnto
e o poder popular como os seus pr6prios objectivos?"(14).
A dificuldade que John Saul tem, em fazer a sua
avaliagdo, prov6rn do facto de ele, a partir dos tempos
da luta armada, ter projectado o que a Frelimo iria cumprir,
mas como esta projecAao n6o coincide com a realidade,
a argumentag6o apresentada n5o convence. A pr6pria FreliDo,
pela voz do Presidente Samora, alertou contra uma
ideali zagSo apressada f eita a partir de vit5rias do passado:
t'Perguntamos, por que 6 que os quadros veteranos
da luta, que construiram com numerosos sacrificios
aquilo que somos hoje, se deixam, como dizemos,
ultrapassar? Temos primeiramente como causa desta
situagAo, o espirito de vit6ria.
As grandes vit5rias que alcangdmos, tanto no carnpo
da luta armada como na liquidag5o das forgas reacciondrias
e na destruigao das infiltrag6es inimigas no
nosso seio, ou ainda na reconstrugdo nacional, Ievam
certos camaradas a s6 verem vit6rias continuas,
a desprezarem tacticamente o inimigo, a considerarem
sempre a situagao como ttnormalt', ttboat', e nunca
tiram lig6es dos reveses, n6o estudam como combater
as nossas Iimitag6es.
Por isso deixam de estudar a nossa linha, acham
que jA conhecem o suficiente e af est6o as vit6rias
a provS-lo. O resultado 6 o abandono da andlise
politica, a nossa consci6ncia torna-se insensfvel
aos desvios e agress6es contra a linha e, assim, n6o
conseguimos detectar e destruir no ovo as infiltrag6es
ideol6gicas, morais e ffsicas do inimigo"(15).
Fazer o balango s6 a partir de 19?5 introduz uma
distorg5o que impede uma compreensdo correcta do percurso
e das transformag6es que afectaram a Frelimo na altura
daquela transigSo hist6rica. Uma das implicagoes desta
abordagem 6 que a Frelimo de 19?5 6 a rnesma que a Frelimo
das zonas semilibertadas e das zonas libertadas. Nao s5o
considerados como pontos de estudo as contradigOes e as lutas
que fizeram crescer a lrrelirno dum movimento merametrte
DA IDEALIZACAO DA FRELIMO q 3
nacionalista para um movimento decidido a transf ormar
radicalmente as relag6es herdadas do colonialismo portugu6s,
Uma outra implicag6o, paralela, 6 que as contradigoes
enfrentadas sdo mais ou menos as mesmas do que antes de
1975. E por isso n6o se estuda as diferengas.
No perfodo de preparagdo do IV Congresso muitas
criticas referiram-se a estes objectivos, e ao referir estes
objectivos, referiram-se d Frelimo que conseguiu ultrapassar
a crise interna de 1966/69 quando "os novos exploradores't
tentaram guiar a Frelimo no sentido s6 da independ6ncia
nacional.
As lutas entre as duas linhas, que vdo praticamente
de 1962 a 1970, n6o acabaram com a vit5ria da linha revoluciondria.
Foi muito mais um epis6dio duma luta prolongada.
Quando a Frelimo tomou o poder em 1975, reencontrou
de novo uma situagdo semelhante d de 1962/1966 nas antigas
zonas libertadas, mas desta vez a nfvel do pais. Com a
demota infligida a Kaulza de Arriaga, outros Nkavandame
pref eriram seguir a Frelimo, n5o porque assumissem os
seus objectivos polfticos e ideol6gicos, mas sim porque
a Frelimo tinha saido vencedora do combate com os portugueses.
Uns desafiaram abertamente por via de tentativa de
criar partidos polfticos, mas uma outra parte escolheu
oportunisticamente p6r-se do lado dos vencedores d espera
dum melhor momento.
A quest5o da transigdo dum movimento de guerrilha
para um Partido que toma o poder de Estado 6 levantada,
mas n5.o discutida, nos dois livros. Uma das razdes desta
reticOncia vem da jd mencionada tendGncia dos autores
em nAo fazer uma an6lise problemdtica das suas fontes.
E como resultado disso, n5o analisam criticamente uma
das consequ6ncias da derrota dos t'novos exploradores",
o que os fez pensar que o movimento, mais tarde o Estado
e o Partido, tendo-se purificado desses elementos num
determinado momento e em determinadas circunstAncias,
sempre encontrard dentro de si esta capacidade de se purificar.
Ora, sobre este ponto especffico, de como manter
a linha revoluciondria, a Frelimo foi clarissima:
" As ligoes tiradas dos erros devem ser discutidas
qq ESTUDOS MOQAMBICANOS
pelas massas para que elas adquiram a nova experiGncia.
