ADELINO SERRAS PIRES
Pouco depois de Adelino Serras Pires chegar a Moçambique, vindo de Portugal, o pai levou-o a uma caçada aos leões que aterrorizavam a região. Esse momento decidiu o destino de Adelino: iria passar os seus dias nas matas africanas, caçando para viver e vivendo para a aventura. Depois de uma juventude repleta de acontecimentos aventurosos, transformou-se num grande organizador de safaris com uma lista de clientes que incluía tanto membros da realeza africana, como dignitários europeus e americanos ricos...
Ventos de Destruição é um olhar dramático sobre a violência e o terror das guerras que assolaram o continente africano e puseram em causa muito do seu futuro.
Juntamente com o filho, o sobrinho e um colega caçador, Adelino chegou a ser raptado na Tanzânia e entregue à polícia secreta de um Moçambique controlado pela Frelimo. Adelino relata-nos com pormenores arrepiantes os meses de interrogatórios e torturas numa prisão de Moçambique. Ventos de Destruição é a história das constantes desilusões de um homem à medida que a agitação política e a corrupção se sobrepõem à beleza de África.
Porém, mais do que isso, este livro é um comovente retrato de uma vida em África que, por sua vez, é um retrato de um continente cheio de sofrimentos.
NOTA DA AUTORA
Estão prestes a ler a história extraordinária de Adelino Serras Pires, uma história que cobre quase 65 anos da África pré e pós--colonial. Esta história, baseada em muitas horas de gravações, numa volumosa documentação tanto de fontes públicas como confidenciais, e também nas investigações levadas a cabo em vários países, diz respeito a um dos mais controversos membros dos safaris internacionais.
O texto, tendo como pano de fundo as savanas queimadas pelo sol, de pântanos e de florestas equatoriais, com espessas copas, é povoado pela aristocracia europeia, por chefes de Estado, por astronautas e altos dirigentes e proprietários industriais, por heróis da Segunda Guerra Mundial, por barões vinícolas, pioneiros dos safaris africanos, agentes de serviços de informações e guerrilheiros, bem como por todos aqueles que suportaram o fardo da selvajaria que varreu África nas últimas décadas, os africanos do mato e a vida selvagem cujo mundo partilhavam.
Este texto é colorido por gargalhadas, entusiasmo, intriga política, cobardia e traição, tudo misturado com períodos de grandes realizações, intensa felicidade, medos intestinais e tristezas. É também um texto com uma franqueza não apologética e nada envergonhada das suas emoções, enquanto traça a notável vida de Adelino desde o momento em que chegou as margens do rio Zambeze, em Moçambique, na véspera de Natal de 1936, ao som do repicar dos sinos das igrejas e dos rugidos dos leões devoradores de homens do Benga, até ao alvor do novo milénio.
Este livro vai muito para lá dos confins de uma mera narrativa de aventuras de caça nos matos de África. É uma história social, é um panegírico de recordações apaixonadas que, por vezes, vos irá deixar chocados e irados. Ninguém consegue ficar indiferente aos acontecimentos ou ao homem à medida que os acompanhamos. O paraíso da vida selvagem de Moçambique até ao irromper da revolução, Angola nas vésperas de guerra civil, a guerra nos matos da Rodésia, o Quénia e o fim das caçadas, a República/Império Centro Africana e os escândalos do marfim, o Sudão e a sua miséria humana, o Zaire e a cleptocracia de Mo-butu, ajudada e encorajada pelo Ocidente, a Tanzânia e um dos mais infelizes episódios nos safaris de caça africanos, os ranchos de caça da África do Sul e a subsequente intromissão na política da resistência em Moçambique... fazem com que se trate de uma história intensa e quase sem paralelo. Os acontecimentos aqui descritos são todos autênticos, tal como os nomes que surgem ao longo do texto.
Foi utilizada a primeira pessoa como artifício narrativo, a fim de que não se perdesse o impacte pessoal deste perturbador testemunho.
Fiona Claire Capstick
Waterkloof, Pretória
República da África do Sul
PREFÁCIO
Foi em 1962 que pus os pés pela primeira vez no continente africano. Tratou-se de um caso de amor à primeira vista. A África estava-me no sangue, e nos sete anos seguintes mantive-me muito activo no Uganda, na Tanzânia e na República Centro Africana. Ajudei, tanto no Uganda como na Tanzânia, a pôr em andamento alguns excelentes programas de turismo e conservação da fauna. Para mim, tratava-se simultaneamente de um prazer e de um negócio. Em 1969, depois de ter conhecido caçadores e viajantes que haviam estado em Moçambique e que me tinham falado com grande entusiasmo daquele belo e pacífico país, rico em caça e com um habitat magnífico, concluí que tinha de lhe fazer uma visita, a fim de explorar as oportunidades para a realização de safaris de caça.
Uma das primeiras pessoas que conheci em Moçambique foi Adelino Serras Pires. Nascera em Portugal e fora para Moçambique ainda uma criança, de oito anos, para a remota cidade de Tete, no rio Zambeze. Adelino lembra-se claramente de ouvir os sinos das igrejas e os leões a rugirem na própria noite em que chegou a Tete. Passou quase imediatamente a ser um caçador de leões devoradores de homens, na companhia do pai. Era um caçador nato, criado entre os animais e a quem foi ensinado, ainda muito novo, que aquele recurso renovável tinha um grande valor para Moçambique. Podemos imaginar quais terão sido os seus sentimentos, muitos anos mais tarde, quando acabou por testemunhar a destruição de tanta da vida selvagem africana através da guerra e da cobiça.
Com o seu carisma natural e com um currículo de caçador profissional, Adelino era a pessoa indicada para ser convidada a dirigir o que viria a tornar-se na maior empresa de safaris de toda África, a famosa Safrique. Um grande banco português adquirira enormes áreas de caça que se estendiam desde o Zambeze até ao oceano Indico, cobrindo quatro habitats diferentes a fervilhar de caça. Foram construídos belos acampamentos e lançado um vigoroso programa para atrair a Moçambique um número cada vez maior de caçadores desportivos internacionais.
Adelino e eu entendemo-nos imediatamente e estabelecemos uma amizade para toda a vida. Eu e os meus irmãos, Chris e Gene, operávamos o maior serviço mundial de taxidermia e de organização de caçadas a partir de Seattle, e tinhamo-nos especializado em operações na África e na Ásia. Adelino nomeou-me director conselheiro da Safrique, e os anos que se seguiram foram repletos de êxito. Iam a Moçambique caçadores vindos de todas as partes do mundo, o que constituía uma grande ajuda para a abertura de um programa de gestão da caça e criava também empregos sustentados para centenas de africanos. O país encontrava-se em paz e inteiramente integrado.
Tudo isto terminou, em 1975, quando o Governo português libertou as suas colónias. Estados esses que posteriormente juntar-se-iam a tantos outros países africanos lançados no caminho dos conflitos e da destruição. Depois da queda de Moçambique, Adelino foi desapossado de tudo o que possuía, e abandonou a terra que tanto amava apenas com a roupa que levava vestida. Caçador pioneiro, especialista em gestão de caça e organizador de safaris, Adelino dirigiu-se para Angola, para a Rodésia e para o Quénia. A Europa não era para ele.
Entretanto eu seguira para a República Centro Africana, a fim de assinar um contrato com o presidente Jean-Bédel Bokassa. Muito em breve já dispunha de uma das melhores concessões de caça em África, onde construí uma grande e florescente empresa de safaris. Quando partimos, lamentavelmente, a companhia foi reduzida a nada em menos de um ano. Os americanos pediram-me para os ajudar a encontrar uma pessoa apropriada para a dirigir e ressuscitar. Disse-lhes que se o Adelino Serras Pires aceitasse a proposta, então teriam o melhor homem do continente, alguém que falava as línguas locais e que possuía tanto a experiência como a integridade. Adelino voltou a aceitar o desafio.
Em 1973 encontrava-mee no último safari no Zaire com os astronautas capitão James Lowell, da famosa Apollo 13, Stuart Roosa, da Apollo 14, e ainda Charles E. Wilson, filho do antigo presidente da General Motors. Por sugestão do príncipe Abdor-reza, o famoso caçador e irmão do último xá do Irão, o presidente Mobutu, do Zaire, mandara suspender a caça para que pudesse ser nomeada uma nova empresa concessionária, que começasse tudo de novo. Adelino e eu continuámos a trabalhar com o presidente Mobutu para a reabertura da caça naquele gigantesco coração de África, o que acabou por se concretizar em 1983, quando foi assinado um contrato com o Governo do Zaire, sendo Stan Studer o nosso maior accionista. Depois de enormes despesas e de um grande investimento em tempo e esforços, a empresa ficou completamente equipada e pronta para iniciar a actividade. Da noite para o dia, o Governo do Zaire rescindiu o contrato o que me levou a concordar com o Adelino: não há nada de novo em África.
Muito do que lerão a seguir irá perturbar-vos, mas trata-se da verdade, contada por um homem com uma franqueza sem compromissos. A história é a história e pode por vezes ser muito desagradável, tal como as guerras, a fome e outros desastres naturais. Este livro cobre mais de seis décadas de experiências pessoais em nove países africanos, e engloba épocas de triunfo, de turbulência e de tragédia.
Fiona Capstick é viúva do famoso escritor americano, Peter Hathaway Capstick, cujos 13 livros sobre a caça e a aventura em África continuam a desempenhar um papel central na promoção deste continente como um destino para safaris de caça. Como irão descobrir, ela está perfeitamente equipada para partilhar esta história de África, que é singular e excitante.
Bert Klineburger
San António, Texas
PRELÚDIO
Não conseguia andar. Os meus pés eram balões que enegreciam rapidamente num inchaço de agonia, isto porque tinha os tornozelos bem amarrados com câmaras-de-ar de pneus de bicicleta. As mãos eram dois bulbosos montes de fogo, com os pulsos também apertados com tiras de borracha. Estava vendado e descalço quando fui empurrado e arrastado para fora de um veículo.
O som dos motores a jacto disse-me que estávamos a ser conduzidos para um aeroporto. Fui obrigado a subir alguns degraus com um membro da polícia secreta tanzaniana de cada lado, metido num avião e atirado para um assento onde me removeram a venda. Sentado à minha frente encontrava-se o meu filho, Adelino Jr., mais conhecido por Tim-Tim, o meu sobrinho Carlos Artur, conhecido por Caju, e um colega caçador português, também meu parente, Rui Monteiro. O horror que vi nos seus rostos é algo que gostaria de apagar das minhas recordações daquele dia terrível, 29 de Agosto de 1984, na Tanzânia.
Levantámos do aeroporto de Quilimanjaro. Encontrava-me numa tal agonia, a gritar de dor por causa das borrachas que me apertavam cada vez mais as mãos e os pés, que pensei que iria acabar por morrer. O meu filho e os outros conseguiram convencer os patifes, que seguiam a bordo do avião especial, fornecido por Julius Nyerere, o presidente da Tanzânia, a cortarem-me as ataduras de borracha. O sangue começou novamente a fluir para as minhas extremidades, as dores aumentaram e senti-me à beira da perda de consciência. O meu filho esfregou-me as mãos numa desesperada tentativa de impedir aquilo que mais temíamos, a gangrena.
O aparelho ganhou altitude, e todos nós pensámos que nos dirigíamos para o porto marítimo tanzaniano de Dar-es-Salaam. É irónico recordar, quando escrevo estas linhas, que esse nome significa "abrigo de paz"... numa altura em que todos nós nos encontrávamos às portas do inferno. Encontrava-me virado para a traseira do avião quando reparei que o Sol passara a estar numa posição errada. Via-o à minha direita, o que significava que se encontrava à esquerda do jacto, íamos para sul, para Moçambique. Isso só podia significar uma coisa: estávamos prestes a ser postos nas mãos da Polícia Secreta Moçambicana.
O meu filho Caju e o Rui haviam sido cercados e presos no meio de um safari com um casal americano do Texas. Eu fora detido subitamente no hotel, em Arusha, onde fazia um breve intervalo depois de ter acabado de completar um safari de duas semanas, na concessão de Ugalla, com Valéry Giscard d'Estaing, o antigo presidente da França.
Nenhuma experiência, anterior ou posterior, se aproximou daquilo que tivemos de suportar. Não podia ter previsto o selvagem safari de depravação e de enganos que jazia à nossa frente. Entontecida pela dor e pelo choque, a minha mente retrocedeu no tempo, mergulhada em algo semelhante a um coma, até àquele dia de 1936 em que desembarquei na Beira, Moçambique, e que agora se encontrava por baixo do jacto, mas a toda uma vida de distância.
CAPITULO I
A INFÂNCIA NO ZAMBEZE
Nesta cidade e ilha a que chamam Mocobiquy (Moçambique) havia um senhor a quem chamavam Sultan, que era como um vice-rei...
- Eric Axelson, Vasco da Gama: The Diary ofHis Traveis Through African
Waters 1497-1499
A viagem de um mês ao longo da costa ocidental de África, em torno do Cabo das Tormentas até ao canal de Moçambique e à nossa nova casa, deixou-me com uma aversão a barcos que durou toda a vida, isto porque estivera enjoado durante quase todo o tempo. Contudo, a viagem fora misericordiosamente entremeada por tantas experiências novas, que fui constantemente distraído. Vimos crianças a mergulharem em busca de moedas nas águas pouco profundas da ilha da Madeira, e ficámos completamente fascinados com o papagaio residente no navio que desfiava um espantoso vocabulário de palavras porcas aprendidas com os marinheiros portugueses. Por fim, a ave começou a imitar a minha própria mãe, quando esta ordenava à minha irmã Lucinda para se manter afastada dele por uma questão de decência. Como era a mais loquaz da família, Lucinda estabeleceu laços de amizade instantâneos com o papagaio. Também me recordo de olhar, incrédulo, quando os adultos apontavam cardumes de peixes-voadores a brincarem na espuma da esteira do navio, isto quando até uma criança pequena sabia que os peixes tinham de viver debaixo de água e que só os pássaros podiam voar!
Por fim, quando acabámos por desembarcar em Angola, pensei que a maior parte das pessoas era preta porque o Sol escaldante as tinha queimado até ficarem daquela cor. A minha lógica infantil também me convenceu que a terrível humidade que sentimos quando nos aproximámos da Beira se devia ao facto de o Sol estar a chorar lágrimas quentes. Todas estas coisas me deixavam surpreendido mas cheio de energia. O ar cheirava-me a aventura. Era óptimo ter oito anos e estar a participar numa viagem ao outro lado do mundo... independentemente do enjoo. Talvez a cigana que me leu a palma da mão, quando eu era um garoto, tivesse adivinhado o meu espírito aventureiro, porque não há dúvidas de que até hoje levei sempre uma vida de cigano. Amontoámo-nos no convés na madrugada em que surgiu a notícia de que estávamos prestes a atracar na Beira. A neblina do calor já se formava ao longo da costa baixa que fora dominada pelos árabes e persas desde o século IX d. C, ou talvez antes. Outrora, eram eles quem controlavam o tráfico de escravos, ouro, marfim, pérolas, madeiras exóticas como o ébano, carapaças de tartarugas, ferro e peles de animais. De facto, diz-se que o nome de Moçambique deriva de Musa ben Biki, o xeque muçulmano da ilha de Moçambique, a pequena ilha de coral em pleno canal, logo a sul do grande porto natural de Nacala. O xeque Ben Biki encontrava-se no poder aquando da visita de Vasco da Gama, em Março de 1498, depois de os marinheiros portugueses terem dobrado a extremidade sul de África e modificado a história da humanidade.
Estávamos prestes a pôr os pés na Terra de Sofala ("o lugar baixo"), aquela afamada região que Vasco da Gama visitou pela primeira vez em 1502, quando desembarcou na baía de Sofala, a sul da Beira, no regresso da sua segunda viagem à índia. Os árabes referiam-se a Sofala como sendo Sufalat edh-dhahab, Sofala a Dourada, por causa da sua proeminência no reino árabe costeiro como entreposto para o ouro do interior.
Naquela madrugada, a minha sensação de antecipação e excitação era muito intensa. Estávamos a entrar num novo mundo, numa nova vida, e a nossa família iria novamente reunir-se.
Até àquele momento, o meu mundo fora o da aldeia de Ponte de Sor, e das circundantes colinas baixas do centro de Portugal, onde o meu pai me costumava levar à caça de lebres, pombos e perdizes, com os nossos cães a reboque. A família vivia há várias gerações nas aldeias brancas do Alentejo, onde os telhados vermelhos de terracota pontuavam a árida beleza dos sobreirais e olivais. Era uma terra onde ninguém desafiava o seu lugar na ordem das coisas e também onde a estreiteza de vistas das aldeias e um povo profundamente tradicionalista prosseguiam a sua vida com uma claustrofóbica previsibilidade. As mudanças eram desencorajadas pelo fatalismo que permeia o fado, a canção popular portuguesa, uma tradição musical única bem conhecida pela sua visão melancólica sobre a vida, e onde os humanos são representados como vítimas impotentes de um destino esmagador.
Era um mundo em que as mulheres começavam a vestir de negro ainda muito novas, como prova de respeito pêlos membros da família que iam morrendo uns atrás dos outros, um mundo governado pêlos rituais da Igreja Católica. Os homens reuniam-se nos cafés para o habitual copo de vinho e para darem à língua, enquanto alguns deles jogavam às damas. A criação de porcos, galinhas e o cultivo de oliveiras dominavam as conversas, enquanto as mulheres permaneciam obedientemente em casa. As notícias do mundo exterior tinham muito pouco impacte nos ritmos sazonais e nos aromas da vila da minha infância.
Contudo, ocorreu uma profunda mudança na minha família quando os três irmãos do meu pai, que haviam emigrado para Moçambique por altura do meu nascimento, em 1928, lhe escreveram incitando-o a levar a família e a juntar-se a eles numa terra cheia de oportunidades, escancarada a todos os empreendimentos e com grande necessidade de pessoas com capacidades. A minha família decidiu emigrar, embora possuísse uma torrefac-ção de café que processava os grãos vindo das colónias portuguesas e vivesse uma vida segura. A fábrica foi vendida e o meu pai precedeu-nos por um período de três anos, de modo a poder estabelecer uma base para o resto da família.
