Mais do que uma instituição de caridade, o fundador do Facebook e Priscilla Chan criaram uma empresa de responsabilidade limitada, para poderem investir no sector privado e influenciar as decisões políticas.
A notícia caiu com estrondo no Facebook e quase eclipsou os trabalhos da Cimeira do Clima, em Paris, onde os líderes mundiais tentam encontrar soluções para o futuro do planeta nas próximas décadas. Na terça-feira, o casal Mark Zuckerberg e Priscilla Chan, ela pediatra e ele já dispensado de apresentações, anunciou dois nascimentos de uma só vez – o da sua primeira filha, Maxima, e o da Iniciativa Chan Zuckerberg, uma organização que só à primeira vista é apenas mais uma instituição de caridade.
A carta que Mark e Priscilla escreveram como se fosse para a sua filha – mas que tem como destinatários os mais de mil milhões de utilizadores do Facebook e outros a quem as notícias chegam por meios diferentes – começa com uma dedicatória de amor que inclui uma afirmação desmentida pelas 2213 palavras que se seguem: "Eu e a tua mãe ainda não temos palavras para descrever a esperança no futuro que nos trouxeste."
A carta mostra que pode faltar muita coisa ao casal, mas dinheiro e palavras não fazem parte dessa lista – num anúncio visto por muitos como o início de uma nova era no mundo da filantropia, Mark Zuckerberg e Priscilla Chancomprometeram-se a pôr uma fortuna equivalente a 99% das suas acções no Facebook nos cofres de uma empresa de responsabilidade limitada, com o objectivo genérico de "promover o potencial humano" e a "igualdade". Ao preço actual, essas acções valem cerca de 45 mil milhões de dólares – ou mais de 42 mil milhões de euros, para quem a conversão até neste caso é importante.
O anúncio foi recebido pelos utilizadores da Internet da mesma forma que têm sido recebidos todos os anúncios importantes desde que o Facebook elevou as caixas de comentários à categoria de tribunal informal – por cada elogio, um ataque venenoso; por cada ode à filantropia de um milionário decidido a mudar o mundo, uma acusação de estratagema para fugir aos impostos.
Novo modelo
Mas há muito mais no anúncio de Mark Zuckerberg e Priscilla Chan do que apenas a eterna discussão sobre filantropia e a criação de esquemas legais para evitar o pagamento de impostos.
Primeiro, as questões técnicas, que podem ser chatas mas são importantes para se perceber o que está em causa: ao contrário do que foi noticiado um pouco por todo o mundo na terça-feira, a Iniciativa Chan Zuckerberg não vai distribuir dinheiro por instituições de caridade, nem é ela própria uma fundação ou uma organização sem fins lucrativos – foi criada como uma empresa de responsabilidade limitada, e isso diz muito sobre as anteriores más experiências de Mark Zuckerberg no mundo da filantropia e sobre a emergência de uma nova classe de jovens multimilionários nascidos no universo das empresas de tecnologia.
Ao criarem uma empresa de responsabilidade limitada, Mark e Priscilla têm muito mais margem de manobra para gerir o dinheiro ganho com as suas acções do Facebook e agora destinado à filantropia – podem investir em empresas privadas e influenciar as decisões políticas através de grupos de pressão, por exemplo, que são instrumentos fora do alcance das organizações sem fins lucrativos.
Depois da carta do casal, mais sentimental, chegou o pragmático esclarecimento da empresa: "A Iniciativa Chan Zuckerberg vai perseguir a sua missão através do financiamento de organizações sem fins lucrativos, da realização de investimentos privados e do envolvimento em debates sobre políticas, em qualquer dos casos sempre com o objectivo de criar um impacto positivo em áreas extremamente carenciadas." Todos os lucros obtidos através do investimento em empresas "serão usados para financiar mais trabalhos para perseguir a sua missão", informa.
A decisão de fugir à mais tradicional fundação – ou de doar dinheiro a outras instituições de caridade – pode estar relacionada com a decepcionante primeira experiência de Mark Zuckerberg na filantropia, em 2010. Na carta publicada terça-feira, Mark e Priscilla dão a entender isso mesmo, em dois pontos da sua lista de intenções.
"Temos de nos envolver directamente com as pessoas que servimos. Não conseguimos dar mais competências às pessoas se não percebermos as necessidades e os desejos das suas comunidades (...) Temos de apoiar os líderes mais fortes e mais independentes em cada área. Trabalhar em conjunto com especialistas é mais eficaz para a missão do que tentarmos ser nós a liderar os esforços."
Estas duas passagens indicam que Mark Zuckerberg passou os últimos cinco anos a tentar perceber qual é a melhor forma de apoiar a investigação e o desenvolvimento de projectos sociais – na educação ou na saúde, por exemplo – sem perder o controlo total do seu dinheiro.