As violagoes da linha e as agress6es contra
a nossa disciplina devem ser objecto de discussAo
e critica priblica das massas. Fazendo assim, por
um lado utilizamos os erros para aprofundar a nossa
consci6ncia poiftica, e por outro lado entregamos
ds massas a defesa da linha e da disciplina que 6
a sua propriedade"(l6). No entanto, a partir do espfrito
de vit6ria chegou-se ao ponto de aceitar os seguintes
pontos como se fossem postulados que ndo se pode
questionar:
O aparelho estatal seria o instrumento privilegiado
de transformag6o da sociedade rnogambicana;
Este postulado continha um outro, a saber, que o
Estado seria uma entidade administrativa separ6-
vel do resto da sociedade mogambicana; o Estado
ndo era visto como um resultado de lutas de
classes dentro da sociedade e que o poder que dele
emanava nao podia ser visto, automaticamente,
como defendendo os interesses dos operdrios
e camponeses;
A incapacidade de concretizar as orientagoes
do Partido tem sido atribufda i falta de quadros,
f alta de f ormag6o e raramente ds actuagoes
de classes, dos f uncion6rios que implementam
as orientagoes d sua maneira, n5o como incompetentes,
mas como pessoas pertencentes a camadas
sociais objectivamente opostas a concreti zag\.o
dum Estado que defendesse inequivocamente os
interesses dos camponeses e operdrios;
Uma concepgdo de lutas de classes geridas, controIadas
e fiscalizadas atrav6s do controlo do Partido
e do Estado.
No fim dum semindrio do DTI em 1981, o Printeiro
Secretdrio do lll'1, Jorge Rebelo, fazendo um balango critico
do Partido declarou:
1 .
,
3 .
4 .
DA IDEALIZACAO DA FRELII.,IO II 5
" Inibuidos do espfrito burgu6s de estrutura, muitos
quadros do ['artido isolarn-se das massas, pensam
eruadamente que o seu contacto com as massas
lhes far6 perder uma pretensa respeitabilidade. Para
esses membros do Partido, ser chefe, ser responsdvel,
implica necessariamente viver longe das massas e
ser temido por elas"(17).
A resolugao que saiu da 3e Reuniao Nacional do 'IrabaIho
ldeot5gico levantou quest6es de fundo sobre os problemas
de trarrsigdo e do funcionamento dum partido revoluciondrio
que tem o poder de Estado. As resolugOes daquela reuniao
v6m como um inventdrio dos problemas enfrentados e ao
mesmo tempo demonstram que o desafio enfrentado em
1974 e 1975 pela Frelimo era duma complexidade e duma
dificuldade que ainda hoje 6 diffcil compreender. O balango
mostra claramente a ligagao de classe que existe entre
a pr6tica polftica de membros do Partido e o facto do Partido
afastar-se das massas. No entanto, assim como em tantos
outros casos onde sao apontados claramente os problemas,
a 3q ReuniSo n6.o conseguiu criar as estruturas organizacionais
de classes para combater o tal "partido burgu6s". Esta
falha constitui uma falha estrutural cuja raiz 6 tao profunda
que, pode dizer-se, comegou a impedir uma andlise revolucion6ria
da sociedade rnogambicana, caindo-se no pessoalismb
e no abstracionismo te6rico, deformador da capacidade de
apreensSo da realidade.
As peri5dicas ofensivas constituem a manifestagao nrais
concreta desta falha. Com a agravante de que, em seguida,
fica, entre as vdrias percepg6es erradas, a de que se os
resultados nao foram ao encontro do que se esperava, a
incapacidade deve-se ds pessoas envolvidas (18).
Nao hd df vida que urrr dos suportes mais vulgares
deste argumerrto venr clo pr6prio prestigio atribuido i pessoa
do Presidente, prestigio que se traduz na ideia, eruada, de
que basta o Presiderrte saber, para se corrigirem as anomalias.
Quando John Saul aborda
a ideologia, o Partido e o listado,
t6cnico e pedag5gico de escolha
o tema da relagdo entre
redu-lo a um Inero problerna
clo melhor m6todo de ensino
do Marxismo-Leninismo (19). Assim, falando do encerrarnento
da Faculdade de N{arxismo-Leninismo, John Saul identifica
o problema como sendo uma falha a nfvel do corpo docente
que ensinava a disciplina de uma maneira abstracta e desligada
das condigoes materiais de Mogarnbique. Pode ser,
mas as dificuldades de enraizar urna ideologia revoluciondria
nao podem ser compreendidas se sdo analisadas isoladantente
das contradigoes e lutas a nfvel de toda a sociedade.