Lembro-me do dia em que partimos para África. As minhas irmãs Lucinda e Maria José, o meu irmão Jacinto e eu, saímos de casa na companhia da nossa mãe, com o carro a balouçar sobre as ruas empedradas da aldeia e para lá das âncoras de todas as nossas recordações da juventude, para seguirmos até à estação ferroviária onde apanhávamos o comboio que nos levaria a um sítio chamado Lisboa. Aí chegados embarcámos no paquete Quanza, num frio e húmido dia de Novembro de 1936.
O navio partiu para lá do estuário do Tejo e penetrou na cada vez mais intensa escuridão da noite. Estávamos a seguir o caminho das frágeis caravelas portuguesas do século XV, na sua demanda de um caminho marítimo para a índia. Contudo, a nossa demanda era por uma vida com melhores oportunidades e recompensas e onde os horizontes eram mais vastos do que tudo o que conhecera no acanhado Portugal, com o seus modos de vida igualmente mesquinhos. Seria preciso um mês para chegarmos a Moçambique.
Pareceu-me ter-se passado uma eternidade até nos permitirem sair do navio e descer ao cais, onde o meu pai nos aguardava no meio de uma multidão de negros, trabalhadores das docas que lidavam com as bagagens enquanto os funcionários das alfândegas, com os seus impecáveis uniformes brancos, nos diziam para onde nos devíamos dirigir. O meu pai era, tal como o recordava, um homem simpático e trigueiro, com uma espessa cabeleira encaracolada, em torno de quem nos amontoámos excitadamente enquanto as histórias sobre a viagem se precipitavam para fora das nossas bocas numa ruidosa celebração. Todavia, o meu irmãozinho, Jacinto, não ficou nada impressionado e começou a chorar. Não sabia quem era aquele homem, porque tinha apenas alguns meses de idade quando o pai partira para Moçambique. No calor da fornalha daquele dia de finais de Dezembro de 1936, fomos nós, as crianças, quem ultrapassou o abismo de três anos como se este tivesse sido apenas de um dia. Não tínhamos qualquer conceito sobre as tensões emocionais e os sacrifícios que os nossos pais haviam feito por nós.
O solo oscilava a cada passo que eu tentava dar e fez com que me sentisse novamente enjoado. Nunca me conseguira habituar ao mar, e agora parecia que também não me habituava à terra. Abrimos caminho através das largas e arenosas ruas do porto... e houve duas coisas que me provocaram uma impressão imediata: as vistosas árvores que ladeavam as ruas, com cores tão vibrantes que pareciam estar a arder, e os estranhos carrinhos de dois lugares cobertos por um toldo branco, semelhantes a rique-xós, que deslizavam por estreitos trilhos na areia e eram puxados por criados negros elegantemente vestidos. Os meus sentidos deixaram-se arrastar por aquelas novidades, com as recordações de Portugal a refluírem como a maré de um mundo em recessão, pronto para ser substituído por outro.
Foi ao cair da noite da véspera de Natal que chegámos finalmente a Tete, o antigo porto árabe no rio Zambeze, que fora povoado pelos portugueses havia pouco mais de 400 anos. Dizia-se que era a mais antiga cidade do interior de África, a sul do equador, que fora continuamente habitada. O meu tio João e o meu homónimo, o tio Adelino, estavam lá para dar as boas-vindas à nossa nova vida. O tio Jacinto já morrera de biliosa. Fora uma cansativa viagem de cerca de 600 quilómetros num carro Terrapleno preto por estradas de terra que serpenteavam através de um território ondulante e coberto de mato, sulcado pêlos pedregosos leitos de rios secos a cozerem sob um calor implacável. O carro avariou-se um par de vezes e o meu pai teve de lhe meter óleo, tarefa que acompanhou com murmúrios irritados que a minha mãe contrariou rapidamente com um "Pires, por favor! As crianças estão a ouvir-te!", uma vez que ela se dirigia sempre ao meu pai pelo último nome do nosso apelido.
Os sinos das igrejas estavam a tocar naquela noite, em Tete, e chamavam as poucas centenas de habitantes à missa da meia--noite. Durante um intervalo nos toques chegou-nos aos ouvidos um som novo, num tom abafado que subia e descia, logo seguido por dois ou três grunhidos em staccato. Esqueci a fadiga e lembro-me de me ter virado para o meu pai para perguntar:
- Pai, que barulho foi aquele?
- Leões. São os leões, comedores de homens do Benga, do outro lado do rio, filho. É um sinal. Ouviste os leões esta noite, e quando cresceres vais ser caçador.
Agora sabia que estava num mundo diferente.
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CAPITULO II
UMA VIDA NA SELVA
Pouco depois de passarmos a foz do Ruenya avistámos a serra de
Caroera, por trás da qual, segundo disse o nosso barqueiro, ficava
a cidade de Tete, ou In-yung-wi, tal como lhe chamam os nativos...
- Frederick Courteney Selous, Travel and Adventure in South-East África
Fazia frio naquela noite de Junho de 1949. Encontrava-me no meio das colinas rochosas em volta da aldeia do Lundo, a sudeste de Tete, na área de solos negros dos campos de algodão. Já adormecera quando houve algo que me perturbou e me despertou. Chiganda, o meu ajudante da etnia Sena e irmão de um chefe tribal, encontrava-se à entrada da palhota, a típica palhota da região. O pungente cheiro a parafina filtrava-se na palhota vindo da lanterna em que segurava, com os vidros enegrecidos a filtrarem a luz na frente dos seus olhos esbugalhados de ansiedade.
Acabara de chegar um mensageiro ao nosso posto comercial, vindo de uma aldeia próxima, onde uma mulher se encontrava em trabalho de parto há dois dias e corria risco de vida. Já se difundira a notícia de que eu e os meus ajudantes havíamos chegado para reabastecer o posto comercial. Para além disso, toda a gente sabia que transportava sempre comigo um estojo médico rudimentar e era vulgar que as pessoas do mato acorressem ao posto em busca de ajuda, para tratarem olhos infectados, malária, queimaduras e ferimentos de todos os tipos. Em mais de uma ocasião já tratara de conseguir que aldeões com membros partidos fossem tratados noutros lados, e a sua eventual recuperação aumentara a fé das pessoas na nossa capacidade para os ajudar. Contudo, a obstetrícia era algo de novo para mim e assustava-me.
Enfiei as roupas, agarrei no estojo médico e na carabina Mannlicher-Schõnauer 8x56 mm, que o meu pai me oferecera, e segui o Chiganda e entrámos na escuridão da noite ao longo do trilho que conduzia à aldeia da mulher. Foi uma boa hora de caminho através de uma mata densa que nenhum veículo conseguiria ultrapassar, e tudo o que eu conseguia ouvir eram as nossas respirações ansiosas, que abafavam os sons da noite. Se existissem serpentes enroladas no meio do trilho, para absorverem o calor do dia anterior, então era muito improvável que as víssemos a tempo... e isso incluía as mortíferas mambas. Chiganda ia à minha frente, agindo como nossos olhos e ouvidos. Fora ali que nascera e confiava nele totalmente.
A luz de uma fogueira de lenha mopane, de lenha, delineava a entrada da aldeia, que atingimos cerca das duas da manhã. Havia uma fraca fatia de Lua a brilhar por cima das nossas cabeças quando emergimos do denso matagal onde os obscenos gritos das hienas pontuavam o ar da noite. Sem dúvida que estavam a prever uma matança, e isso significava que havia por ali leões. Como a ajuda médica verdadeira se encontrava pelo menos a um dia de distância, os aldeões tinha-se virado para mim - pouco mais que um jovem acabado de sair da adolescência -, a fim de ajudar a salvar uma mulher e o seu bebé ainda por nascer.
Lancei uma única olhadela ao corpo enormemente inchado e exausto, deitado sobre uma esteira num canto da palhota escura, rodeado pelas mulheres idosas, e compreendi que teria de a levar ao posto de socorros em Mungári, para sul, por uma estrada de mato capaz de quebrar os ossos aos viajantes. Improvisámos uma maca com paus e cobertores para ser transportada pelo caminho que eu e Chiganda tínhamos acabado de percorrer. Os aldeões acompanharam-nos enquanto os carregadores da maca se esforçavam por chegar à minha camioneta Ford B, que ficara no posto comercial. Passou-se uma eternidade antes de conseguirmos chegar à clareira. Colocámos a mulher e dois membros da sua família na traseira da camioneta, numa cama improvisada com sacas, e partimos para a picada. Debatemo-nos com um terreno cada vez mais irregular, onde precisei de conhecimentos para manter a camioneta sob controlo. Os travões estavam a falhar e necessitava de me manter bem agarrado às mudanças para que estas não saltassem e não nos atirassem para algum buraco onde ficaríamos empanados para sempre.
Cerca de uma hora depois ouvi batidas urgentes no tejadilho da cabina.
- Pare, patrão, pare! O bebé está a sair! - Obriguei a camioneta a parar numa subida da picada e precipitei-me para o exterior com o Chiganda. As mulheres que iam na traseira da camioneta falaram muito rapidamente em chi-Sena, que eu conhecia, e explicaram-me que os solavancos da viagem pela picada tinham dado resultado. O bebé soltara-se. Com tesouras já preparadas, o Chiganda segurou na minha lanterna, o cordão umbilical foi cortado, o bebé foi enrolado num cobertor improvisado feito de sacas e os seus primeiros sons não foram muito diferentes dos miados de um gatinho. Limpámos as secundinas, que as mulheres insistiram em guardar, provavelmente para algum ritual tribal, demos água a beber à mãe exausta mas triunfante, fizemos meia volta e regressámos por onde tínhamos vindo.
Foi extraordinário. Num espaço de menos de quatro horas, o céu começou a iluminar-se para mais um dia na selva de Manica e Sofala, e o telégrafo do mato ficou inteiramente operacional. Por fim, quando regressámos ao posto, já uma multidão de aldeões lá se encontrava, amontoada em volta de um par de fogueiras, para saudar a chegada do bebé e da mãe. Nunca consegui descobrir como fora que a notícia se espalhara tão rapidamente através da mata. Era um fenómeno que eu iria testemunhar naquela fria noite vezes sem conta ao longo das décadas que passei nas savanas, florestas e pântanos de África, longe de quaisquer formas modernas de comunicação.
Foi com uma fumegante caneca de café na mão, ao som das ululações das mulheres e da zombaria dos homens, que regressei por pouco tempo à minha cabana para digerir os acontecimentos da noite. Tinha sido atirado para os múltiplos papéis de caçador, comerciante, mecânico, médico, árbitro e até parteiro logo no princípio do que viriam a ser alguns dos anos mais absorventes da minha vida. Naquela madrugada passei por uma estranha sensação de realização. Uma mulher sobrevivera. Uma criança nascera e toda a aldeia se alegrava. Nos anos que se seguiram, sempre que eu passava por aquela região, os aldeões apareciam para me oferecer ovos ou para me meterem nas mãos uma galinha magricela. Não posso impedir-me de fazer uma comparação entre o valor intrínseco de tais gestos e o valor dado aos minerais raros que na altura começavam a ser prospectados em Moçambique e com os quais estive envolvido, embora por pouco tempo.
Em 1947, acabado de sair da escola e de regresso a Tete, chegaram-nos notícias de uma decisão que poria em movimento uma multiplicidade de acontecimentos e que acabaria por influenciar milhões de vidas em muitos países africanos, incluindo Moçambique. A Grã-Bretanha ia conceder a independência à índia naquele ano. Na altura, para nós, parecia tratar-se de um facto sem qualquer relevância. Prosseguimos com as nossas vidas no vale do Zambeze, onde a minha família tinha negócios em Tete e onde vivíamos uma vida confortável numa associação cordial com toda a gente. De facto, o nome da família Serras Pires tornou-se sinónimo de Tete. Pratiquei aí muitos desportos, em especial futebol e ténis, uma vez que a integração, no desporto, era completa. Esse facto reflectia toda a nossa sociedade, onde a cor não constituía uma barreira. Tal como qualquer outra zona da Terra, Moçambique tinha distinções sociais mas não uma segregação racial legislada e formal, tal como aconteceria no ano seguinte na nossa vizinha África do Sul. Essa fatídica decisão do Partido Nacional Africanense iria influenciar directamente Moçambique e o destino da minha família.
Enquanto aguardava respostas das universidades da África do Sul quanto à possibilidade de conseguir uma vaga, os gigantes mineiros desse país começaram a demonstrar um crescente interesse pela prospecção em Moçambique. Em 1948 fui abordado pela Goldfield´s, da África do Sul, que me ofereceu uma posição num dos seus maiores empreendimentos de prospecção no vale do Zambeze. Essa gigantesca empresa mineira de língua inglesa precisava de um homem no terreno que fosse fluente tanto em inglês como em português, que fosse capaz de conversar em chi-Nungwe, a principal linguagem indígena, e que pudesse caçar para a panela a fim de alimentar a força de trabalho local. Ou seja, procuravam alguém habituado ao mato, de preferência jovem e solteiro, que fosse capaz de passar longos períodos longe de todos os confortos modernos para supervisionar os trabalhadores.
Era um trabalho feito de encomenda para mim. Crescera na região, tinha fome de acção e de aventura, e também da liberdade que só o mato nos pode dar. Geri uma força de cerca de 800 voluntários recrutados entre os povos Nungwe, numa altura em que o sistema de trabalho obrigatório era amplamente utilizado e deu, infelizmente, origem a muitos abusos. Contudo, na Goldfield's nunca tive, em nenhum momento, de obrigar um homem a continuar a trabalhar, porque esse gigante da mineração dava condições decentes aos trabalhadores e tratava-os bem.
Com Tete como ponto de referência, cobri uma muito vasta região através do rio Zambeze, a norte de Tete e ao longo das margens do rio Mavusi, um afluente do Zambeze. A Goldfield's estava particularmente interessada num mineral radioactivo chamado samarsquita, um óxido que constitui a fonte de um certo número de metais das terras raras. Parece-se com pedaços de carvão aveludados e começámos a descobrir depósitos significativos não muito longe dos abundantes campos carboníferos de Moatize. Percorri distâncias imensas a corta-mato, viajando em terrenos perigosamente rochosos e por vezes íngremes, veículos que, nos nossos dias, ninguém teria a coragem de pegar. Mais tarde pudemos utilizar um jipe Willys, numa altura em que os veículos com tracção às quatro rodas eram ainda um luxo distante para a maior parte das pessoas.
Já tinha experiência suficiente no que se referia às pontes de madeira por cima de rios, com as suas estruturas por vezes suspeitas e com espaços entre os troncos mal aparados, para não entrar em pânico quando as atravessávamos cautelosamente. Ainda consigo ouvir os rangidos e os estalidos agourentos que essas pontes soltavam quando o veículo as atravessava centímetro a centímetro, com a estrutura frequentemente a oscilar sob o peso. Houve uma vez em que uma dessas pontes rudimentares oscilou e caiu por trás de nós logo que colocámos as rodas em solo firme, na outra margem. Em África, um número suficiente deste tipo de experiências acaba por nos transformar em fatalistas. O que tiver de ser... será. A visão, através dos buracos entre os troncos mal ajustados, das águas revoltas e enlameadas de uma inundação repentina nada faz para nos alimentar a confiança, em especial quando estamos a
transportar pessoas, rações secas e dinheiro para sustentar um campo mineiro durante semanas a fio.
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CAPITULO IX
DESTRUIÇÃO
Que os meus inimigos morram antes do seu tempo; Que a morte os assalte e vivos desçam ao inferno; porque há maldade nas suas habitações e nos seus corações.
- Salmo 55
Estavam dois negros em roupas civis à minha porta. Foi ao fim da tarde de 27 de Agosto de 1984 e eu sabia que me tinham ido buscar. Não me deram a hipótese de levar fosse o que fosse. Eram tipos dos serviços secretos, uma impressão reforçada pêlos óculos escuros com vidros espelhados e pelo seu ar de rufiões. Não fiquei surpreendido com aquela reviravolta nos acontecimentos.
Havia um Land Rover de chassis curto estacionado no exterior do hotel. Disseram-me para me sentar no banco traseiro e apresentaram uma venda num tecido azul-escuro. Fui vendado mas não algemado. Tinha um homem de cada lado, o meu filho, o meu sobrinho e o Rui já se encontravam presos, pelo que não valia a pena tentar escapar. O Land Rover arrancou. Ninguém pronunciou uma palavra. Andámos durante cerca de meia hora antes do veículo voltar a parar.
Retiraram-me a venda e pude ver que havíamos chegado ao que parecia um complexo militar com algumas casas. Fui levado para uma delas e enfiado num quarto com casa de banho - relativamente confortável -, mas as espessas barras de ferro nas janelas e os guardas tanto no exterior da porta como em volta da casa indicavam claramente que estava sob prisão e que aquilo não era uma casa vulgar.
Trataram-me bem, forneceram-me um magro jantar de sanduíches e fui para a cama. Ninguém me disse uma só palavra. Tratou-se de uma espécie de confinamento solitário, talvez de um "amaciamento" para o que viria a seguir. O dia seguinte foi igual. Comida razoável e silêncio. Sempre o silêncio... e uma ansiedade que me devorava as entranhas. Onde estava o meu filho? Onde estavam os outros? Que estariam os tanzanianos a fazerem-lhes? As nossas actividades eram completamente legais. Então, porquê tudo aquilo? Os meus instintos continuavam a ligar aqueles acontecimentos sinistros às investigações a respeito de Theo Potgieter, das suas intenções menos que claras na Tanzânia e no facto de ter sido eu a iniciá-las.
Trouxeram-me o jantar, sanduíches de carne e café. Havia sempre pelo menos dois homens em trajes civis, que deviam ser elementos da contra-espionagem. Um deles, muito em particular, possuía uns olhos estranhamento oblíquos num rosto cruel. Nessa noite, o procedimento foi o mesmo até ter terminado o meu jantar. Estava a beber o café quando a porta se abriu repentinamente e surgiu o homem de olhos oblíquos com um companheiro muito baixo carregado com uma caixa.
