sábado, 5 de março de 2016

A Rainha da KaTembe, Honra-me liderar a comunidade

A Rainha da KaTembe, Amélia Alberto Tembe, diz que é uma honra ser uma das líderes da comunidade. Nesta entrevista, fala dos conflitos que por vezes tem de dirimir, dos projectos de desenvolvimento desenhados para aquele distrito municipal da Cidade de Maputo e do processo de implantação da dinastia Tembe.
A Rainha afirma que a feitiçaria existe em todos os lugares e KaTembe não é excepção. Tem 59 anos. É mãe de três rapazes e uma menina.
Em que ano nasceu?
Nasci em 1957, aqui na Ka Tembe.
Onde? Concretamente.
Na zona chamada Ka Filipe, próximo de Matutuíne.
Descende de uma autoridade tradicional?
Sim. Pertenço a linhagem dos antigos líderes da Ka-Tembe. Aliás, foram os primeiros chefes desta região. Não eram originários. Vieram da zona de Mahubo, em Boane. Tiveram de atravessar o Rio Tembe. Era muita gente, entre eles curandeiros. Enfrentaram muitas dificuldades para atravessar o rio.
Mas, pelos vistos, conseguiram.
Sim. Os curandeiros, chegados à uma das margens do rio, estenderam sacos e consultaram os seus amuletos (búzios e ossículos) para saber como deviam proceder para atravessar aquela massa de água. Os ancestrais ou espíritos disseram que deviam mandar uma garota para água, porque só assim conseguiriam transpor o rio. Porém, deviam observar um requisito.
Que requisito era esse?
A garota devia ser a última pessoa atravessar. Mas antes tiveram de fazer um ritual tradicional. Feito isso viram o rio abrir-se, de par em par, e atravessaram…
Quem era essa garota?
Não me recordo. São coisas antigas. Revelaram-me quando eu ainda era muito pequena.
E a garota?
Desapareceu na água. A partir desse dia o rio passou a denominar-se Tembe.
O nome Ka-Tembe como é que surge?
O que dá nome a esta região é o próprio rio. Aquele grupo de pessoas que veio se fixar aqui pertencia à família Tembe. Cá chegados, depararam-se com a comunidade dos Mathlava, um grupo muito reduzido de pessoas, em contraposição aos Tembe, que eram numerosos.
E então…
Os Tembe pediram aos Mathlava para mostrarem os seus líderes. Acontece que os Matlhava não tinham liderança. Então, os Matlhava solicitaram aos Tembe para liderar a região. Foi a partir desse entendimento que a minha tribo passou a chefiar da Ka Tembe até à fronteira da Ponta Douro e Malhongulo. Porque os Tembe eram muitos houve divisão regiões para exercerem o seu reinado.
KATEMBE
POR DENTRO
Como era a vida aqui quando nasceu?
As pessoas viviam basicamente da agricultura. De pequenas machambas. Eram poucas as pessoas que tinham emprego convencional. Havia os que iam trabalhar para as minas da África do Sul ou para as outras terras. As mulheres e as crianças ocupavam-se das culturas agrícolas. As únicas coisas que tínhamos que comprar eram o petróleo e sabão. Arroz só se comia na festa do natal e da passagem do ano. No resto do ano era basicamente farinha de milho, mandioca, batata-doce, tihove, xiguinha.
E agora?
As coisas mudaram. Vivemos uma autêntica civilização. Comemos arroz, mas a farinha de milho está sempre presente, até porque tem a ver com a nossa tradição.
A RAINHA
Em que ano foi coroada?
Faz muito tempo. Não me recordo.
Porque a consideram Rainha da KaTembe?
(Risos…) Se eu não fosse mulher, seria tratada como um Régulo. Antigamente havia um único líder - o Régulo Filipe. Ele era muito respeitado. Diz-se que a autoridade tradicional é a dona da terra e que está ligada à natureza. Isto é, caso haja coisas menos boas na região recorrem ao líder tradicional para ajudar a encontrar uma solução. Por exemplo, se acontecem coisas estranhas na machamba;   ou não cai chuva com regularidade, recorrem à autoridade tradicional da zona. Quando as pessoas acusam-se de feitiçaria conseguimos reuni-las para fazerem as pazes e as coisas más deixem de existir. Se for necessário, recorremos aos curandeiros para apurar a veracidade dos factos. Também realizamos cerimónias tradicionais para resolver os problemas da comunidade.
A autoridade lidera o processo de resolução dos problemas?
Sim. Ser Rainha tem a ver com a nossa natureza tradicional.
Como é o seu modo de vida aqui na KaTembe? Afinal é uma rainha…
 (Risos…)
Como é que vive?
Vivo normalmente…
Já ouviu falar da Rainha Isabel II?
Não.
Ser autoridade é tarefa fácil?
Nem tanto.
Que privilégios que tem?
Não tenho privilégios especiais. Como fui escolhida para liderar uma comunidade, só posso exercer as tarefas que me são confiadas. A única vantagem e orgulho é estar à frente de uma comunidade.