Atribuir a abstracAao do marxismo-leninismo aos
professores desta mat6ria 6 inverter o processo. A abstracgso
que se nota a nfvel do ensino do marxismo-leninismo s6 pode
ser compreensfvel se 6 vista como reflexo duma diverg6ncia
entre a teoria e a pr6tica revoluciondrias a nivel global
da sociedade. O processo de abstracASo do marxismo-
-leninismo comega pelo afastamento do Partido das massas.
Esta causa principal tem depois efeitos no ensino. Se16
dificil curar o problema se os efeitos sdo tratados como
se fossem as causas. A cura ndo vai aparecer s6 por tomada
de medidas, por mais comectas que sejam. Uma das ligoes
da luta arrnada, formulada pela Frelimo, 6 que a revolugdo
ndo se aprende nos livros, mas fazendo-a. Mas hoje a situagSo
modificou-se de tal forma que algumas f5rmulas, mesmo
as do tempo da luta armada, parecem ser de pouca utilidade.
Estando no poder, exercendo o poder de Estado, como poder6
a Frelimo exercer este poder de uma forma popular e revolucion6ria,
gu€ permita consolidar as conquistas da luta
armada?
E possfvel que, tendo e1e pr5prio ensinado o marxismo-
-leninismo, John Saul viesse a pensar que o problema de
fundo era uma questdo de m6todo, quando os problemas
enfrentados nas escolas e na faculdade tomaram as formas
aparentes dum problema tecnicamente resolfivel. O ponto
f undamental que John SauI evita conf rontar estd numa
andlise das contradigoes no seio da sociedade mogambicana.
Grande opositor da abstracg6o do marxismo, acaba por
desenvolver uma discuss5.o abstracta da maneira como
o marxismo 6 aplicado em N4ogambique. A discussao 6 abstracta
porque n5o foca sobre as contradigoes que se manifestam
dentro da sociedade mogambicana, mas sobre a tens5o
entre um ideal (em parte j6 atingido em vdrios momentos
DA IDEALiZACAO DA FRELIMO q 7
da hist6ria da F-relirno) e uma realidade is vezes tao afastada
do ideal que 15 v6lido perguntar-se se n6o seria mais comecto
falar de ruptura do que de tensao.
Por que houve afastamento ? Al6m de resultado de
erros internos, f oi tamb6rn resuitado dos assaltos dos inimigos
da Frelimo desde o primeiro dia da sua exist6ncia. As forgas
que queriam que a Frelimo ndo conseguisse os seus ideais
manifestaram-se ao longo da sua hist5ria de vdrias maneiras,
dentro e fora do Partido, dentro e fora do Estado, dentro
e fora do pais, O surgimento dos bandidos armados pode
ser considerado como a manif estagao mais dura e mais
destruidora destas forgas.
5. O ESTUDO DO INIMIGO
Foi dito jA que uma das lacunas de muitos trabdlhos
sobre a Frelimo estd na falta de andlise do inimign e suas
transformag6es provocadas pela luta. Isto apesar da Frelimo
sempre ter insistido sobre a necessidade de conhecer bem
o inimigo. E, em parte, se a Frelinto venceu em 1975 foi
porque esforgou-se em estudar sempre o inimigo. A lacuna
notada, no que diz respeito ao periodo 1962-1975, reproduz-se
no periodo ap6s 1975. Os autores falam dos bandidos armados,
mas ndo fazem um esforgo para os analisar. E interessante
notar que antes da vit6ria de 19?5, o Presidente Samora
jd chamava a atengSo para os perigos que podiam resultar
da falta de estudo do inimigo. Numa critica dirigida aos
quadros que se deixam influenciar pelo espfrito de vitoria,
disse que eles:
"deixam de estudar o inimigo, considerartdo que ja
o conlrecem suficientemente, e a prova 6 que ai
estdo as vit5rias. Mas as manobras do inimigo evoluem
continuamente, o seu espirito criminoso e desesperado
cresce com cada derrota. Nao estudar constantemente
o inimigo, desprezri-lo tacticamente, leva-nos A
']B ESTUDOS MOQAMBICANOS
rotina, e por isso a sermos surpreendidos pelas novas
manobras do inimigo, pelos seus novos crimes. Assim,
em vez de mantermos a ofensiva, em vez de destruirmos
a cobra quando estd no ovo, caimos na defensiva,
descobrimos a cobra quando jA adulta, Ievanta a
sua cabega verrenosa para nos liquidar".