Fiquei a olhar enquanto abriam a caixa e faziam aparecer tiras de borracha negra de câmaras-de-ar de bicicleta. Puseram-me de pé, sempre num perfeito silêncio, enquanto o homem baixo me puxava os braços para trás e os amarrava com força, com os tubos de borracha. Comecei a gritar de dor, dizendo que não era um criminoso. Responderam com o silêncio e apertaram os tubos ainda com mais força.
A seguir, o homem baixo empurrou-me para a cama, agarrou-me os pés e atou-me os tornozelos com mais tubos de borracha. Depois disso foram-se embora sem uma palavra, bateram com a porta e fecharam-na à chave por trás deles, não obstante os guardas colocados no exterior de dia e de noite. Já sentia dores tremendas à medida que o sangue que fluía para as minhas extremidades era progressivamente restringido.
A cama estava encostada à parede, pelo que comecei a bater nesta o melhor que pude para tentar activar a circulação para lá das borrachas. Debati-me para mover as pernas pelo mesmo motivo, mas sentia-me como se os tubos de borracha se estivessem a apertar de minuto a minuto. Gritei, berrei, bati nas paredes e voltei a gritar. Os tubos apertavam-se à medida que a carne inchava em volta das borrachas... e a noite ainda nem sequer começara.
Passei aproximadamente 12 horas naquele quarto, sozinho, na escuridão total e mergulhado numa agonia. Nem sequer vale a pena tentar procurar palavras para descrever aquela tortura indutora de vómitos, o cheiro das roupas sujas, as ondas de puro terror que me engolfavam a mente ante a ideia de vir a perder as mãos e os pés para a gangrena ainda antes do dia chegar ao fim. Onde iriam ser amputadas? Sobreviveria? Como viveria depois disso? Quereria continuar a viver depois disso? Como iriam, a família ou os amigos mais chegados, ser alertados para o que nos acontecera? A quantos mais minutos daquele tormento indescritível conseguira sobreviver? Por que razão nos tinham ido buscar?
Depois... havia as gargalhadas dos guardas no exterior da minha porta, o cheiro ao tabaco barato que fumavam com todo o conforto enquanto ouviam uma voz na rádio, a pairar em Swahili, e escutavam o seu cativo a uivar ao longo de toda a noite como um cão a quem estivessem a arrancar as unhas, uma a uma, logo seguidas pêlos dentes, também um a um. Que ninguém se atreva a pôr em causa a verdade deste pormenores horríveis. Aconteceram... e as repercussões acabariam por ser sentidas nos altos círculos governamentais de vários países e envolveriam chefes de Estado.
Ouvi uma viatura a parar no exterior da janela quando o que ainda restava do meu estômago me subia mais uma vez à garganta. Portas abriram-se e fecharam-se e toda uma série de pés marchou para a porta da frente e até ao meu quarto, cuja porta foi aberta com rudeza e escancarada. Vi aparecer o mesmo suíno de olhos em bico, acompanhado pelo ajudante baixinho. Mais uma vez, o silêncio. Fiquei agitado ante a ideia de ir ser arrastado para o exterior e abatido a tiro. A morte era uma perspectiva muito atraente. Tinha a esperança, contra todas as esperanças, de ir morrer em breve. Os pensamentos, ou pelo menos os pensamentos possíveis entre as vagas de agonia abrasadora nos pulsos e nos tornozelos, centraram-se nos meus três filhos, mas em especial no único rapaz. Que lhe estariam a fazer? Onde se encontraria?
Fui posto em pé à força e recordo-me de ter gritado no instante em que o peso do corpo se apoiou nos balões inchados daquilo que outrora haviam sido os meus pés. Fiquei aterrorizado quando olhei para baixo, para aqueles bulbosos montes de carnes enegrecidas. E óbvio que não podia ver as mãos, mas o aspecto deveria ser o mesmo. Deixei novamente de ver porque fui vendado, para logo de seguida ser meio empurrado meio arrastado para o que pressenti ser um Land Rover, talvez o mesmo que me transportara para o complexo havia dois intermináveis dias.
Lembro-me de ter emitido um estranho e longo gemido, entrecortado durante a viagem por um caminho irregular e posteriormente por estradas de alcatrão repletas de buracos. Para
mim, cada salto e cada balanço constituíam uma nova agonia. O facto de um qualquer ser humano poder ir sentado com complacência ao lado de outro ser humano e limitar-se a contemplar - e na verdade até a aumentar -, um tratamento tão bestial e um tal sofrimento sem nunca emitir um único murmúrio, só pode significar que se tratava de personalidades psicopáticas, criadas num ambiente psicopático. Continuámos aos saltos pelas estradas até que comecei a ouvir o zumbido de motores de avião e me chegou ao nariz o cheiro a gasolina de aviação. Era claro que estávamos prestes a embarcar num avião... e os meus pensamentos pareceram entrar em coma.
Cortaram-me os tubos de borracha que me prendiam os tornozelos. Voltei a gritar, com a garganta já em carne viva por causa da noite anterior. A rude procura das tiras de borracha escondidas por entre as pregas de carnes enegrecidas dos tornozelos inchados foi um suplício muito para além do imaginável. A sensação do sangue até aí contido a tentar escoar-se pelas veias comprimidas foi ainda pior. Rezei a uma divindade inexistente que me fizesse parar de respirar ali mesmo. Vários conjuntos de mãos empurraram-me para os degraus de um avião. No interior, fui atirado para um assento e removeram-me a venda.
Tratava-se de um luxuoso jacto privado com pequenas mesas entre os assentos. Na minha frente estava o meu filho, por barbear, macilento e traumatizado. Irei ser perseguido pela expressão assombrada que lhe notei nos olhos quando me viu. Estava algemado. A seu lado sentava-se Caju, o meu sobrinho, também algemado e com um ar doentio. À esquerda deparei com o Rui, algemado e num estado muito perturbado. Comecei a uivar de dor quando o sangue me regressou aos pés. As mãos, amarradas atrás das costas durante cerca de 14 horas, incharam ainda mais. O meu filho e os outros provocaram uma tal algazarra por causa do meu estado que um daqueles rufiões mal lavados me cortou os tubos de borracha dos pulsos e libertou os outros das algemas. Para onde poderíamos nós fugir? Eu nem sequer era capaz de andar! Recordo-me de ter mergulhado para dentro e para fora de uma espécie de escuridão enquanto o meu filho agarrava nos grotescos volumes azuis negros do que haviam sido as minhas mãos e começava a esfregá-los, gritando-me que tinha de o fazer para as salvar da gangrena. Pela minha parte, gritava e gemia al-ternadamente. O meu filho meteu-me um cigarro nos lábios para que pudesse puxar uma fumaça. As minhas mãos estavam inutilizadas.
O avião rolou na pista e levantou voo. O Rui conseguiu informar-me que vira as letras CCM na cauda do jacto executivo F28. As iniciais correspondiam a Chama Chá Mapinduzi (Partido Revolucionário), o nome Swahili para o único partido político admitido na Tanzânia, chefiado por Julius Nyerere. Aquele aparelho era um avião presidencial. O CCM continua a ser o partido que ainda hoje governa o país, não obstante o eventual aparecimento de um sistema multipartidário em 1992.
Pela posição do Sol, estávamos a meio da manhã. Não tínhamos energias e permanecíamos todos num estado de profundo choque e exaustão. Os nossos bandidos tanzanianos e os seus parceiros moçambicanos do mesmo ramo de actividade também se encontravam a bordo, tal como vim a saber mais tarde. Não pronunciaram uma palavra durante todo o voo. Para onde nos dirigíamos? Estava virado para a traseira do jacto, facto que, para além de tudo o mais, me deixava enjoado, mas reparei que tinha o Sol do lado direito. Todos nós havíamos pensado que seguíamos para Dar es Salaam, que jaz a leste de Arusha, mas já permanecíamos no ar há demasiado tempo. A seguir o meu filho constatou que o Sol se mantinha à esquerda do avião, ou seja, à minha direita. Era claro que nos dirigíamos para o sul... e era ainda mais claro que íamos ser entregues a Moçambique. Tratava-se de uma grotesca violação das leis internacionais. Tal como viemos a saber, havíamos sido raptados por tanzanianos de acordo com um pedido específico do Governo de Moçambique.
Começámos finalmente a perder altura depois de um prolongado e indistinto período no ar. Encontrávamo-nos sobre Maputo, a antiga Lourenço Marques, capital do Estado socialista-marxista de Moçambique, com um regime de partido único. Após quase 40 anos de vida em Moçambique e de uma ausência forçada de quase dez anos, ali estava eu de regresso depois de ter sido raptado da Tanzânia por qualquer motivo que não conseguia descortinar, enquanto me atormentava com a ideia de que já seria demasiado tarde quando alguém da nossa família ou do círculo de amigos influentes conseguisse descobrir o que acontecera e tentasse que nos libertassem. Há limites para o mau tratamento que um corpo humano consegue suportar.
Aterrámos no Aeroporto de Maputo a 29 de Agosto, junto a um hangar e longe do habitual terminal para passageiros. Dois negros subiram para o avião e exigiram que nos identificássemos. A seguir fomos todos novamente vendados e arrastados/empurrados para um veículo, para uma viagem relativamente prolongada através de ruas movimentadas. Sentia-me, à medida que o pesadelo prosseguia, como se estivesse a flutuar dentro de mim mesmo e nada fosse real. Os recém-chegados tinham pretendido algemar-me, mas as algemas não cabiam em torno do sítio onde haviam sido os meus pulsos. Por fim, o veículo parou na frente do que era obviamente uma entrada fortificada de qualquer tipo antes de lhe permitirem que prosseguisse. Voltou a imobilizar-se completamente pouco depois, após o que nos empurraram para o exterior. Retiraram-nos as vendas e separaram-nos. Consegui murmurar ao meu filho e aos outros para não perderem a esperança. Estávamos na Prisão da Machava, em Maputo.
A tarde foi quase toda ocupada com a recolha das impressões digitais, o que para mim foi um novo tormento, e com as formalidades de "registo" por parte de um bando de funcionários prisionais letárgicos e sem expressão. Forneceram-me um uniforme da prisão: calças azuis-escuras com uma tira vermelha ao longo da bainha exterior, e um camisola a condizer, de mangas curtas. Não houve um duche, não houve sabão nem nada que pudesse remover a sujidade acumulada. Mantiveram-me descalço, e tudo aquilo fazia parte das técnicas de desumanização. Todavia, nenhuma força, fosse ela qual fosse, podia penetrar na minha cabeça para me acorrentar o espírito. Ia manter a minha sanidade. Ia sobreviver. Ia recordar-me daquele horror. Um dia, iria testemunhar aqueles tempos repletos de terror.
Os guardas empurraram-me para uma passagem húmida de que me recordo bem por causa do constante som de portas metálicas a baterem e do cheiro a urina que pairava por todo o lado. Nessa passagem, junto a uma grade que dava para o exterior, reparei num homem branco com uma comprida barba e cabelos louros que falava num português com um forte sotaque. Os nossos olhos encontraram-se, mas o homem fez-me sinal para não o reconhecer. Os guardas empurraram-me para a frente e meteram-me numa minúscula cela com um sujo colchão de esponja a um canto. Nada mais ali existia, para além de uma pequena janela com grades, aberta a grande altura nas paredes escuras. Fui atirado para o chão.
- Adelino! Adelino! Estás bem?!
Era o branco que vira na passagem. Era a voz de Dion Hamilton, um cidadão britânico que eu vira pela última vez na Beira havia mais de dez anos. Fora preso e condenado por alegada sabotagem de tanques de combustível na Beira, em 1982... e ainda tinha pela frente mais 18 anos de cadeia.
"Lê este bilhete e destrói-o imediatamente. Outra coisa: é provável que te mantenham vendado por pelo menos 40 dias. Estás nas mãos da contra-espionagem! Sê forte!"
O homem disse aquilo e desapareceu.
Arrastei-me até à porta e encontrei um minúsculo bocado de papel com uma mensagem escrevinhada. Implorava-me que nunca admitisse, junto dos interrogadores, que Dion estivera associado comigo na violação das sanções contra a antiga Rodésia. Não consegui imaginar porque motivo se preocupava a respeito de uma coisa que todo o mundo já sabia havia cerca de dez anos. Para além disso, ele fora preso por alegada sabotagem de uma importante instalação nacional.
Nos anos de 1960, Dion trabalhara para a Cory-Mann George, uma empresa de transportes de carga da Beira, onde nos conhecemos. Pouco depois da declaração unilateral de independência por parte da Rodésia, em Novembro de 1965, Dion, o meu irmão Jacinto e um inglês da Beira juntaram-se a mim num avião pilotado pelo próprio Dion e dirigimo-nos para Tete, onde montámos uma organização, em nome da família Serras Pires, destinada a violar, em grande escala, as sanções decretadas contra os rodesianos. Fizemo-lo com grande êxito até 1974... e eu retirei uma certa satisfação da ironia de haver um inglês envolvido no assunto.
Consegui meter o papel na boca e a seguir enfiei-o numa fenda do sujo colchão de esponja. Não dormi. Não fui capaz de adormecer. Não dormira desde aquela noite em Arusha, 36 horas antes, em que me tinham amarrado com os tubos de borracha. Na manhã seguinte, quando me levaram um copo de água e um pouco de pão, comi directamente do chão como um cão porque não me podia servir das mãos. Reparei que me tinha surgido furúnculos ao longo dos antebraços. Consegui examiná-los melhor quando pedi para me levarem à retrete, que não passava de um sujo buraco no chão rodeado de excrementos e sem água. Claro que não havia papel higiénico e fazia tudo parte do padrão destinado a quebrar o espírito humano.
Um guarda conduziu-me ao posto de primeiros socorros, onde um servente despejou mercurocromo nas minhas mãos e ao longo dos braços antes de os envolver em ligaduras. De volta à cela vi aparecer Dion, que me deixou puxar uma fumaça de um cigarro e me sussurrou mais uma vez que devia esperar ser vendado, algemado, mantido sobre um chão de cimento nu e privado de sono pêlos menos durante 40 dias. A SNASP, a polícia secreta moçambicana, iria interrogar-me e não podia esperar qualquer espécie de piedade. Não voltei a ver o Dion, agora já falecido, depois desse momento.
Minutos depois os guardas vendaram-me e meteram-me num veículo para uma curta deslocação fora do complexo da prisão, até um edifício onde fui novamente metido num compartimento completamente nu. Obrigaram-me a sentar-me numa cadeira e a ficar naquela posição sem comida nem água até à manhã seguinte. Não me podia levantar. Não me permitiram que tentasse dormir. Sabia que havia olhos a vigiarem-me para verem se cedia. Decidi, no interior da minha mente, que iria sobreviver, mas na altura ainda não sabia como.
Surgiu a madrugada do dia 31 de Agosto. Estava doente de fadiga, incapaz de dormir por causa das dores e também porque havia sempre alguém por perto, pronto para me esbofetear se mostrasse sinais de estar a perder a consciência. Era ainda muito cedo quando me conduziram para o exterior e me meteram num veículo, sempre com os olhos vendados. Percebi imediatamente que os outros se encontravam no mesmo veículo. Fomos conduzidos a alguma distância, para o que pensava ser um aeroporto por causa do ruídos dos motores de avião. Quando o veículo parou o meu filho conseguiu afastar um pouco a venda e espreitar numa altura em que percebeu que os guardas se tinham distraído com a presença de helicópteros. Sussurrei-lhes rapidamente o que Dion Hamilton me dissera quanto ao que podíamos esperar nas mãos da SNASP. Disse-lhes que tivessem coragem e fossem pacientes, porque não tínhamos feito nada de mal.
Embarcámos num helicóptero para uma viagem de dez minutos. Recordarei para sempre a sensação da areia da praia contra as doridas solas dos pés quando fui empurrado para fora do aparelho. Era claro que nos encontrávamos numa ilha, talvez em Inhaca ou Xefina, ambas ao largo da faixa de costa de Maputo. Descobri depois que se tratava de Xefina, uma pequena ilhota com masmorras que fora utilizada pela PIDE e também muito antes desta. Percebi imediatamente uma coisa: os moçambicanos estavam a mudar-nos de local para local, porque queriam manter o nosso paradeiro em segredo. Por essa altura, uma boas 72 horas depois de me terem apanhado em Arusha, e ainda mais do que isso desde o momento em que o meu filho e os outros tinham sido raptados da concessão de Ugalla, a notícia já devia ter-se espalhado por intermédio dos colegas caçadores e dos clientes americanos, os Rays e Bob Brown, todos do Texas.
Fomos fotografados e enfiados, para a noite, em minúsculas celas individuais, escuras e completamente nuas, onde jazemos no gelado chão de cimento. Para mim, os mosquitos foram um tormento muito especial porque não podia servir-me das mãos ou dos braços para os afastar. Forneceram-me uma malga de sadza seca, a refeição de milho típica de todo o Sul da África, que meteram por uma fenda da porta. Mais uma vez, fui obrigado a comer directamente da malga como um cão.
O sono estava fora de questão. Encontrava-me vendado, tal como todos os outros, e passei mais um noite interminável enrolado a um canto, a ser comido vivo.
Aquele processo de desmoralização, destinado a desorientar e a intimidar, prosseguiu na manhã seguinte com a primeira sessão de interrogatórios. Ainda vendado, pediram-me que lhes fornecesse o nome completo, a data do nascimento, a residência em Portugal, pormenores sobre os membros da família mais próximos e assim por diante, até ser levado de volta à cela para ficar à espera de mais uma noite terrível. A seguir ouvi os motores de um helicóptero a aproximarem-se e a tornarem-se cada vez mais ruidosos, até que o aparelho pousou e desligaram o motor. A porta da cela abriu-se e levaram-me para o aparelho... vendado, é claro.