Qual foi o critério seguido para ser eleita Rainha?
Eu vivia no meu lar, no bairro do Hulene, na Cidade de Maputo. Sucede que um tio meu que era Régulo aqui na Ka Tembe faleceu. A comunidade reuniu-se na minha ausência e entendeu que devia sucedê-lo no trono alguém que pertencesse a família Tembe. Assim, foram feitos contactos junto do regulado local e da administração local para se efectivar a sucessão.
Como é que se chamava o seu tio?
Rui Tembe. Depois de se reunirem verificaram que muitos dos possíveis sucessores tinham falecido ou emigrado por causa da guerra. Procuraram por mim e chamaram-me para ocupar o lugar.
Como é que reagiu?
Comecei por recusar, alegando ser mulher. Disse que não sabia como é que podia exercer o cargo e não me sentia capaz de governar. A comunidade disse que não me devia preocupar porque me haviam de ensinar. Tive a felicidade de encontrar aqueles madodas que trabalharam com o meu tio. Foi fácil enquadrar-me.
Isso não lhe obrigou a deixar o lar como amiúde acontece?
Quando vim para aqui o meu marido já tinha abandonado o lar. Tinha saído de casa. São coisas da terra…
Acha que a comunidade lhe respeita como Rainha?
Respeita sim. Esta forma de exercer poder não passa despercebida às pessoas da comunidade.
A título de curiosidade, qual é o significado daquela fita que envergam nas vossas vestes de autoridade?
(Risos) Representa a Bandeira da autoridade tradicional.
“Desenvolvimento vai tirar
KaTembe do sofrimento”
Diz-se que a KaTembe está a transformar-se numa cidade. Como é que vê esta nova realidade?
Fico feliz com tudo que está a acontecer. Pensávamos que o Governo se tinha esquecido de nós. Estamos próximo da cidade, mas encontrávamo-nos a viver no mato. Com o desenvolvimento que está projectado para a KaTembe, vamos sair do sofrimento. Teremos boas estradas, lojas mais próximo das nossas casas. Teremos mais machimbombos, escolas de qualidade. Vamos deixar de sofrer. Para ir ao hospital é um sofrimento, ir a escola é outro sofrimento.
O que é que vai significarentrar para a KaTembe através de uma ponte e não por via do ferry-boat como é feito até agora?
Será uma grande satisfação. Através do ferry-boat, temos que aguardar pelo horário de circulação, enquanto, com uma ponte, a qualquer altura as pessoas poderão circular. Estamos satisfeitos.
As pessoas estão preparadas para perder os seus espaços para dar lugar a construção de uma estrada, escola ou hospital?
Sim, porque queremos coisas bonitas. Posso ficar com a casa afectada, mas não irá doer porque se trata de um processo de desenvolvimento.
“Não é verdade que
seja palco de feitiçaria”
Sempre que se fala da Ka Tembe a superstição surge regularmente a adornar as conversas. Aproveitamos a ocasião para abordar o tema.
As pessoas apontam esta região como zona de muita feitiçaria. Falam dos famosos relâmpagos, que parece ser a arma que os alegados feiticeiros mais usam. É só enviar para o visado. É verdade?
Estão a exagerar. Também há muito mito. Muita invenção. Quanto à feitiçaria, não posso precisar como é que ela surge. Mesmo nos prédios da cidade pode haver manifestações de feitiçaria. Não sei se é uma coisa somente da natureza. Aqui, há muitos anos, tínhamos velhos que eram apontados como sendo feiticeiros. Falava-se, por exemplo, de “muandjiquiza”. As pessoas ameaçavam recorrer a ele para se vingar de alguém.
O tal “muandjiquiza”…era curandeiro?
Não sei. Dizem que ficava para os lados da Bela-Vista. Não sei se ele tinha remédios que faziam aparecer a trovoada quando quisesse.
Insisto. Acredita na existência da feitiçaria?
É uma pergunta de difícil resposta. Há quem diga que sim e quem diga que não. O que não posso dizer com toda a certeza é de onde vem a trovoada. Não sei se é coisa de Deus ou produto de feitiçaria. Eu nasci e a trovoada já existia. As vezes ouvímos trovoada e a chuva não cai ou chove e ao mesmo tempo surgem relâmpagos. Não posso precisar se é uma pessoa que provoca essas coisas.
Existe feitiçaria entre pessoas, por exemplo alguém fazer mal a outra pessoa?
Sim, acontece. O que não posso afirmar é se essa maldade é provocada por alguém ou é obra da natureza.
Nunca ouviu falar de alguém que se queixou por ter sido prejudicada pela feitiçaria do outro?
Já.
Pode nos relatar um caso que tenha acompanhado?
- Bom, eu não posso dizer de quem se tratou especificamente. Quem terá mandado trovoada para a casa do outro. O que ouvimos é que a trovoada matou alguém ou que queimou uma árvore.

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