Quando o nome de bandidos armados foi oficializado,
a Frelimo ndo tinha deixado de se bater para definir rigorosamente
o que separava os seus objectivos dos dos colonialistas,
o que separava a sua concepgSo duma sociedade justa
e igualitdria da do regime colonial fascista. Um primeiro
passo, necessdrio, foi reagir contra a respeitabilidade polftica
e ideol6gica que os bandidos armados tentaram criar em
volta de si, chamando-se RENAMO (Resist6ncia Nacional
Mogambicana) e antes disso Africa Livre.
Mas ao mesmo tempo houve uma subestimagao dos
desgastes e das aliangas que os bandidos armados podiam
conseguir. E possivel ver na polftica de destruigao uma
pr6tica tfpica do fascismo mais reaccion6rio. Como dizem
os camponeses, os bandidos armados s5o ef ectivamente
hienas, mas mesmo que tenham comportamento de animais,
os bandidos armados sao homens que foram utilizados nao
para criar um movimento polftico, mas para destruir, com
o objectivo de desmoralizar. O banditismo armado foi especificamente
utilizado da mesma maneira que a PIDE e os
sul-africanos utilizaram e utilizam a tortura e a repressdo
violenta: para quebrar o oponente. E depois proclamar
que a queda da vitima 6 mais uma prova da incapacidade
inerente aos pretos de dirigir um Estado, e do socialismo
ser incapaz de desenvolver uma economia funcional.
A polftica de destruigao s6 por destruir n6o 6 tao
il6gica como podia parecer ,i primeira vista: algumas das
mais potentes multinacionais surgiram e fortaleceram-se
por via da Segunda Guerua Mundial e das guerras da Coreia
e do Vietname.
Pode ser coruecto dizer que os bandidos armados nao
t6m base social, mas pode-se tamb6m ver nos bandidos a
estreitfssinra base social dos financiadores fascistas guiados
s6 pelo desejo de recriar as condig6es que perderam em 1975.
I Z/i CAO DA FRE L I I'4O q 9
Pode parecer contradit6rio considerar utll grupo a-social
como uma base social, mas esta contradigao desaparece
se tomarmos em conta o facto de que os regimes de extrema
direita caracterizam-se pela estreiteza das suas bases
sociais e pelo recurso d viol6rrcia para assentar e manter o
seu poder.
Pode-se duvidar do interesse dos bandidos armados
em criar uma oposigao, mas o que 6 indubit6vel 6 o seu
5Oio ao comunismo e qualquer coisa que de perto ou de
longe se assemelhe. Mesmo que ndo sejam representativos,
quer a nfvel nacional quer a nivel internacional, ndo seria
a primeira vez na hist5ria dum pais do terceiro mundo
que as pot6ncias imperialistas se organizariam para montar
do nada um "governo de reconstrugao nacional", enfeudado
aos seus interessesl como se fez em Granada para citar
um dos casos mais recentes.
Os bandidos armados t6m raizes que vao at6 d f undagSo
da Frelimo. Naquelas alturas e sobretudo depois do II Congresso
em 1968, os bandidos armados f oram ideol6gica
e politicamente identificados como reacciondrios e aliados
directos dos colonialistas portugueses. Falar de bandidos
sociais consiste um nao-sentido: qualquer que seja a sociedade
onde se encontra um bandido 6 por definigao a-social. Falar
de bandidos sociais (portanto bons) 6 a mesma coisa que falar
de bons nazis.
CONCLUSAO
O que tentamos ntostrar 6 que na pr6pria hist6ria
da Frelimo, nas suas pr6prias fontes, existelr bases para
produzir unra hist6ria problentatizada, uma hist6ria que
sirva de reflexSo e de estudo sobre a situagSo itctuetl. Os
textos da Frelinto podern guiar a construgao duma hist6ria
mobilizadora, mas n6o a cont6m. Para utiliztrr estes textos
6 preciso, como disse o Presidente Samora, abandonar o
espfrito de vit5ria porque:
s 0 ESTUOOS I'IOQAMB r CANOS
O espfrito de vit6ria 6 unra rnanifestagao de oportunismo
de esquerda: leva-rros a desprezar tacticarnente o
irrirrrigo, conduz-nos ao aventureirismo. Cedo ou tarde
o espfrito de vit6ria far-nos-d pagar em sacriffcios,
far-nos-d pagar caro, em baixas pesadas e in[teis,
os erros que conreternos.
O espfrito de vit5ria 6 irm6o g6meo do espfrito de
derrota, o oportunismo de esquerda 6 a outra face do
oportunismo de direita.