Depois de um voo um pouco mais prolongado do que o anterior, o helicóptero aterrou no que era obviamente o continente moçambicano. A rotina já começara a tornar-se familiar. Fomos metidos num veículo para uma curta deslocação desde o aeroporto até ao que presumi ser uma das casas seguras da SNASP nas vizinhanças deMaputo, com celas nuas e pavimentos de cimento. Passei mais uma noite de dores, enregelado e sem ter dormido ao longo de cinco dias. As ligaduras que me cobriam as mãos e os braços não tinham sido mudadas desde a Machava, e não sabia o que se estava a passar... excepto que sofria de dores constantes e que soltavam um odor peculiar que se conseguia sobrepor ao próprio cheiro do meu corpo, já de si bastante mau.
Pensei que nos estavam a mudar de um lado para o outro por duas razões: para nos quebrarem e para manter secreto o nosso paradeiro. Era claro que os moçambicanos andavam em busca de uma qualquer informação e queriam todo o tempo possível para a extrair antes que as interferências exteriores pudessem perturbá-los. Era ainda mais claro que alguém lhes encomendara todo aquele exercício demoníaco. Todavia, quem... e porquê?
Alguns dias mais tarde, dias um pouco indistintos, começaram os interrogatórios a sério. Estava gelado, esfomeado, com alguma sede, coberto de sujidade, por barbear e com dores, e fui retirado da cela e levado para uma sala aparentemente muito grande. Consegui perceber, pelas diferenças nas vozes, que estavam quatro pessoas presentes à espera de me interrogar. Pertenciam a negros, a um branco e a um mulato. Fui obrigado a ficar de pé durante horas enquanto me lançavam insultos e repetiam sempre as mesmas perguntas, uma e outra vez. Todo aquele primeiro dia se centrou em Giscard D'Estaing, o antigo presidente da França e agora dirigente do principal partido da oposição nesse país.
Para começar, tive de suportar um chorrilho de insultos a respeito da minha família fascista e colonialista, da exploração do "povo" pela classe alta a que pertencia, da minha intenção de derrubar a "revolução" e dos planos para trazer de volta os opressores dos tempos de Salazar, roubar o país, fazer sofrer o "proletariado" e muito mais. As vozes rosnavam, gritavam, cuspiam e silvavam à minha direita, à minha esquerda, soavam repentinamente por trás da minha cabeça ou a cinco centímetros do meu rosto, tão próximas que por vezes me chegava o cheiro dos dentes podres dos interrogadores. Estava vendado, não conseguia fitar ninguém nos olhos, e não tinha controlo sobre o local de onde os sons me chegavam. Tratava-se, é claro, de uma táctica clássica de interrogatório para enervar e desorientar o cativo.
Fui imediatamente acusado de ser membro da Renamo, o proibido Movimento Nacional da Resistência Moçambicana, coisa que não era. Fui acusado de estar envolvido na construção de pistas de aterragem na Tanzânia, em nome da Renamo, a fim de criar uma infra-estrutura para a recepção de armas e para atacar Moçambique, que se encontrava inteiramente nas mãos da Frelimo, o partido marxista. Já agora, talvez valha a pena indicar aqui que as nossas concessões se encontravam a cerca de 1600 quilómetros da fronteira de Moçambique. Também fui acusado de utilizar a Hunters África como cobertura para aquelas nefandas actividades contra o povo de Moçambique.
O meu filho, o meu sobrinho e o Rui também estavam a ser acusados de fazerem parte da conjura e de se fazerem passar por caçadores. Eu seria o cabecilha da Hunters África, uma organização que, segundo me disseram, era na verdade uma fachada da CIA. Esta, disseram-me, estava a trabalhar a par com a Renamo e a espionagem da África do Sul para derrubar a "nova ordem" existente em Moçambique. O principal accionista da Hunters África era um milionário americano, não era? E eu... era o mentor de tudo aquilo, afirmaram os interrogadores. Era um filho--de-puta-fascista, um inimigo do povo... e muito, muito mais. Por estranho que possa parecer, notei que o efeito daquelas palavras ia enfraquecendo por causa da constante repetição.
Fui bombardeado durante todo o dia a respeito de Giscard D'Estaing e do seu papel, junto de im, na Tanzânia. As quatro vozes sabiam que ele e eu nos conhecíamos havia muitos anos e que caçara comigo nos tempos da Moçambique "fascista". Queriam saber com quem falara ele na Tanzânia durante a recente caçada que havíamos feito juntos. De que tínhamos conversado? Que estávamos nós a planear? Lançaram-me insultos e ameaças constantes a respeito do meu íntimo envolvimento com os serviços de informações da África do Sul e de ser um operacional da CIA, ambos conhecidos inimigos do Estado moçambicano, e também a respeito das minhas amizades com a "clique" dos países do G7. Aqui chegados, fizeram referência aos meus antigos clientes das grandes famílias europeias produtoras de vinhos. Fui acusado, muito em particular, de estar conluiado com D'Estaing nos planos para derrubar o Governo moçambicano. De cada vez que abria a boca para negar todas aquelas asneiras alucinadas, de primeira grandeza, gritavam-me que me calasse e era novamente ameaçado pelas quatro vozes, que berravam que eu era um capitalista e um inimigo da revolução.
Gritaram-me perguntas específicas a respeito das minhas frequentes viagens aos Estados Unidos da América. Que ia eu, na verdade, lá fazer? Quem ia realmente visitar, e porquê? Entretanto, as perguntas eram frequentemente misturadas com insultos grosseiros e muitas vezes obscenos... e a voz mais zelosa e insultuosa de todas pertencia ao branco.
As vozes tentaram submeter-me a um interrogatório cerrado a respeito de Gordon Cundill e da South African Connection. Fui verbalmente bombardeado com perguntas e acusações, que se tornaram cada vez mais ofensivas à medida que o dia ia passando e eu permanecia apoiado em pés excepcionalmente dolorosos. O meu grupo e eu constituíamos a "ligação terrorista de Lisboa", pronta para derrubar o Governo de Moçambique. No fim daquele dia terrível garantiam-me que acabaria por falar e que iria "cantar" o mais alto que pudesse.
- É o que todos fazem! - silvou urna das vozes quando me empurraram para fora da sala e me levaram de volta à cela, com a bexiga quase a rebentar.
No segundo dia, depois de uma alimentação terrível, sem me poder lavar, tendo sido forçado a usar a cela como latrina - cela que nunca era limpa -, e de mais uma noite privada de sono por causa do guarda com um rádio a tocar em altos berros no exterior da porta e por outros guardas que abriam e fechavam a porta da cela constantemente, fui arrastado de volta à sala de interrogatórios para enfrentar as quatro vozes, sempre vendado, é claro.
Ouvi novamente a mesma gritaria a respeito de Giscard D'Es-taing e do nosso papel na conjura contra Moçambique a partir da Tanzânia. Neguei constantemente. Depois, uma das vozes gritou repentinamente:
- Muito bem! Não queres falar do teu amigo francês, dos seus amigos fascistas americanos e do que estão a tramar? Então, agora vamos obrigar-te a falar!
Logo de seguida ouvi a voz do meu sobrinho Caju lá fora. Estava a ser espancado impiedosamente com uma qualquer espécie de instrumento e gritava de dor a cada golpe. Entre os golpes perguntaram-me se ainda queria continuar calado a respeito dos meus amigos e das nossas actividades subversivas contra o Estado moçambicano e o seu povo. Pedi-lhes repetidamente para não baterem nos outros porque estavam inocentes de todas as acusações e disse-lhes que me podiam bater, se quisessem, mas que isso não alteraria nada.
Esta situação prosseguiu assim durante vários dias, mas reparei que o Caju deixou de ser espancado. Também notei imediatamente que havia vozes novas na cela, uma das quais pertencia a alguém que falava espanhol e que me pareceu ser cubano. Voltei a ouvir as mesmas acusações e ameaças... bem como uma ameaça nova: recordaram-me que o meu filho também se encontrava preso. Todavia, não podia admitir o que não passavam de acusações malévolas e insensatas. Claro que me tornara anti-Freimo. Claro que me sentia cheio de ódio pelo que acontecera aos meus pais, à minha família, aos amigos e a toda uma geração - isto para não falar no país e na vida selvagem -, mas o meu grupo e eu estávamos completamente inocentes de todas as acusações que nos faziam.
Contudo, tal não iria evitar o que aquelas vozes e os seus amigos nos queriam fazer, a mim, ao meu filho ou a qualquer outro. Encontrava-me num estado semicomatoso e tentava desligar-me mentalmente da dor, da angústia mental, da sujidade, da fadiga indescritível, da fome, do frio durante a noite e do medo de que o meu filho e os outros pudessem ser mortos para me obrigarem a "falar". Continuava a dizer a mim mesmo que havia algo que impedia os nossos captores de nos matarem, e isso fornecia-me a energia mental suficiente para me conseguir aguentar mais um dia.... e outro... e mais outro... Os instintos diziam-me que me devia agarrar à sanidade, à esperança, e desligar-me do resto. Forcei-me a lidar com um dia de cada vez, tal como um alcoólico em recuperação. Também aquilo acabaria eventualmente por chegar ao fim.
Voltaram a mudar-me na madrugada de um outro dia. Fui transportado durante alguma distância, por más estradas, para o que revelou ser outra instalação da SNASP, e meteram-me num pequeno quarto com uma minúscula janela gradeada. Pelo aspecto, devia tratar-se de alojamentos para servos convertidos numa prisão.
Consegui aperceber-me disso ao levantar o rebordo da venda com os polegares numa altura em que o guarda me levou até aos arbustos para me poder aliviar. Não podia servir-me dos dedos. Não existiam instalações sanitárias nem nenhum duche. O guarda viu-me a fazê-lo e ameaçou arrancar-me os olhos se o tentasse outra vez. Contudo, de algum modo e no fundo das entranhas, sabia que a ameaça não passava de uma fanfarronada. Eles, quem quer que fossem, não me queriam morto. Um mero guarda talvez pudesse espancar-me, pontapear-me e insultar-me, mas não tomaria uma iniciativa mais drástica do que essas sem ordens dos seus chefes.
Vivia de sadza, a dieta de milho dos locais. Por vezes, de manhã, forneciam-me um bocado de pão e chá com açúcar, mas nem sempre. Nunca comi verduras ou proteínas de qualquer espécie durante os primeiros 53 dias do meu cativeiro. Um ou dois dos guardas davam-me a comida à colher porque não consegui servir-me das mãos durante mais de seis semanas após a provação com os tubos de borracha. Todavia, até os pequenos actos de ajuda como aquele me davam alguma força moral. Na maior parte das vezes alimentava-me como um cão, lambendo a tigela pousada no chão. Ia conservar-me vivo, ia prestar testemunho a respeito de tudo aquilo, muito em especial aos que não queriam ouvir e que ainda hoje continuam a não querer ouvir. Para o fazer tinha de comer, fossem quais fossem as circunstâncias. Não iriam quebrar-me o espírito.
Teve lugar outra reviravolta interessante que me deu esperança. Depois de alguns dias em confinamento solitário naquele novo local, houve um enfermeiro que passou a visitar-me a intervalos relativamente regulares. Mudava-me as ligaduras, lavava-me os braços e as mãos. As dores nas minhas extremidades ainda eram más e sofria de uma irritante infecção nos olhos por causa da venda, que nunca era removida. Descobri que o corpo humano consegue habituar-se a tudo se as circunstâncias se prolongarem por muito tempo. Os olhos ardiam-me e davam-me comichão, mas não os podia coçar. O inchaço das mãos e dos pés era ainda muito mau mas começava a diminuir. Já não receava perdê-los e morrer de gangrena. Os moçambicanos e os seus amigos tanzanianos não me queriam morto.
Fui deixado num estado de isolamento total durante mais de 40 dias. Devia tratar-se de uma tentativa para me quebrar por causa da minha angústia em relação ao destino dos outros, e muito em particular do meu filho. Era um abandono que pretendia forçar-me a enlouquecer e a começar a balbuciar tudo o que os meus atormentadores quisessem ouvir, a que se seguiria uma "confissão assinada", à típica maneira dos comunistas, é claro. A seguir recordei-me do aviso de Dion Hamilton a respeito de vir a ser vendado e maltratado pelo menos durante 40 dias. Ao fim de 30 dias aconteceu algo que me ajudou a sobreviver. Um dos guardas sussurrou-me que falara com outro guarda, que lhe dissera que o senhor Monteiro, o senhor Caju e o senhor Tim--Tim estavam vivos. Estavam "óptimos". Este simples acto de bondade deu-me a força mental para continuar a aguentar.
Durante todo esse tempo nunca permitiram que me sentasse ao sol, que passeasse ou que fizesse um pouco de exercício ao ar livre. Vivi na minha cela - um compartimento minúsculo e escuro - durante 24 horas por dia, excepto quando me levavam aos arbustos para me aliviar. O rádio no exterior da minha porta nunca era desligado ao longo das 24 horas do dia. Os programas revolucionários socialistas do povo berravam constantemente, sem um único intervalo, para aliviarem o aborrecimento dos guardas e para me impedirem de adormecer. A porta da cela abria-se e fechava-se, abria-se e fechava-se, abria-se e fechava-se.... sempre com a mesma finalidade.
Não me lembro de ter despertado de um sono, mas devo ter perdido a consciência de vez em quando. Suponho que mergulhei em momentos de coma de alguns minutos de cada vez, mas estava acordado sempre que a porta se abria. No entanto, sei bem que fui mantido num chão de cimento nu, sem cobertores nem colchão.
O facto de não poder abrir os olhos, não poder pestanejar nem ver normalmente - mesmo que fosse uma parede escura e as grades nas janelas - privava-me de uma função corporal básica: o controlo sobre a minha vida. A finalidade de todo o procedimento era precisamente essa, desgastar-me até que uivasse tudo o que queriam ouvir.
Numa certa manhã, cerca de 45 dias depois do início da provação, tive visitas. Eram as minhas "vozes", acompanhadas por mais uma ou duas vozes novas. Os interrogatórios recomeçaram. Já tinha tido tempo para repensar a minha situação? Já estava preparado para admitir a culpa e o envolvimento directo com a CIA, a Renamo, a comunidade da espionagem da África do Sul, os meus ricos e famosos amigos da Europa e a sua cumplicidade na conjura para destruir a revolução do povo em Moçambique? Reiterei o que afirmara desde o primeiro dia: estava inocente de todas aquelas acusações.
- Muito bem - disseram as vozes. - Escuta cuidadosamente esta gravação. Ë do teu filho, que já confessou. - A fita começou a tocar e ouvi o meu filho a ser espancado, talvez com um chicote de pele de hipopótamo, conhecido por sjambok, ou por um tubo de borracha. Claro que ele nada tinha para confessar porque não fizera nada de mal. Tal como soube mais tarde, haviam-no obrigado a manter-se de pé durante dias, rodeado por guardas que lhe batiam com um cinto se se fosse abaixo e tentasse sentar-se ou deitar-se. Depois fora esticado no solo e espancado. Tinham feito o mesmo ao meu sobrinho Caju e ao Rui, que fora vítima de uma terrível tortura mental. Informaram-nos, a todos nós e em vários momentos, que um ou outro elemento do grupo já morrera. Quando me disseram que o meu filho estava morto decidi imediatamente, de um modo ainda mais resoluto do que nunca, que jamais iria admitir aquelas loucas acusações. Para além disso, também não me deixaria morrer com facilidade.
Depois daquele dia de terror devolveram-me à cela, vendado, exausto, gelado e num desconforto ainda considerável. Estava encolhido a um canto quando a porta se abriu e entrou um dos guardas. Pediu desculpa por não ter chá ou café, mas levara-me uma caneca de água quente e açucarada para me aquecer. Tratava-se do mesmo guarda que me dera notícias sobre os outros. Aquele gesto de humanidade da parte de alguém que correra um grande risco ao falar comigo, e ainda mais ao oferecer-me qualquer coisa, mesmo que fosse apenas uma caneca de água, deixou--me muito afectado. Comecei a soluçar pela primeira vez em muitos anos, talvez desde a morte da minha filha bebé, Margarida, nos anos de 1950. Toda aquela dor, horror e ansiedade explodiram dentro de mim. O guarda estava só e ninguém mais soube disso. Recompus-me e senti um estranho alívio, bem como uma maior determinação em ficar vivo e recordar. Nunca esqueci aquele guarda. Por vezes, quando se atrevia a fazê-lo, também partilhava comigo os restos da sua comida e dava-me um pouco de arroz ou de chá. Há sempre um pouco de luz mesmo no buraco mais escuro.
Numa certa manhã teve lugar uma grande azáfama. Os guardas começaram a varrer, a lavar e a limpar. Enfiaram uma mesa e algumas cadeiras na minha cela e ouvi-os a montar um qualquer equipamento de gravação. Tive uma premonição imediata: aquilo só podia significar uma coisa, a visita de um funcionário de alto nível. Quem poderia ser?
- Adelino! - Ouvi uma voz trocista a chamar-me pelo nome.
Conheci-a instantaneamente. Era a voz de Sérgio Maria Castelo Branco da Silva Vieira, o ministro da Segurança e chefe da SNASP. Tratava-se da pessoa ideal para chefiar o órgão de segurança de uma Moçambique marxista-leninista. É preciso possuir umas determinadas características para dirigir um aparelho clonado de acordo com as linhas do KGB soviético e da infame STASI da Alemanha do Leste, aparelho que, para além disso, funcionava numa ligação íntima e constante com essas duas organizações. Vieira fora escolhido directamente pelo Presidente Samora Machel.
Que ironia, encontrarmo-nos naquelas circunstâncias! As recordações começaram a subir à superfície da minha mente confusa enquanto aquele chefe da organização mais temida do país se instalava numa cadeira e eu permanecia vendado e sentado no chão. A sua família - de origem indiana goesa, negra e mulata -, e a minha, haviam mantido relações de boa vizinhança em Tete, onde o avô dele fora funcionário do tribunal e amigo do meu pai. A minha irmã, Lucinda, fora madrinha da irmã de Vieira, Gabriela, mais conhecida por Gaby. As duas famílias sempre se tinham dado bem e mantido em contacto ao longo dos anos, de uma maneira ou de outra. Lucinda voltara a encontrar Vieira em Portugal, em 1961, onde era estudante. Temos uma fotografia que mostra os meus pais com os pais dele, e também com o Dr. Delgado, o médico local, e com o próprio Vieira. Fora tirada quando saíra de Moçambique ainda jovem para ir frequentar uma das mais prestigiosas instituições educativas do "regime de Salazar", o Colégio Santo Tirso. O meu primo, José Luís Serras Lopes, também frequentou essa escola na mesma altura. Para o jovem Vieira, cerca de 13 anos mais novo do que eu, só era tido em conta o que havia de melhor.