Há cinco anos, o fundador do Facebook doou 100 milhões de dólares para criar uma fundação que tinha como objectivo melhorar as escolas públicas de Newark, uma cidade com elevados índices de criminalidade e pobreza. A ideia teve dois autores improváveis, tais eram as diferenças entre as suas filiações partidárias e ambições políticas – Cory Booker, então mayor da cidade e actual senador pelo Partido Democrata; e Chris Christie, à época governador do estado e actual candidato à Casa Branca pelo Partido Republicano.
"Houve outra coisa que não correu como estava planeado", disse à rádio pública NPR a antiga jornalista do Washington Post Dale Russakoff, autora do livro The Prize: Who's in Charge of America's Schools? (O Prémio: quem manda nas escolas da América?), que o New York Times elogiou como "um dos mais importantes livros dos últimos anos sobre educação".
"Mark Zuckerberg esperava usar os seus 100 milhões de dólares para, em parte, negociar diferentes contratos com professores, para haver maior flexibilidade na contratação e nos despedimentos, e para decidir em que escolas cada professor iria ser colocado. Mas acabou por descobrir a questão da antiguidade, que é controlada pela lei do estado de Nova Jérsia", conta a jornalista, referindo-se à cláusula que protege os professores com mais anos de serviço em caso de despedimento colectivo. Para além disso, o projecto não envolveu directamente professores, pais e alunos, e foi tomado de assalto por uma multidão de consultores, muitos deles a receber mil dólares por dia para dizerem o que os mesmos professores, pais e alunos deveriam fazer para melhorarem o sistema público de ensino.
Críticas e elogio da "filantropia hacker"
O lançamento da Iniciativa Chan Zuckerberg é uma resposta a essa falta de controlo, mas ninguém sabe muito bem se vai fazer alguma diferença na forma como se encara a filantropia – e muito menos se vai ser melhor ou pior para a sociedade a longo prazo, principalmente quando as iniciativas de caridade ou de "promoção do potencial humano" partem de multimilionários que fizeram fortuna num "sistema económico inerentemente tendencioso", como escreve Devon Maloney no jornal The Guardian.
"Pelo simples facto de ter criado e de supervisionar a maior rede social do mundo e uma das empresas mais influentes do planeta – armazenando e vendendo quantidades indizíveis de dados a cobro de um jargão legal impenetrável; implementando políticas duvidosas de assédio e de denúncias que abrem a porta a certos tipos de abusos; empregando 68% de homens e menos de 50 negros numa empresa com mais de 10.000 funcionários –, o próprio Mark Zuckerberg continua a reproduzir a desigualdade que ele e a sua mulher escolheram como alvo no seu compromisso", critica a jornalista, que recorda uma reacção do escritor Teju Cole em 2012 à campanha contra o líder guerrilheiro ugandês Joseph Kony.
"Da [Goldman] Sachs, à Invisible e à TED, a indústria que mais cresce nos EUA é o Complexo Industrial do Salvador Branco", escreveu Cole. "O salvador branco apoia políticas brutais de manhã, funda instituições de caridade à tarde e recebe distinções à noite."
Teju Cole referia-se às iniciativas de caridade e à filantropia mais tradicionais, herdeiras dos Andrew Carnegie e John D. Rockefeller da passagem do século XIX para o século XX. Mas a figura que revolucionou a indústria da música 100 anos mais tarde, com o seu site de partilha de ficheiros Napster, Sean Parker (mais tarde co-fundador do Facebook), acredita que as novas tecnologias já mudaram as bases da filantropia – chama-lhe "filantropia parahackers", de que Bill Gates e Mark Zuckerberg são dois dos melhores exemplos.
"Os hackers são geralmente considerados criadores de problemas, mas são também dedicados solucionadores de problemas, tão interessados em descobrir buracos em sistemas como em explorá-los em benefício próprio. Ao identificarem fraquezas em sistemas há muito estabelecidos, têm conseguido desfazer inúmeras indústrias", escreveu Parker num artigo publicado no Wall Street Journal em Junho.
Reconhecendo que estes jovens multimilionários – a maioria actualmente na casa dos 30 anos – "não estão preparados para a enorme responsabilidade que lhe tem sido conferida", o criador do Napster elogia-lhes (e auto elogia-se) "o intenso idealismo, numa fase das suas vidas em que ainda são suficientemente jovens, ingénuos e talvez arrogantes para acreditarem que podem resolver os mais graves problemas humanitários do mundo".
Resumindo a filosofia desta nova geração de filantropos – que se distinguem por começarem a desfazer-se das suas fortunas em vida, não esperando por distribuir dinheiro por instituições de caridade no momento da leitura do testamento –, Sean Parker deixa um conselho aos que querem seguir os passos de Zuckerberg: "Comecem a doar cedo. Não há melhor altura para começar do que o presente."
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