Quando em consequ6ncia dos erros cometidos pelo
espirito de vit6ria, se sofrenr reveses, os aventureiros
caem entAo no espirito de derrota, ternenr o inimigo
do ponto de vista estrat6gico, cornegam a s6 analisar
fracassos, deixam de ver os progressos da luta. Corno
tinharn o espfrito de vit5ria rSpida, a guerra torna-se
"intermindvel" nas suas cabegas. As vit6rias alcangadas
sao para eles casuais e isoladas.
Corn este espirito, passam a realizar as suas tarefas
com um desinteresse evidente, abandonam totalmente
a vis6o de conjunto, s6 v6ern erros nos trabalhos efectuados
pelos outros camaradas, rnas recusanr-se a
apontar e discutir os erros, a propor solugdes justas.
Preferenl o nlurrnfiriod crftica eautocrftica, aintriga
A discussSo aberta. Criam os seus grupinhos, os seus
aliados...
Os corpos continuarn na nossa zona, mas os espfritos
j6 se instalaram na outra zona, sonhando com o conf orto
e corrupgao vistos como coisas maravilliosas (21).
OA IDEALIZAQAO OA FRELIMO 5 I
t{0TAs
(1) Joseph Hanoln, Mozambique: Revolution Under Fire, Zed Books,
London, 1984, 29? p. John Saul, (editor), A Difficult Road:
The_Transition to Socialism in Mozambique, Monthly Review
Press, New York, 1985, 420 p.
(2) Este 6 o caso de vdrios livros ou artigos quer de esquerda,
quer de direita, como por exemplo Barry Munslow, "State
Intervention in Agriculture: The Mozambican Experience",
Journal of Modern African Studies, 22, 2 (1984), pp. t99-22L;
Horace Campbell, "l,lar, Reconstruction and Dependence in
MozambiQU€", .lournal of African. Marxists, 6, 0ctober 1984,
pp. 47-73; Michel Cahen, "Etat et pouvoir populaire dans
le Mozambique independant", Poli.tjque Africaine, 19, September
1985, pp. 36-60; Greenwood Press, 1983, 289 p.
(3) 0 livro de Henricksen 6 tfpico desta 0ltima problemdtica
apresentando a Frelimo como uma organizag6o militar, significandor
pdfd ele, uma organizaqdo ipso facto repressiva,
e portanto ndo podendo desenvolver uma sociedade democrdtica.
Henri cksen , como tantos outros observadores ameri canos e
europeus rQU€ se levantam contra os regimes mi I itares do
terceiro mundo, pretendem esquecer que o apelo I luta armada
foj resultado da "pacificag6o", leia terrorismo, operado
nestes mesmos territ6rios pelo poder co'lonial-imperialista.
Sobre a questdo da te'leologia na histdria, tem havido muitos
trabalhos. 0 mais destacado, porque coloca-se numa perspectiva
revoluciondria, d o livro de Pierre Raymond, La Resistible
fatalit6 de I'histoire.
(4) Entrevista com Pietro Petrucci, Afrique-Asie, n. 109, 17-30
Ma'i 1976. Esta citag6o ndo aparece na entrevista, mas foi
gravada.
(5) Basil Dav'idson, The People's Cause, Longman, 1981, pp. I27-8.
(6) John Saul. 0p. Crt.. p 8 8
52 ESTUDOS MOQAMBiCANOS
(7) ibjd., p. 9 .
(B) Ibjd., pp. l3-15.
(9) iuio., pp. 24-29.
(10) J. Hanlon,0p. Cit., p.28.
( 11) Ibig. , cdpf tulo 18.
(12) Samora Machel , "Estabelecer o Poder , Popular", na edi96o
A Nossa Luta, 2a edigdo, Imprensa 'Nacional de Mogambique,
1975, p.130.
John Saul, 0p. Cjt:, p. 101.
Joseph Hanlon,'0p. Cit., p. ?65.
Samora Machel , 0p. Cit._, p. 131.
Ibid., p. 119
Notfcias, 6 de Julho de 1981.
Depois da 0ltima ofensiva do Presidente, por volta de 25
de Setembro de 1985, a opini6o dominante, das pessoas entrevistadas
pela Televisdo Experimental, era de que a ideia
da ofensiva era boa, mas ndo se compreendia por que devia
ser feita pelo prdprio Presidente.
(19) .lohn Saul , 0p. Cit., pp. 137-147.
(20) Samora Machel, "Estabelecer o Poder Popular", 0p. Cit.,
p. 131.
(21) Ibid. , p. 132. Depois de ler j sto a1gu6m podia a'legar de
que estamos a encorajar o espfrito de derrotismo. A tlnjca
co'isa que se quer encorajar d uma abordagem da histdria
em que nada estd fatalmente decidido.
(13)
( 14)
(ts1
( r6)
( 17 )
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