Vieira não completou os seus estudos de advocacia em Portugal e acabou por ir para Paris numa época de fermentação política radical na Europa Ocidental. Entre os colegas estudantes que estiveram com Vieira em Paris encontrava-se Joaquim Chissano, o actual Presidente de Moçambique. Em certa altura, quando estive em Paris para tratar dos negócios dos safaris, procurei vários antigos contactos de Moçambique, alguns dos quais haviam tido uma associação muito íntima com Vieira durante a sua estada em França antes deste partir para a União Soviética, a Argélia e outros países do mesmo tipo. Os fragmentos de recordações a respeito das conversas - de gelar o sangue nas veias -, que esses contactos haviam tido comigo foram interrompidos subitamente quando a voz de Vieira me cortou os pensamentos como um escalpelo ensanguentado.
O interrogatório tornou-se progressivamente mais ameaçador, mas não antes de o patrão da SNASP falar dos dias de Tete e da escola primária Eduardo Baptista Coelho que ambos havíamos frequentado, em épocas diferentes, naqueles tempos distantes e muito felizes em que as nossas famílias haviam sido vizinhas. É extraordinário o que a voz pode revelar a respeito da essência do carácter de uma pessoa por intermédio dos tons, da cadência da fala, do uso das ênfases, dos silêncios e das imagens negras, usadas como ferramentas destinadas a intimidar, bem como o modo como o ódio mancha e distorce essa mesma voz. Vieira, eloquente defensor da revolução marxista-leninista, sempre teve um cuidado especial para falar o português culto da elite colonial portuguesa que já há muito tinha saído do país. Mais uma vez, tive a sensação de estar desligado de tudo aquilo, de flutuar no exterior do meu corpo dorido e exausto, e de olhar do alto para aquela cena extraordinária.
Lembro-me, embora estivesse num indiscutível estado de extrema debilidade, de ter falado num sussurro murmurado e quase inaudível, fingindo uma ainda maior fraqueza à medida que os ataques verbais ia aumentando. Ameaçaram-me de estar arrumado a não ser que recuperasse o bom senso e confessasse. Houve uma coisa que se tornou imediatamente aparente. O facto de o ministro da Segurança e patrão da SNASP, um homem cuja reputação o precedia para onde quer que fosse, demonstrar um interesse pessoal pelo nosso caso - um caso inteiramente inventado e com dimensões já assustadoras -, constituía uma indicação clara de que o Governo moçambicano estava de algum modo a ser sujeito a pressões exteriores relacionadas connosco. Ao não nos tratarem como prisioneiros "vulgares", tal como aos milhares de homens sem rosto, anónimos e infelizes que desapareceram nos "campos de descolonização mental" da SNASP, que se iniciaram em 1975, davam-nos uma certa medida de protecção e de esperança de que um dia iríamos sair dali com vida. Sabia, nos meus ossos magoados, que tinha razão. Quanto mais me gritavam e mais ameaças me lançavam mais eu sabia, lá no fundo de mim, que no exterior havia algo, ou mais provavelmente alguém, que impedia a minha execução sumária. Só bastante mais tarde iria saber até que ponto os meus instintos estavam correctos naquele dia, na fria e húmida cela onde o mau cheiro da malevolência pairava como um fedor a carne queimada. Estava a passar-se qualquer coisa.
Aqueles poucos últimos dias fundiram-se uns nos outros enquanto tentavam artifícios após artifícios. As "vozes" diziam-me que a minha mãe apoiara a Frelimo e que por isso não valia a pena estar a resistir. Senti toda uma nova raiva ao ouvir mencionar a minha mãe. Sim, ela sabia que a Frelimo passava através da nossa quinta em Guro e dera instruções ao pessoal para não procurar confrontações. A área estivera infestada desses guerrilheiros e o pessoal comunicava-nos sempre qualquer presença estranha na nossa enorme propriedade. Eu herdara a sua vontade indomável, e por vezes chocávamo-nos por possuirmos personalidades semelhantes. Naquele dia, o facto de ouvir o seu nome nas bocas das "vozes" deu-me uma nova e estranha força para sobreviver, para a defender na morte e para recordar as coisas por ela. Se a minha mãe tivesse sido uma entusiasta da Frelimo, então porque fora que o Partido nos tirara a quinta e tudo o que possuíamos? Por que razão não continuávamos a viver em Moçambique, um país que nenhum de nós desejara abandonar, mas de onde havíamos sido expulsos por causa da loucura que varrera toda a ordem, toda a estabilidade e toda a esperança a partir de 1974? Deixei que as "vozes" continuassem a falar. Iria sobreviver. Falaria pela minha mãe e simbolicamente também por todos aqueles que haviam sido silenciados pelos novos amos.
Depois, as "vozes" lançaram-se num tópico que, muito secretamente, receava. Que grupo fora aquele que estivera ligado às operações da Safrique? Era do exército português, não era? Tratava-se de urna referência ao Carnaval e ao seu grupo de Mandiocas com quem eu combatera durante a nossa guerra secreta contra a Frelimo ao longo de quase dois anos. Para meu grande alívio, o nome do Carnaval acabou por não ser referido. Embora tivesse morrido no Sudoeste Africano havia oito anos, não queria ser arrastado para conversas a respeito das nossas actividades. Limitei-me a dizer que os banqueiros proprietários da Safrique tinham pretendido melhorar a segurança das suas concessões de caça, tendo em conta a guerra que se desenrolava no mato... pelo que o assunto foi esquecido.
Depois da brusca partida de Vieira, sempre no meio de terríveis ameaças contra a minha existência, voltaram a mudar-me. Por volta do quinquagésimo primeiro dia, ou perto disso, fui guiado pelo que me pareceu ser um autocarro, por causa do som do motor e dos degraus íngremes que tive de subir para entrar no veículo. Pressenti que não me encontrava sozinho e tive a esperança de que o meu filho, o Caju e o Rui continuassem vivos.
CAPITULO X
CONSEQUÊNCIAS
Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos.
- Charles Dickens, A Tale of Two Cities
O senhor Embaixador Reino passou uma boa parte do nosso voo entre Dar es Salam e Zurique a tentar fazer-me uma lavagem ao cérebro, embora com uma grande subtileza diplomática, para que mantivesse calado a respeito das nossas experiências recentes e horrendas. Pediu-me para me recordar que o futuro de Portugal jazia nas suas ex-colónias, que precisava de pensar nos meus filhos e netos, e que estes podiam muito bem desejar regressar a essas mesmas ex-colónias. Quanto mais falava, mais eu ficava a ferver por dentro. Achei que era uma tristeza ver aquele homem, uma pessoa educada e viajada, a advogar o comportamento cobarde do Portugal pós-colonial.
Esteve em curso uma conspiração de silêncio pós-colonial, do tipo da mudez induzida pela vergonha que era vulgar entre as vítimas de violação até há muito pouco tempo. Ninguém tinha a coragem de se opor, de dizer a verdade e de enfrentar Lisboa. A minha família, eu e toda uma geração de moçambicanos, negros e brancos, havíamos sido sujeitos a uma sublevação de que muitos não iriam ser capazes de recuperar por ter acontecido demasiado tarde nas suas vidas.
Fui informado dos planos para sermos alojados na residência do senhor Embaixador, para aí passarmos a noite. A sua esposa, a senhora Embaixatriz mandaria preparar uma refeição tradicional portuguesa em nossa honra e poderíamos recuperar o fôlego antes de voarmos para Lisboa no dia seguinte. Aterrámos em Zurique ao fim da tarde e fomos levados para o salão dos VIP, onde o senhor Embaixador Reino fez diversos telefonemas. Encontrava-me sentado suficientemente perto para o poder ouvir. Falou com a Presidência da República, com o gabinete do primeiro--ministro e com o Ministério dos Negócios Estrangeiros. O Embaixador Reino assegurou a todos eles que tínhamos chegado em segurança, mas admitiu que "temos um problema." O senhor Dr. Reino, um homem agradável que mais tarde foi Embaixador de Portugal em Espanha e que acabei por conhecer bastante bem, limitava-se a seguir a linha diplomática oficial e eu compreendia esse facto. Não tenho a menor ideia sobre o que Lisboa terá aconselhado o nosso Embaixador Reino a fazer, mas a verdade é que ele não voltou a tocar no assunto. Eu, pela minha parte, não tinha palavras para desperdiçar.
O meu irmão mais novo, José Augusto, fora a Genebra ao nosso encontro e informou-nos pormenorizadamente a respeito dos acontecimentos durante os nossos cinco meses de encarceramento, bem como sobre o que poderíamos esperar em Lisboa. Ele e a família tinham reunido extensos livros de recortes cheios de artigos de jornais, apontamentos, relatórios, cartas, postais, bem como alguma outra documentação não pública relacionada com a nossa provação e que tenho em meu poder. O meu irmão aparecera na televisão portuguesa para nos defender das acusações de terrorismo, tráfico de armas, actividades de resistência e tudo o mais que as imaginações férteis e fétidas dos nossos inimigos tinham conseguido sonhar. Ficámos cada vez mais desanimados ante as revelações do José Augusto.
Ele, o Tim-Tim o Caju e o Rui seguiam num carro à nossa frente; o Embaixador e eu num segundo carro enquanto éramos levados para a residência diplomática para lá passarmos a noite. De súbito o carro da frente parou e vi o meu filho deitado no chão gelado de uma rua de Genebra. Todos nós continuávamos a usar roupas de Verão. O meu filho parecia ter sofrido qualquer espécie de indisposição no carro, perdera a consciência e fora por isso que o motorista parara. Tim-Tim não reagiu quando tentámos reanimá-lo, pelo que nos precipitámos para um hospital, onde foi admitido em grave estado de choque. A sua condição estabilizou passadas algumas horas, e teve alta na manhã seguinte, a tempo de voar connosco para Lisboa.
Que se passara? José Augusto começara por dizer ao meu filho e aos outros que se encontravam no carro que uma das principais razões - numa curiosa sintonia com o caso Potgieter - porque tínhamos sido apanhados, raptados, torturados e metidos na cadeia durante cinco meses fora por causa do acto traiçoeiro de um certo Mário Ferro, um jornalista a trabalhar em Maputo. O facto deixou-me sem palavras. Ferro andara na escola com o meu filho e era um velho amigo da família que em 1975 escolhera ficar para trás em Moçambique, na altura em que a maior parte dos brancos se fora embora.
Ferro, tal como foi publicado nos meios de comunicação em Portugal, tornara-se num aprendiz de agente da SNASP. Fora nessa capacidade que visitara Portugal em Junho de 1984, onde contactara com a minha irmã, Maria José, a mãe do Caju, e vira outros membros da família. Muito convenientemente, encontrou Tim-Tim e Caju "por acaso", quando estes iam a caminho de Madrid e da Tanzânia, para se juntarem a mim na nossa nova operação de caça. Como éramos ex-moçambicanos, pareceu natural que ficasse satisfeito por encontrar pessoas de Moçambique que ele conhecia havia anos. Ferro ficou até tarde depois do jantar em casa da Maria José e de repente perguntou se a família o podia receber para a noite. A minha ex-esposa ofereceu-lhe com satisfação o quarto do nosso filho, que já partira para a Tanzânia. Como é natural, Ferro ouviu tudo a respeito dos planos em nome da Hunters África, que iríamos pôr em prática nesse país. Não tínhamos nada a esconder.
Pois bem, para justificar a visita perante os seus amos espiões, com o zelo de um recém-convertido ansioso por ser aceite, esse tal Ferro elaborou um relatório secreto para o Presidente Samora Machel, datado de 24 de Junho de 1984. Houve uma fuga de informações no gabinete de Machel e uma cópia desse relatório acabou por ser enviada - por um moçambicano negro desiludido que tinha acesso aos segredos de Estado e cuja identidade conheço -, à minha família em Lisboa durante o nosso cativeiro. O relatório menciona um certo número de pessoas consideradas como perigosas para Moçambique tendo ido ao ponto de sujar o nome da família Serras Pires.
Trata-se de um relatório repleto de mentiras e imprecisões, que afirma, por exemplo, que a operação de caça na Tanzânia pertencia a um italiano. Diz que as concessões de caça da empresa se iriam situar perto da fronteira entre Moçambique e a Tanzânia, enquanto as mesmas se encontravam a mais de 1600 quilómetros dessa fronteira. Para além disso, acusa-nos, ao meu filho e a mim, de pertencermos a bandos armados, o que era ridículo.
Para além disso, o relatório declara que a minha família estava "enraizada na era colonial na região de Guro", como se isso fosse um crime contra a humanidade. É um tanto fértil de imaginação em particular vindo de um ex-comando do Exército Português que foi empregado de Jorge Jardim, o homem de Salazar em Moçambique, e aceitava alegremente o salário mensal das suas mãos. Até o facto de o meu filho ter obtido uma licença de piloto nos Estados Unidos é exibido como prova de subversão no conto de fadas inventado por este aprendiz da SNASP. O relatório também declara que a nossa família tinha "fugido" de Moçambique.
Ferro excede-se a si mesmo quando menciona a minha amizade com "o antigo presidente da França, Valéry Giscard D'Es-taing", numa linguagem que sugere algo de sinistro. Para concluir esse exercício de sabotagem, que quase nos matou a todos, Ferro encerra o relatório com a sugestão de que a nossa presença nas concessões de caça da Tanzânia se destinava a "agitar os moçambicanos que vivem na Tanzânia a fim de os recrutar".
Foi com estes factos a rodopiar na minha cabeça que o senhor embaixador Reino nos acompanhou até ao Aeroporto de Genebra e durante todo o voo para Lisboa.
Lisboa foi outra história. No aeroporto havia uma enorme multidão de membros da família, amigos, funcionários do Estado, jornalistas e equipas de televisão à nossa espera. Contei os factos, nus e crus, logo na primeira de várias entrevistas com a imprensa. As minhas palavras a respeito do rapto, tortura e grosseiros maus tratos encheram os cabeçalhos de vários jornais no dia seguinte, sobrepondo-se aos relatórios altamente prejudiciais que haviam circulado a nosso respeito durante meses, não apenas em Portugal mas também noutros pontos da Europa, nos Estados Unidos e também, como é evidente, em países africanos.
Revelei o que eu próprio acabara de saber: que no princípio de Setembro de 1984 Caju conseguira enviar clandestinamente um bilhete para a mãe, em Lisboa, com a ajuda de um guarda da Prisão de Machava, em Maputo, dizendo que havíamos sido raptados e levados para Moçambique. Para aumentar ainda mais o drama, o bilhete fora escrito numa carta com o timbre da SNASP! Para além disso, o sobrescrito exibia o carimbo dos correios de Maputo. Lisboa fora imediatamente informada pela minha irmã de que nos encontrávamos cativos em Moçambique, mas as autoridades nada fizeram. A minha família foi deixada mergulhada na angústia enquanto os seus membros, e a comunidade internacional da caça, se esforçavam pela nossa libertação antes que morrêssemos.
O Governo português fora impelido à acção graças apenas à constante tenacidade de estrangeiros, a começar por John e Vicki Ray, de Dálias, no Texas, que foram abandonados em pleno sa-fari quando os membros da minha família tinham sido raptados na concessão de Ugalla. Os Ray voaram para Lisboa e começaram a abanar o barco antes de regressarem à América para prosseguirem com a sua campanha. O meu filho conseguira entregar a Vicki o número do telefone da mãe em Lisboa quando já estava a ser metido no Land Rover. Vicki foi a estrela por ter sido ela quem alertou o mundo a respeito do nosso rapto.
Gordon Cundhill, da Hunters África, juntou-se à batalha. Voou para Lisboa para ver a minha família e estabeleceu uma ligação pessoal e contínua com pessoas altamente influentes de vários países, a fim de pôr as coisas a mexer em Portugal, na Tanzânia e em Moçambique para conseguir a nossa libertação. Foi uma fonte de tremendo conforto para toda a minha família.
A fraternidade internacional da caça também participou na luta. Numa convenção mundial em Madrid, em Outubro de 1984, os caçadores de todos os continentes assinaram uma petição em massa e depois, num esforço muito publicitado, enviaram-na a Nyerere, na Tanzânia, proclamando o nosso bom nome de há muito e exigindo que nos pusessem em liberdade. Houve um par de indivíduos que se recusou a assinar... e estou a recordar-me, muito em particular, do espanhol de olhos azuis com uma habilidade incomparável para se auto-engrandecer a fim de mascarar a sua profunda sensação de insegurança. A todos os outros caçadores que se mantiveram a nosso lado e nunca desistiram, manifestamos o nosso apreço até ao fim por tudo o que fizeram colectiva e individualmente para tentarem ajudar--nos. Foi uma ajuda que contou... e contou muito.
Um dos manipuladores de segunda linha responsáveis pela divulgação de relatos durante o nossos cativeiro foi um certo Alves Gomes, outros dos que ficaram para trás em 1975. Trabalhava para a Agência de Informação Moçambicana, a AIM. Gomes teve a audácia de me receber como se eu fosse um velho amigo quando regressei à Beira em 1995, depois de uma ausência de 20 e tal anos muito difíceis. É um dos boys da Frelimo e os seus relatórios vieram à superfície nos jornais The Observer e The Guardian, em Inglaterra, por exemplo, e numa grande variedade de publicações em todo o mundo.
Em Janeiro de 1985 fiquei surpreendido ao ver alusões com-pletamente erróneas a nosso respeito no África Notes, uma publicação do Centro para os Estudos Estratégicos e Internacionais, da Universidade de Georgetown, em Washington DC, uma instituição que se supõe ser um dos mais prestigiados centros dedicados aos assuntos internacionais no mundo Ocidental. Outros jornais chegaram mesmo a inventar histórias sobre a minha suposta prisão no Zaire por tráfico de armas, antes de ter sido "preso" em Arusha.
Éramos suspeitos de estarmos ligados ao envio clandestino de armas para a Renamo, a partir da Arábia Saudita e Omã, via Somália e Comores, onde teriam sido embarcadas para o Norte de Moçambique, e daí a suposta ligação ao mercenário francês Bob Denard. Estas alegações surgiram na altura em que a África do Sul estava, de facto, a fornecer assistência militar clandestina à Renamo, tal como acabou por ser revelado.
Graças a uma coincidência funesta, Theo Potgieter estava muito atarefado a espalhar boatos a nosso respeito no interior da Tanzânia para os seus próprios fins nefastos. Tudo isto resultou numa mistura letal de associação fortuita de acontecimentos e insinuações malévolas que nos arrastaram para uma provação de cinco meses.
Hoje, ainda há indivíduos que acreditam que fui sempre culpado das acusações que nos fizeram... e alguns desses indivíduos têm assento no Parlamento português. O meu filho também foi torturado em Moçambique durante acusações falsas e repetidas de que fizera parte do ataque de Agosto de 1976 a Nyadzonya, em Moçambique, pêlos Selous Scouts, durante o qual morreram mais de mil guerrilheiros. Nos dias imediatamente após a nossa libertação iria tomar conhecimento de cada vez mais pormenores chocantes relacionados com o nosso rapto e tortura.
O telefone nunca parou de tocar durante vários dias, enquanto eu folheava o volumoso maço de documentação relacionada com a nossa provação. Anne Aymone, a esposa de Giscard d'Estaing, telefonou-me para me expressar o seu alívio por estarmos vivos e fora da Tanzânia. Fora uma das celebridades que defendera a nossa causa e a sombra do seu marido pairara sobre os nossos interrogatórios. A esposa do presidente Eanes também telefonou, tal como fizeram muitas personalidades proeminentes de vários países logo que a notícia se espalhou.
Devíamos as nossas vidas a esforço internacional e concertado que acabou por também envolver a Liga da Cruz Vermelha e as sociedades do Crescente Vermelho, a Internacional Hunting and Game Conservation, com sede em Paris, bem como a Amnistia Internacional. Para além disso, os serviços secretos de vários países também foram arrastados para o escândalo. O gabinete do rei de Espanha demonstrou um interesse directo e activo no nosso destino graças à intervenção da família Aznar, por intermédio da mãe, Loli, marquesa de Lamiaco, a quem este livro é dedicado.
Fomos formalmente convidados para um encontro com o presidente de Portugal e aceitámos, porque o deputado José Gama me assegurou que o presidente interviera, fizera tudo o que pudera e recebera garantias da nossa absoluta inocência em face do falso communiqué tanzaniano divulgado quando da nossa libertação. José Gama apresentou-nos, os quatro, ao presidente Eanes. No fim, uma típica audiência presidencial de dez minutos, no máximo, transformou-se em hora e meia de conversa sem a presença de outros funcionários.
Recusei um encontro com o senhor Dr. Mário Soares, o primeiro-ministro português, autor da infame expressão "descolonização exemplar", e não quis estar na sua companhia nem sequer por cinco segundos. Não tinha qualquer desejo de lhe apertar a mão depois da nossa viagem ao inferno. Agora, a vida era demasiado preciosa para ser desperdiçada em formalidades com alguém que não fizera absolutamente nada por nós. Ele e os seus associados socialistas/comunistas tinham pura e simplesmente entregue as colónias portuguesas aos revolucionários comunistas, destruindo muitas vidas durante esse processo e causando prejuízos a longo prazo a milhões de pessoas simples, na sua maioria negras, que foram abandonadas ao seu destino. Também me recusei a ver o ministro dos Negócios Estrangeiros porque também ele nada fizera e sujeitara a minha família e amigos a meses da mais negra das angústias.
Regressei à sede da Hunters África em Midland, no Texas, durante algum tempo. Clayton Williams, o proprietário, mostrou-se ansioso por ver publicado um livro que narrasse as minhas experiências. Contudo, não era o momento apropriado para um tal empreendimento. A raiva era ainda demasiado forte para me permitir ver as coisas numa perspectiva correcta. De qualquer modo, só alguém que conhecesse a África por dentro, que há muito estivesse interessado sobre as políticas subsarianas e compreendesse as complexidades da minha vida estaria em condições de enfrentar uma tal tarefa. Teria de ser alguém que "sentisse" o assunto e em quem eu pudesse confiar, porque seria necessário levar a cabo muitas conversas off-the-record.
A vida é feita de interlúdios. Em Outubro de 1986 já estava de volta a Espanha havia algum tempo, e encontrava-me de facto em Barcelona quando ouvi a notícia de que Samora Machel, o presidente de Moçambique, morrera na queda de um avião perto da fronteira entre Moçambique e a África do Sul. A queda do aparelho nunca foi devidamente esclarecida e as alegações a respeito de sabotagem pelos sul-africanos, de uma tripulação russa bêbeda e de misteriosos faróis programados para desviar o aparelho do seu curso e fazê-lo cair ainda continuam a surgir à superfície. Agora surgiu uma nova teoria, que veio nada mais, nada menos, do que da própria viúva de Machel, Graça, que em 1999 falou de certos elementos dentro da Frelimo suspeitos de terem planeado a morte do marido.
Bem, bem...
Decidi voar para a África do Sul. Não vira a minha irmã Lucinda e a sua família desde 1979, por ocasião do funeral da minha mãe, em Lisboa. O nascimento iminente de uma sobrinha--neta era também uma boa razão para nos reunirmos. Passara pela África do Sul em muitas ocasiões e fizera visitas fugidias ao país em anos passados, mas já se passara uma boa década desde que lá estivera pela última vez.
Enquanto estive na África do Sul surgiu-me uma nova oportunidade quando me envolvi no lançamento de uma propriedade destinada à caça no Estado Livre de Orange, a zona central do país. Viajei frequentemente entre a Espanha e a África do Sul por causa dessa operação e consegui contratos com uma muito razoável lista de clientes da Europa.
O meu filho e o Rui Monteiro também participaram na operação, que envolvia caçadas em ranchos de outras partes da África do Sul, desde a fronteira com o Botswana, a oeste, até ao Zimbabwe, ao norte, e desde o Natal, no sudeste, até à província do Cabo, a leste. Em anos tão recentes, como a década de 1960. A África do Sul não teria sido considerada como um destino de caça pêlos desportistas internacionais. Hoje, graças a uma campanha sustentada e cientificamente apoiada para reclamar terras aos campos de milho e ao gado, para reintroduzir e reproduzir as espécies indígenas da zona, a África do Sul pode gabar-se de possuir as propriedades destinadas à caça grossa melhor geridas em todo o Continente africano, e atrai mais caçadores anualmente do que qualquer outro país africano.
Depois dos mundos sem vedações, de lugares como Moçambique, Angola, Rodésia, República Centro Africana, Sudão e Zaire, por exemplo, acabámos por concluir que as vedações dos ranchos de caça não nos agradavam. Havia um certo elemento de "enlatado" em algumas caçadas, o que nos perturbava. Por isso, e também por uma variedade de outras razões, decidi regressar a Espanha em 1988, onde dirigi uma agência de marcação de safa-ris a partir de Madrid, mas também tinha em mente outras questões, tais como o Movimento Nacional de Resistência de Moçambique
Na esteira da nossa provação de 1984-85, todas as notícias a respeito de Moçambique passaram a ter para mim muito mais interesse do que teriam numa situação normal. Parti à descoberta, numa tentativa para saber com exactidão quais os recursos de que a Renamo dispunha em termos de representação no estrangeiro, e não fiquei surpreendido ao concluir que esses guerrilheiros anticomunistas tinham falta de um vigoroso apoio na Europa e nos Estados Unidos. Havia uma presença no Quénia, em Portugal, Alemanha Ocidental e um lobby em Washington D.C., que funcionava sob a designação de Centro de Investigações de Moçambique. A Espanha, por exemplo, era socialista e pouco receptiva para uma causa como a da Renamo, tal como Portugal. Em meados dos anos de 1980 a política britânica referente a Moçambique era moldada, entre outras coisas, pelos interesses de negócios relacionados com Tiny Rowland e com as actividades do grupo Lonhro no país, bem como pela relação especial entre Moçambique e a Inglaterra depois da independência do Zimbabwe, em 1980. A Renamo não passava de uma inconveniência. A posição dos Estados Unidos não era muito melhor, mas decidi tentar entrar em contacto com os representantes da Renamo em Washington.
Tom Schaaf, Jr., um americano, trabalhara para o Ministério da Agricultura, na Rodésia, e continuara a exercer uma actividade na esfera agrícola depois da independência do Zimbabwe, em 1980. Instalara-se na fronteira de Moçambique, em Mutare, em frente da província de Manica, e costumava entrar em Moçambique por razões ligadas ao seu trabalho. Tom era um cristão convicto e foi nessa capacidade que se envolveu em extensos programas missionários que resultaram em contactos com a Renamo, o que o levou a tomar consciência da brutalidade do regime e do sofrimento do povo.
Tudo isso tem sido bem documentado e apresentado numa variedade de publicações ao longo dos anos: o assassínio das autoridades tribais para quebrar a força dos chefes tribais tradicionais e levar o povo à submissão, a instituição das leis dos passes para restringir as movimentações no interior de Moçambique, a ilegalização e confiscação das propriedades religiosas, a queima de aldeias e igrejas, a morte de pessoas ao acaso e a destruição das colheitas, a incorporação forçada dos jovens no exército, a confiscação de gado, as marchas forçadas até aos "Centros de Descolonização Mental" - os gulags de Moçambique -, as prisões sem julgamento, as torturas, a má alimentação, a manipulação das ajudas durante os períodos de fome para impedir que chegassem às mãos dos que eram vistos como sendo anti Frelimo, os trabalhos forçados, a colectivização forçada e as acções destinadas a aterrorizar a população a fim de a controlar.
Tom Schaaf tornou-se num defensor da causa da Renamo. Durante uma das minhas visitas aos Estados Unidos, Tom apresentou-me a Herman Cohen, que era o Conselheiro de Segurança Nacional para África e que viria a ser Assistente do Secretário de Estado para os Assuntos Africanos durante a Administração de Reagan. Foi-me concedida uma generosa audiência a sós com Herman Cohen, que se mostrou atento e interessado pelo que eu tinha a dizer.
Perguntei a Cohen quem seriam os moçambicanos mais autênticos. A seguir afirmei que o facto de eu ser branco enquanto a maioria dos moçambicanos era negra não estava em questão. Vivera em Moçambique numa situação inteiramente multirracial, fossem quais fossem as injustiça inerentes àqueles tempos. Frequentara a escola em Moçambique quando criança, praticara desporto sem atenção à cor das peles, trabalhara em Moçambique e fornecera emprego aos locais durante décadas. Os meus quatro filhos - um dos quais falecido - tinham nascido em Moçambique. Tudo o que havíamos considerado de valor tivera as suas raízes no país... e eu era uma voz que falava em nome das incontáveis vozes anónimas que tinham visto as suas vidas arruinadas pela Frelimo.
Quando o avisei de que a Renamo não era um simples fenómeno passageiro e que mais cedo ou mais tarde teria de ser incluída na vida oficial de Moçambique, Herman Cohen virou-se para mim e afirmou que a solução se encontrava numa reunião entre as duas partes, a fim de negociarem um novo futuro para o país.
Para que não surjam más interpretações, permitam-me que afirme que nunca recebi um centavo da Renamo por nada do que fiz em prol do movimento, nem sequer no que respeita a despesas de viagens, alojamento ou outras semelhantes. Era motivado por um sentimento de ultraje e de vingança. Queria ver alguma justiça a ser feita antes de morrer, algum equilíbrio nos pratos da balança. Queria vingar a minha família e todos aqueles que não tinham voz e se encontravam impotentes sob as presentes circunstâncias. Queria assistir à eliminação da doença marxista-leninista.
O destino voltou a intervir quando me encontrava a ler um dos jornais diários em Madrid. Em finais de 1989, um artigo relativamente insignificante e quase escondido relatava o rapto de quatro marinheiros espanhóis pela Renamo quando o seu barco de pesca encalhara ao largo da costa moçambicana numa área controlada pela Renamo. Os arrastões espanhóis há muito que esvaziavam as águas de Moçambique - onde a pesca era livre - de todo o peixe, e ainda hoje continuam a fazê-lo.
O mestre da embarcação coxeava e não conseguia acompanhar os outros quatro membros da tripulação e os seus captores da Renamo na prolongada marcha através do mato. Por isso, decidiram libertar o mestre, que foi escoltado de volta ao porto por um dos guerrilheiros. O destino dos seus companheiros era desconhecido e os agentes espanhóis, tal como acabei por descobrir, não sabiam o que fazer.
Vi uma oportunidade de extrair algum capital político deste incidente e tive a esperança de conseguir fazer qualquer coisa para libertar os espanhóis. Descobri quem era o proprietário da embarcação de pesca e tive uma reunião, em Madrid, com ele e com os seus associados. Mostraram-se muito apreensivos quando me apresentei como sendo um membro da Renamo. No entanto, nessa fase, ainda não havia sido formalmente admitido no movimento de oposição. Enquanto falava a respeito do possível papel que poderia vir a ter para conseguir a libertação dos espanhóis, o proprietário da embarcação, um muito proeminente cidadão de Madrid, interrompeu-me de repente e disse:
- Um momento! Eu conheço-o! É o Adelino, que conheci em Nairobi, em 1977, no
Safari Park Hotel. Era o gerente a ajudou-nos a recuperar outro dos nossos arrastões!
Aquilo quebrou imediatamente o gelo! Que pequeno é este nosso mundo! Em 1977, os moçambicanos tinham apreendido uma embarcação daquela gente quando se encontrava a pescar em águas moçambicanas. Fora imposta uma pesada multa mas, mesmo assim, a embarcação não fora devolvida aos seus legítimos donos. O meu nome viera à baila como uma possível fonte de ajuda, porque talvez conhecesse as pessoas apropriadas, em Moçambique, para resolverem o problema dos espanhóis. Joaquin Fernandez, o director da empresa de pesca e um grande amigo da família Aznar, conhecia-me e entrara em contacto comigo em Nairobi para pedir ajuda.
Ele e o seu número dois, Amador Suarez, o homem que eu tinha agora na frente, haviam voado para o Quénia e fornecera-lhes o nome de René d'Assunção, um advogado moçambicano negro da Beira que ia frequentemente a Portugal e que eu conhecia bem. René acabara por resolver o problema dos espanhóis, entretanto Fernandez saíra da empresa e Suarez ocupara o seu lugar.
Avisei-o, e aos colegas, que os membros da tripulação do arrastão não seriam libertados imediatamente, mas que podia garantir-lhes que seriam tratados com humanidade. Pediram-me para fazer a ligação com os elementos do escritório da Renamo em Lisboa a fim de lhes pedir que contactassem com o seu líder, Afonso Dhlakama, que se encontrava no mato. Assim foi feito, e Dhlakama mandou dizer que estava pronto a receber-nos em Nairobi - a mim e a uma delegação da empresa espanhola -, durante o mês de Dezembro de 1989 para discutir o assunto. No fim fui o único a meter-me num avião na companhia de Sebastião Temporário, um dos representantes da Renamo em Lisboa, que mais tarde viria a ser membro do Parlamento moçambicano. Fomos recebidos muito cordialmente por Dhlakama, que sabia exactamente quem eu era e estava informado a respeito da família Serras Pires, uma vez que tínhamos vivido e caçado no que era uma área da Renamo.
Dhlakama deu-me a sua palavra pessoal de que os espanhóis seriam libertados e que estavam a ser bem tratados. A seguir, o líder da Renamo pediu-me para me juntar à sua organização, o que fiz ali mesmo, em Nairobi. Tenho em meu poder a carta de nomeação assinada pelo próprio Dhlakama autorizando-me a representar a Renamo no estrangeiro. Foi apenas nessa altura, em Dezembro de 1989, que me tornei membro da Renamo. Para além disso, Dhlakama disse-me que os pescadores espanhóis de certeza que iriam ser utilizados para focar as atenções internacionais.
Antes de voar de regresso a Madrid, Dhlakama pediu-me para dar uma ajuda ao escritório de Lisboa e promover a causa na Europa. Foi com essa finalidade que dei a minha assistência a um lobby pró-Renamo em Londres, por intermédio do meu bom amigo David Hoile. Esse lobby conseguiu projectar uma imagem mais sóbria e honesta sobre o cenário em Moçambique sob a Frelimo, graças aos meios de comunicação e a proeminentes cidadãos britânicos. Apresentei David à hierarquia da Renamo em Lisboa durante uma muito rápida visita secreta conseguida através dos serviços de informações militares portugueses. Também fui instrumental no lançamento de um lobby semelhante em Espanha entre pessoas excepcionalmente bem ligadas aos meios de comunicação, que poderiam dar uma visão mais equilibrada das realidades de Moçambique e não as histórias tendenciosas e esquerdistas que deificavam a Frelimo.
O estimado escritor espanhol, Arturo Perez Reverte, recebeu o encargo de fazer um documentário sobre a Renamo em nome do Governo espanhol, um governo socialista e muito anti Renamo. Quando foi ver-me, disse-lhe com toda a franqueza que não queria que fosse a Moçambique de má-fé e com ideias preconcebidas, para depois produzir um documentário tendencioso que serviria apenas para envenenar ainda mais as coisas numa região já devastada por anos de uma guerra civil que causara tremendos sofrimentos ao povo e dizimara a vida selvagem. Reverte compreendeu que eu sabia do que estava a falar e garantiu que me mostraria as imagens antes da montagem final. Um futuro novo e diferente só pode ser construído sobre factos, porque a verdade tem sempre tendência para vir ao de cima.
Cerca de dois meses mais tarde, Reverte e a sua equipa de televisão regressaram a Espanha e fui convidado a ir até aos estúdios para ver as imagens. Eram dramáticas, mostravam escolas nas matas, clínicas muito primitivas - mas que não deixavam de ser clínicas -, para tratamento dos feridos e dos doentes, e toda a espécie de infra-estruturas na vasta região dominada pela Renamo. Incluía entrevistas claramente improvisadas com uma enorme variedade de pessoas que falavam abertamente das suas vidas e a respeito do que tinham experimentado desde a partida dos portugueses. As imagens eram absorventes.
Reverte, um homem extremamente em forma, falou-me com espanto da resistência física e mental das forças da Renamo que encontrara. Os espanhóis tinham entrado em Moçambique pela fronteira do Malawi e coberto mais de 960 quilómetros a pé nas áreas da Renamo, por vezes em terrenos muito difíceis. Reverte até inventara uma designação para o passo, capaz de estourar qualquer um, com que essas forças se moviam, e passara a chama-lhe "passo Renamo". Para além disso achara incrível a resistência física das mulheres da guerrilha que transportavam com toda a facilidade cargas de 40 quilos durante as prolongadas marchas através do mato. Ajudavam a transportar carne seca, principalmente de búfalo, desde as planícies de Marromeu, a cerca de 300 quilómetros de distância, para alimentarem as tropas e a população local.
O documentário espanhol foi amplamente distribuído e representou uma vitória para a Renamo, uma vez que se tratava do produto de um país socialista. Os quatro pescadores foram libertados e regressaram a Espanha, onde teceram louvores à Renamo. Afirmaram que tinham sido consistentemente bem tratados e também que o movimento lhes fornecera tudo o que tinha à sua disposição. Como é óbvio, a novidade espalhou-se.
Sob Daniel Arap Mói, o Quénia estivera a desempenhar um papel cada vez mais importante como mediador nos esforços para eventuais negociações directas entre a Frelimo e a Renamo. A África do Sul e o Zimbabwe também estavam envolvidos. O estatuto da Renamo começava a mudar e deixava de ser o de "bandidos armados" para começar a ser considerada como um autêntico movimento indígena de oposição. A guerra civil prosseguia, mas também prosseguiam as negociações para tentar pôr-lhe fim.
O segundo Congresso Nacional da Renamo teve lugar no interior de Moçambique, em Dezembro de 1991. Juntei-me ao grupo da Renamo de Lisboa e voei para Roma, onde fiz a ligação para Blantyre, no Malawi. Em Blantyre tínhamos de ser excepcionalmente cuidadosos, porque a cidade estava apinhada de espiões da Frelimo. A partir daí fomos transportados num Piper Aztec até uma pista de aterragem no mato, numa das antigas concessões de caça da Safrique, entre Maringué e Nyamacala. O avião foi pilotado por Rodney Hein, um missionário evangélico do Zimbabwe, e um piloto de mato de primeira classe que tinha a sua base em Blantyre. Como missionário, ministrava junto da enorme população de refugiados moçambicanos a viverem no Malawi, junto à fronteira da sua pátria. Rodney fez mais pela Renamo durante todos aqueles anos do que qualquer outra pessoa que eu conhecesse. Era extraordinariamente dedicado e não precisávamos de partilhar as suas crenças religiosas para reconhecermos esse facto.
Voámos a uma altitude baixa potencialmente perigosa, mas aterrámos em segurança. Senti-me estranhamente entorpecido por estar de volta aos meus antigos terrenos de caça naquelas circunstâncias, depois de já terem passado 15 anos. Era como deparar com alguém que se tivesse conhecido muitíssimo bem mas que não víssemos há anos. O dilúvio de recordações e de tristeza foi avassalador. Por razões de segurança não nos tinham informado sobre o local exacto para o congresso, e tivemos de caminhar pelo mato, em pleno Verão, durante dois dias consecutivos antes de chegarmos ao nosso destino.
Estivemos em Moçambique durante um mês. O congresso não pôde iniciar-se imediatamente porque ainda havia pessoas a caminho, a pé, vindas de lugares muito distantes. No percurso de dois dias através do mato até ao local do encontro nunca vi o mínimo rasto de um animal selvagem. Para mim, foi uma experiência profundamente perturbadora. As armas eram utilizadas para alimentar as pessoas. Nos anos que haviam decorrido tinham sido experimentados períodos de secas terríveis, seguidos pela fome, pelo que esse processo levara ao massacre da vida selvagem. Era um facto que eu conseguia compreender.
David Hoile, João Gonçalves, um dentista de Portugal, e eu, éramos os únicos brancos no congresso e concederam-nos um tratamento muito cortês. Em 3 de Dezembro foi-me transmitida a notícia, em pleno mato, de que a minha filha Palucha acabara de dar à luz o seu terceiro filho, em Lisboa. Era a primeira menina e iria chamar-se Margarida em memória da minha primeira filha, que jaz sepultada na Beira. Foi um augúrio, um sinal de um renascimento para Moçambique. Senti-me feliz mesmo a milhares de quilómetros de distância.
Uma equipa da televisão canadiana que se encontrava no congresso perguntou-me, em filme, se pretendia regressar a Moçambique para reclamar o que perdera. Retorqui que se tratava de uma razão legítima para lá voltar, uma vez que a Frelimo roubara o que era legalmente meu e também o que pertencera a toda a minha família. O documentário foi mostrado na Europa, na África do Sul e nas Américas.
A maior parte dos membros da Renamo a trabalhar no estrangeiro e os observadores convidados partiram antes de mim depois da conclusão do congresso. Fui transportado através do mato numa das três motocicletas existentes, até ao que restava de uma pequena povoação chamada Canxixe, que era agora uma ruína esburacada depois de anos de guerra de guerrilhas. Foi aí que esperei que Rodney Hein nos fosse buscar. O seu Piper Aztec chegou em devido tempo, mas avariou-se logo depois da aterragem. A África força-nos a sermos pacientes.
A bateria descarregada foi desmontada e levada de motocicleta até à base principal da Renamo, onde existia um carregador, uma vez que a base possuía rádios sofisticados que funcionavam a baterias. Rodney regressou no dia seguinte, pronto para a partida. Na noite anterior, enquanto comia o meu sorgo e recusava a "carne", reparei que o comandante local tinha apenas duas diminutas aves no prato. Brinquei com ele a respeito do seu "banquete". Respondeu-me:
- Sabes uma coisa? Creio que estas eram as duas últimas aves em toda a área!
Voei dali para Blantyre e depois para Lisboa via Paris. As negociações respeitantes a um acordo Renamo/Frelimo intensificaram-se entre o princípio de 1992 e o mês de Outubro desse mesmo ano. Esse "Acordo Geral de Paz" foi devidamente assinado em Roma, em 4 de Outubro de 1992. Nem eu nem nenhum outro dos brancos que ao longo dos anos se tinha dedicado, à sua pró pria custa, a ajudar a Renamo, foi convidado para Roma. Convidei-me a mim mesmo e cheguei cerca de uma hora depois da assinatura. Olhei em volta e confrontei-me com alguns indivíduos com um ar envergonhado. À luz daquela nova "política de indi-genização" no coração da Renamo, dei os meu trabalhos por terminados e cortei os laços com o movimento de uma vez para sempre. Os meus pensamentos estavam com os povos tribais, no mato, que tinham deposto toda a confiança nos seus representantes. Para mim, era o fim da estrada.
Um punhado de representantes da Renamo desenvolvera um certo gosto pela boa vida desde finais dos anos de 1980, à medida que visitavam a Europa com cada vez maior frequência. Viagens aéreas em primeira classe, bons hotéis, boa comida e melhores vinhos, roupas elegantes e uma opinião muito inflacionada a respeito da sua própria importância acabaram por contagiar essas personagens. Alienaram-se cada vez mais da sua missão original, que era a de lutar pêlos interesses dos milhões de pessoas simples que viviam no terreno, que pouco ou nada tinham de seu e que suportavam o fardo dos sofrimentos provocados pela guerra civil. Havia uma arrogância crescente a ganhar raízes na liderança da Renamo.
Deixei Roma naquele mês de Outubro a saber que a sedução daqueles representantes da Renamo já se iniciara. Falaram comigo abertamente a respeito de irem para Maputo e de virem a fazer parte do Parlamento. Era aí que estava a boa vida. Claro que Maputo tinha o seu lugar próprio, mas a verdade é que ninguém me falou no desejo de regressar à Gorongosa ou a Maringué, no mato, ou até à Beira, para lutar pelos direitos do seu povo numa nova posição a partir dos seus distritos eleitorais. A alegre Paris acenara-lhes. O que vi naquele dia em Roma, por muito desagradável que agora possa soar, convenceu-me de que nada iria mudar para os milhões de seguidores da Renamo que viviam no terreno à medida que os seus representantes, incluindo o próprio Dhlakama, se desligavam deles e mudavam para sul do rio Save, uma vez que era aí que se encontravam todos os poleiros.
Ironicamente, ainda iria a ser cordialmente convidado a regressar a Moçambique pelos próprios representantes diplomáticos da Frelimo, para testemunhar o epílogo desta história.
EPILOGO
O Vento de Mudança soprou e desapareceu e, no final do século não há
um único país africano sujeito a qualquer potência exterior. Todavia, há
centenas de milhões de africanos sujeitos à servidão desde o primeiro dia
da uhuru...
- John Qwelane (proeminente jornalista negro da África do Sul).
O telefone tocou. Era Fernando Antoniotti, uma voz do passado distante que frequentara a escola primária comigo em Tete havia quase 60 anos. Lembrava-me bem dele. O pai era de origem italiana, daí o apelido, e a mãe fora uma mulher local. A minha irmã Lucinda era madrinha da irmã do Fernando, Elena, e as nossas duas famílias haviam partilhado muitos dos anos de pioneirismo no Zambeze. Fernando fazia parte da missão diplomática moçambicana em Portugal e tivera algum trabalho para me conseguir localizar. Encontrava-me em Lisboa por acaso, de visita à minha família, quando retomámos o contacto depois de tantas décadas e do drama colectivo que durara toda uma vida.
Para meu grande espanto, Fernando convidou-me a visitar a Embaixada de Moçambique, onde fui recebido com o tapete vermelho e onde me deram um visto gratuito para poder visitar o país às claras e com toda a liberdade pela primeira vez em 20 anos. Depois de tudo o que transpirara a meu respeito, muito em particular no que se referia ao meu activo envolvimento com a Renamo entre 1989 e 1992, não deixava de ser um desenvolvimento inesperado. Manifestei-me tão francamente como sempre, e disse aos meus anfitriões que quem tinha mudado eram eles e não eu. Continuava a defender os mesmos valores que me tinham levado a lutar até ao fim. Sei que chamei a atenção dos diplomatas naquele dia quando disse que, embora tivesse rejeitado o que a Frelimo demonstrara ser a partir de 1975, também precisava de admitir que a Renamo não teria sido uma melhor solução. De facto, teria sido igualmente má.
Entretanto, acontecera muita coisa à Frelimo. Forçada pelas duras realidades - tanto políticas como nas economias interna e externa -, a pagar um preço cada vez mais dramático por urna guerra que não era possível vencer, a par com uma cada vez maior pressão por parte dos verdadeiros senhores do universo, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional via Estados Unidos da América, a Frelimo teve finalmente de esquecer as suas políticas marxistas-leninistas depois de mais de 15 anos desastrosos. Muito convenientemente, as responsabilidades por esses anos foram lançadas única e exclusivamente sobre a guerra civil. O partido não teve outra escolha se não a de adoptar um sistema económico de mercado livre e um sistema político multi-partidário, por muito suspeito que este último ainda seja. Os homens da linha dura da Frelimo tiveram de se submeter à cada vez mais vigorosa neocolonização económica de Moçambique por intermédio daquelas entidades mundiais, e muito em especial por intermédio do poderoso vizinho de Moçambique, a República da África do Sul. Talvez estivesse realmente na altura de regressar para dar uma vista de olhos àquilo em que Moçambique se transformara. Nem sequer me atrevia a interrogar-me sobre o que teria acontecido à vida selvagem.
Voei para a Beira num típico dia húmido de Outubro de 1995 enquanto revia mentalmente a passagem dos anos. Na minha mente surgiram-me imagens da infância, da juventude, dos gloriosos dias dos safaris e do vergonhoso ponto final de toda uma vida naquele mesmo aeroporto onde estava agora a ser recebido de um modo tão caloroso e genuíno. Não obstante a negligência de duas décadas fosse inconfundível nas pinturas a cair, nas ruas esburacadas, nos passeios pouco cuidados e no mau estado geral de uma cidade outrora vibrante, agora com a sua quota de crianças da rua, não deixei de reparar na cordialidade dos moçambicanos, que excedia tudo o que já experimentara noutros pontos de África. Tivera lugar uma guerra amarga, houvera muito sofrimento e morte com perdas irreparáveis para todos os lados, mas, sem excepção, a afabilidade dos locais era notável.
Fui recebido por Francisco "Chico" Brandão, um bom amigo dos velhos tempos que era proprietário do Hotel Embaixador, um dos locais mais conhecidos da Beira, após o que a notícia da minha chegada em breve se espalhou e em breve me vi em contacto com pessoas que haviam desempenhado um papel significativo na minha vida durante muitos anos. Nalguns casos, as conversas e as gargalhadas voltaram a renascer como se não tivessem sofrido nenhuma interrupção. Noutros casos surgiram momentos de constrangimento, enquanto procurámos encontrar palavras capazes de transpor um abismo de duas décadas. Por vezes nem sequer havia palavras e descobri-me a rodear questões para não ter de relembrar acontecimentos. Contudo, aprendi rapidamente que, desde 1975, os moçambicanos vulgares tinham sobrevivido a anos terríveis de opressão política, à guerra, às constantes privações, a secas, a inundações e à fome. As cicatrizes desses anos ainda eram visíveis. Pequenos luxos como os principais campos desportivos da Beira estavam transformados em montes de lixo cobertos de ervas e em latrinas ao ar livre, os empregos continuam a ser escassos, em especial a norte do rio Save, e notei imediatamente um ar de desilusão generalizada.
Apesar de tudo o que ouvi e vi, era estranhamente reconfortante estar de volta. Visitei o túmulo da minha filha no principal cemitério da Beira e pude verificar que tinha sido razoavelmente cuidado, um sinal do forte respeito pêlos mortos que é típico das culturas africanas em geral. Os amigos organizaram-se para me conseguirem levar até à quinta da família e ao túmulo do meu pai em Guro, a 440 quilómetros da Beira, e depois a Tete, no Zambeze, onde as minhas primeiras memórias africanas se encontram ancoradas. Tinha uma verdadeira necessidade de voltar a experimentar a terra que dera forma à minha vida.
Seguimos para o interior, atravessando do rio Pungué por duas vezes, enquanto deixávamos para trás a costa húmida e um milhar de memórias. Os efeitos da guerra civil eram visíveis por todo o lado. O povo fora forçado a abandonar as aldeias e a concentrar-se junto das estradas, onde os povoados miseráveis se haviam amontoado enquanto as pessoas tentavam sobreviver. Matas outrora repletas de árvores haviam sido desbastadas para lenha ao longo de áreas enormes, perturbando seriamente os habitats da vida selvagem.
Ganhei imediatamente consciência de um aumento populacional como nunca vira em todas aquelas décadas anteriores passadas em Moçambique. A maior parte das pessoas que encontrei era crianças ou adolescentes. Os homens capazes andavam por longe, nas cidades, nas vilas, nas minas de outros países, numa tentativa para ganharem a vida, enquanto as mulheres ficavam para trás e tentavam segurar o desgastado tecido social há muito sujeito a grandes tensões. Não obstante tudo o que se passara, a população como que explodira e duplicara, literalmente, durante os meus 20 anos de ausência. A vida selvagem, já dizimada em resultado do sofrimento humano, não iria conseguir escapar aos efeitos daquele drama contínuo. Quem me dera que as coisas fossem diferentes.
Viajávamos por estradas com condições surpreendentemente boas e ia avistando marca conhecida atrás de marca familiar. Naquele dia pairava no ar um silêncio invulgar à medida que tentava absorver o que se desenrolava na frente dos meus olhos. Sentia-me entorpecido e cansado de tantas mudanças. A lógica dizia-me que não se pode voltar para trás nas nossas vidas. Nunca nada se mantém na mesma. A mudança é a única constante nos assuntos humanos... mas as minhas emoções continuavam à espera de ver um vestígio daqueles 40 e tal anos passados que tivesse permanecido tal como eu o recordava.
A serra de Guro ergueu-se na nossa frente. Detivemo-nos num ponto privilegiado para olharmos para o vale e distinguirmos as casas brancas da quinta a destacarem-se contra a serra. A casa desaparecera... tal como a maior parte das árvores que outrora haviam coberto a serra de Guro. Os latidos de aviso dos babuinos ainda podiam ser ouvidos nas suas fortalezas rochosas lá no alto, e a principal atracção para esses animais era agora a manta de retalhos dispostos ao acaso dos talhões de sorgo e milho que se viam no vale. Ninguém falou quando descemos aos solavancos pela estrada que eu percorrera incontáveis vezes para poder chegar à nossa quinta.
Estávamos rodeados por um povoado improvisado com cerca de 60 mil pessoas que viviam nos locais onde outrora havia sido o pomar e as nossas modestas vinhas, onde o milho, o girassol e os campos de algodão haviam sido cultivados, onde tínhamos aberto uma pista de aterragem para salvar a vida do meu pai, onde a caça grossa vagueara à sua vontade, e que se estendia até ao local onde se tinham erguido os alojamentos para os trabalhadores. Havia um montão de tijolos e pedras a marcar o local da grande casa da quinta, que fora despojada de tudo o que pudesse ter valor havia já muitos anos. Saí da viatura e olhei à minha volta, esforçando-me por recordar a bela visão de há tantos anos das matilhas de cães selvagens doidos de excitação quando percorriam as nossas terras atrás dos kudus (gomas), com os seus ganidos agudos a ressoarem no ar límpido daqueles dias mágicos da minha juventude.
Afora, o fumo de lenha de milhares de fogueiras para cozinhar erguia-se no sopé da serra escura e pairava no ar uma atmosfera de negligência que era como uma mortalha a estender-se de horizonte a horizonte. Os animais selvagens tinham desaparecido. As aves, em especial as de rapina que eu sempre considerara como um dado adquirido, tinham desaparecido. Quando segui a pé para o túmulo do meu pai reparei que as árvores que assinalavam o local não haviam sido abatidas. Na verdade, eram até mais altas e grossas do que me recordava. Senti-me estranhamente aliviado ao chegar junto do túmulo para verificar que não lhe tinham mexido. Era claro que fora respeitado ao longo dos anos pelas pessoas, muitas das quais nem sequer faziam ideia sobre quem fora o falecido, mas que possuíam uma profunda compreensão sobre os ritos da morte. O que senti naqueles dias foi demasiado complexo para ser descrito por palavras, e foi demasiado tarde para as lágrimas. Era o bastante estar ali, para recordar.
A notícia de que tinham chegado visitas espalhou-se com a velocidade de um raio, e dentro de pouco tempo já tinham aparecido vários antigos membros do pessoal da nossa quinta. Os seus rostos, tal como o meu, estavam sulcados pela idade e nalguns casos por anos de má saúde. Foi um encontro extremamente emocional à medida que nos saudávamos uns aos outros e recordávamos tempos compartilhados, tempos desaparecidos. Disse que todos os que me quisessem voltar a ver poderiam reunir-se naquele mesmo local daí a três dias, a uma hora determinada, uma vez que iria a Tete e voltaria a passar por ali no caminho de regresso à Beira. Muito em particular, gostaria de me encontrar com os que tinham feito parte do pessoal de caça. Essas pessoas simples que tinham permanecido na área e que, por uma qualquer sorte incrível, tivessem sobrevivido à guerra, à doença e à fome, poderiam dizer-me a verdade a respeito da nossa coutada n.° 9, onde houvera uma tão rica vida animal e onde havíamos passado por algumas experiências de caça verdadeiramente extraordinárias.
Tete e a Caroeira eram como um velha mulher pobremente vestida que tivesse conhecido tempos melhores - e até tempos de grande êxito -, e continuasse a fazer um esforço para se apresentar bem. Se olhássemos com mais atenção, os vestígios da antiga beleza tornavam-se discerníveis à medida que os edifícios outrora familiares nos surgiam à vista: o bar onde eu encontrara John Pondoro Taylor pela primeira vez, a fachada agora suja e a desfazer-se da antiga residência do governador, a nossa enorme casa com a varanda a toda a volta, onde as andorinhas vindas da Europa construíam os ninhos por baixo dos beirais, a escola primária onde fizera os primeiros amigos em África... As recordações arrastavam-se umas às outras tão fluidamente como o fluxo do rio lá em baixo, o Zambeze, aquele poderoso mar da minha infância. Tentei encontrar o local onde os vapores de rodas costumavam atracar e deparei com uma bela ponte que atravessa o rio no local onde a barcaça era a única maneira de chegar à outra margem. Agora, o trânsito flui cada vez mais intensamente para o Malawi e para lá deste através daqueles históricos cruzamentos de estradas dos meus primeiros dias em África.
Na cidade ainda existia um punhado de pessoas que conhecera durante anos e com quem partilhara a minha vida. Ficou muita coisa por dizer naqueles três dias. Era suficiente ver-me de novo entre velhos amigos, sem ter de explicar nada, sabendo perfeitamente que estávamos na parte final das nossas vidas. Todos nós sentimos agudamente a necessidade de recordar e de sermos recordados.
Regressei à nossa quinta em Guro, e quando lá cheguei já um grupo de cerca de 30 pessoas se reunira para me ver. Toda a gente vestira as suas melhores roupas de domingo, incluindo várias mulheres idosas que tinham trabalhado para a minha mãe. Foi uma visão comovente quando as pessoas se amontoaram em volta da comida e da bebida que levara comigo e me começaram a falar daqueles 20 anos e de tudo a que haviam sobrevivido.
Foi a habitual história deprimente tão típica de África: fratricídio, ganância, promessas quebradas e destruição. Interrogaram-me a respeito dos membros da minha família e quiseram saber quando regressaríamos a Guro. Expliquei-lhes que tínhamos perdido tudo em Moçambique e que a terra em que nos encontrávamos, onde a nossa quinta fora e onde tantos dos presentes tinham trabalhado e vivido durante anos nos tinha sido tirada pela Frelimo e pertencia agora ao Estado, pelo que não podíamos voltar para começar tudo de novo. Era demasiado tarde. As hienas haviam chegado e partido... e já nem sequer restavam as carcaças das nossas vidas anteriores. Apenas recordações. A multidão murmurou a sua compreensão.
Tinham aparecido vários dos antigos membros do pessoal dos safaris. Tendo em conta as circunstância em que haviam sido forçados a viver naquelas décadas, fiquei francamente surpreendido por os ver a todos. Quando lhes fiz perguntas sobre os animais da região, em particular na coutada n.° 9, Moisés, um dos meus pisteiros, levantou as duas mãos num sinal de desespero. A maior parte dos animais desaparecera. Tinha havido uma guerra e muitas pessoas com grandes armas. Tinha havido falta de comida e até fome. Agora, ainda havia muita gente com grandes armas. Os soldados, tanto da Frelimo como da Renamo, tinham morto muitos animais. Ninguém os conseguira deter. Dito aquilo, despedimo-nos uns dos outros, conscientes de que seria improvável que nos voltássemos a ver.
Tive um grande sentimento de desperdício e de fim irrevogável enquanto seguia em direcção à Beira.
Aí chegado, enviei um mensageiro com dinheiro à aldeia de Radio, o chefe dos meus pisteiros. Tinham-me garantido que continuava vivo e era um dos poucos sobreviventes da minha equipa de caça original. Tratava-se de um facto notável, porque a região onde a sua aldeia se localizava fora particularmente atingida durante a guerra civil. Pedi ao mensageiro para que, quando voltasse, trouxesse o Radio com ele. Não me podia ir embora sem o ver. Partilhara alguns dos anos mais significativos da minha vida e fora uma das poucas pessoas em quem eu pudera confiar implicitamente. Tendo em conta o meu controverso envolvimento recente com a Renamo, não me arriscava a viajar até uma fortaleza do partido nem a criar problemas às pessoas que lá viviam. As noções a respeito de políticas pluripartidárias ainda se encontram num estado embrionário na maior parte de África, e os partidos da oposição ainda estão sujeitos a desconfianças... e a coisas piores. Só a pressão do mundo desenvolvido levou à introdução em África de conceitos como a democracia e os sistemas multipartidários. No entanto, os pontos de vista gerais são ainda grandemente totalitários.
Radio apareceu. Tinha um aspecto frágil mas ainda razoavelmente saudável, e ficámos ambos muito comovidos quando nos vimos um ao outro. Falou-me da terrível fome dos anos de 1980, da morte de muitas pessoas precisamente pôr causa dessa fome e também por causa da guerra. Em certa altura, Radio estivera gravemente doente, mas uma das suas esposas conseguira mante-lo vivo cozinhando raízes de bananeira e fazendo uma espécie de papas.
Falou-me da destruição da caça na Reserva da Gorongosa e no abate das suas antigas árvores. Descreveu-me em pormenor a matança das outrora enormes manadas de elefantes existentes na região por causa do marfim, e nem sequer os elefantes jovens haviam sido poupados. Tanto a Frelimo, como a Renamo, os homens do Zimbabwe e da África do Sul tinham estado envolvidos no assunto. Ninguém tinha as mãos limpas. O marfim fora trocado por armas, de modo a ser possível prosseguir com a guerra civil.
Radio confirmou-me a matança dos búfalos na planície de Marromeu para alimentar as tropas do Zimbabwe, que também tinham criado problemas no país. Descreveu-me como haviam utilizado helicópteros para abaterem os animais a partir do ar. Falou com resignação. A vida estava pior, muita gente morrera e muitas outras pessoas continuariam a morrer. O trabalho era mais escasso do que nunca e as pessoas estavam zangadas porque as suas vidas não tinham melhorado depois de tantos sacrifícios. Ninguém do Maputo aparecia ali, no mato, para falar com elas, para lhes dizer o que se passava ou o que iria ser feito pela região. Ninguém se ralava. Estavam sozinhos e entregues a si mesmos.
Que podia eu dizer? Ofereci medicamentos e dinheiro a Radio, para que pudesse regressar à aldeia em segurança. Disse-lhe que sempre o recordaria e ao seu povo, e que estava profundamente triste por saber o que lhe acontecera, bem como ao pequeno bocado de mundo que ambos havíamos partilhado. Perguntei a mim mesmo o que teria sido feito do seu hostil filho, se ainda estivesse vivo. Continuaria a ser um revolucionário tão convicto depois de ver todo o sofrimento que a família tivera de suportar? Contudo, não lho perguntei.
Regressei a Moçambique várias vezes desde 1995, e fui até locais tão a norte como Pemba, a capital da província de Cabo Delgado. Faz fronteira com a Tanzânia e a separação entre os dois países é feita pelo rio Rovuma. Na região da bacia do Rovuma ainda resta alguma vida selvagem, em especial de elefantes, mas a crescente caça furtiva constitui uma ameaça séria e contínua para o que resta da caça.
Em 1997, num desenvolvimento especialmente irónico, o meu nome veio novamente ao de cima em Maputo, a capital de Moçambique. Pediram-me para falar com o governador da província de Cabo Delgado, que era também o vice-ministro da Agricultura, Pescas e Vida Selvagem, para discutir planos para a conservação da vida selvagem naquela região. Sempre gostei de desafios. Porque não mais um? Isto levou a ter sido directamente responsável, em 1998, pela apresentação da direcção do Safari Club Internacional ao governador, José Pacheco, educado nos Estados Unidos.
Depois de uma série de viagens a Cabo Delgado, pagas do meu bolso, descobri-me subitamente posto de lado sem me ter sido dada qualquer explicação. Certas entidades, impelidas pelo ego e pela ganância, estavam mais interessadas em concessões de caça e em ganhar dinheiro rapidamente do que no estabelecimento no terreno de uma força anticaça furtiva viável, ou em iniciativas a longo prazo para a conservação da caça.
Correram boatos, e boatos a respeito de boatos, de caçadas feitas de helicóptero, de gente que excedia as quotas e de contrabando de marfim. Até esta data continuam a circular histórias a respeito do que se passou na região de Cabo Delgado em 1998. Não tenho conhecimento de que, nessa área, tenha sido instalado algo de significativo no terreno para o combate à praga da caça furtiva. Tenho bons motivos para pensar que os meus esforços iniciais, empreendidos com toda a boa-fé, não irão dar qualquer resultado.
O Sul de África foi atingido por uma nova e terrível catástrofe quando já estavam em curso, em Nova Iorque, as negociações finais com os editores deste livro. Os furacões Eline e Gloria devastaram a região e causaram as piores inundações de que há memória. O país mais gravemente afectado foi, de longe, Moçambique, em especial a parte sul. As imagens do terror entraram nas salas dos lares de todo o mundo quando a televisão capturou o medo e a devastação de muitas centenas de milhares de pessoas nas suas patéticas tentativas para escaparem às lamas mortais dos rios enlouquecidos que galgaram as margens e afogaram aldeias inteiras na sua feroz caminhada para o mar. Milhares de pessoas nas planícies costeiras baixas, desde bebés a frágeis idosos, procuraram os terrenos mais elevados ou foram puxadas para o cimo das árvores onde se agarraram à vida durante dias, hipnotizadas pelas águas que não paravam de subir, dominadas pela fome, pela sede e pelo receio de serem novamente abandonadas aos seus destinos.
Desidratada, faminta e no fim do tempo de gravidez, a mãe de Rosita Pedro deu à luz na copa de uma árvore antes de ser avistada e puxada para a segurança por um helicóptero sul-africano. O dilúvio prosseguiu durante dias, matando pessoas, gado e animais selvagens, destruindo as reservas alimentares e as posses, deitando abaixo infra-estruturas, e trazendo na sua esteira a ameaça da fome e das doenças, em particular a malária e a cólera. A chuva ainda caía sobre grandes partes de Moçambique duas semanas depois dos furacões se terem afastado.
O primeiro país que se precipitou a ajudar Moçambique foi a
África do Sul, cujas tripulações de helicópteros salvaram mais de 12 mil pessoas, enquanto o resto do mundo se limitava a olhar. O vizinho outrora pária foi o único país africano capaz de intervir imediatamente para ajudar um outro país africano impotente para pôr em marcha, por si só, uma qualquer missão de salvamento. Os países europeus, a que se juntou a América, o Canadá e um pequeno conjunto de Estados africanos, acabaram por chegar em massa para auxiliarem às operações de salvamento e para darem alguma esperança a pessoas novamente empurradas para a beira de um novo abismo de medo e de miséria, forçadas a palminhar mais uma vez os trilhos de lama, em direcção a lado nenhum, enquanto tentavam manter-se vivas num continente onde o sofrimento parece continuar a ser a marca característica da existência humana.
Os meios de comunicação, de Moçambique e de muitos outros países, publicaram relatos de certos políticos moçambicanos, e também de ex-políticos do passado desse país, a choramingarem por aquilo que definiam como sendo a resposta tardia do mundo ocidental ao seu sofrimento. Investiguei atentamente os meios de comunicação em busca da mínima sugestão a respeito da chegada de um qualquer tipo de apoio, vigoroso e visível, sob a forma de alimentos, medicamentos, aviões e pessoal treinado para emergências, que tivesse sido fornecido pêlos antigos camaradas de armas do bloco oriental com quem alguns moçambicanos haviam marchado alegremente sob a mesma bandeira vermelha.
Começaram a circular relatos de corrupção a alto nível em Moçambique, e a respeito da ajuda alimentar internacional estar a desaparecer para voltar à superfície no mercado negro a preços exorbitantes. Outras ajudas e os medicamentos nem sempre chegavam aos seus destinos, que deveriam ser os apinhados campos de emergência onde as pessoas caíam doentes e onde as crianças, muito em particular, sofriam de má nutrição grave, onde a água limpa, para beber, era uma raridade, e onde os trabalhadores da ajuda internacional, médicos, enfermeiros, paramédicos e pessoas de genuína boa vontade batalhavam contra essa corrupção endémica, sem rosto e letal.
O presidente da Organização de Unidade Africana admitiu a quase completa falta da capacidade do continente para lidar com aquele tipo de calamidades naturais. Nos jornais moçambicanos, que recebo diariamente por e-mail, começaram a surgir relatos prejudiciais a respeito de certos elementos das forças armadas do país que teriam vendido, contrabandeado ou roubado motores de aviões e peças sobressalentes para obterem ganhos pessoais, ao ponto de Moçambique ter ficado sem meios aéreos para lançar a sua própria operação de socorro antes da chegada das forças estrangeiras. No que se refere a este assunto, o mundo foi iludido com frases como "Estamos a investigar"... e este é o país constantemente exibido pelo mundo como constituindo uma história de êxito em África! No meio desta calamidade, as autoridades moçambicanas também acharam apropriado cobrar altas taxas de aterragem no Aeroporto de Maputo aos aviões estrangeiros que levavam auxílio e pessoal.
Os efeitos desta tragédia irão ser sentidos durante anos e criarão novas oportunidades para a entrada de estranhos. É indiscutível que há muito interesse por parte de estrangeiros nos projectos a desenvolver em Moçambique, em particular da parte dos sul-africanos, que transformaram o Estado vizinho num satélite económico, o que até nem é mau. Contudo, os desenvolvimentos económicos significativos têm quase sempre lugar a sul do rio Save. O Norte continua com falta de investimentos, subdesenvolvido e negligenciado a favor do Sul, que é povoado pela tribo dominante da região, que também domina a hierarquia da Frelimo. O desenvolvimento de Maputo faz um grande contraste com a pobreza da Beira, e ainda mais em relação a todas as outras cidades e povoados do Norte... e isto não é por acaso.
Nos primeiros meses do novo milénio a agitação prossegue em muitas partes de África. No continente há mais de 20 países num estado de guerra declarada ou numa situação de extrema tensão. O Sudão pode servir de exemplo, uma vez que é aí que se desenrola a guerra civil mais prolongada de África. Esta continua a sofrer com os tiranos, as crianças soldados, os genocídios de cariz tribal, as limpezas étnicas e a deslocação de populações. O espectro da severa falta de alimentos, que pode redundar numa fome em grande escala, paira sobre grandes áreas do continente e ameaça directamente o que resta da vida selvagem. A África subsariana é cada vez mais marginalizada na economia global em virtude dos riscos envolvidos, e é agora vítima de uma nova servidão, a pós-independência.
O jugo da tirania política, da corrupção, da fome, da iliteracia, da pobreza e das enfermidades galopantes é cada vez mais pesado. A África subsariana é o epicentro da pandemia de SIDA, que só irá ser sentida com toda a força, assim o afirmam os especialistas, durante a próxima meia dúzia de anos. Mais de 70 por cento das vítimas da SIDA vivem na África subsariana. A África do Sul, de longe o país mais avançado do continente sob todos os aspectos, já está envolvida no pesadelo cada vez maior dos órfãos da SIDA e nos bebés portadores do HIV que são abandonados. As consequências socioeconómicas e sociopolíticas deste facto são evidentes.
Desde os anos 1960 e do princípio do processo de descoloni-zação, a África sofreu mais golpes e mais revoluções violentas do que qualquer outra parte do mundo.
Muitos países africanos trocaram uma forma de domínio e exploração por um mal muito maior, o domínio e exploração por parte do seu próprio povo. Mobutu, no Zaire, foi o exemplo clássico do molde do "presidente vitalício". Milhões de africanos sob governantes despóticos vivem em casulos de medo para onde os oportunistas estrangeiros, tal como chacais a quem já cheira a sangue, se mudaram rapidamente a fim de explorarem, agarrarem e fugirem, deixando o povo a enfrentar uma nova ruína. Vem-me à mente Angola e a sua florescente indústria do petróleo. As riquezas minerais de África condenaram-na a este destino e a vida selvagem é um bem sacrificável. A caça furtiva tornou-se num negócio nas mãos dos sindicatos internacionais do crime, ajudados por uma vasta corrupção. Os soldados e as AK-47 não são uma mistura feliz para o povo africano... nem para a vida selvagem do continente. Não é possível falar de conservação aos esfomeados, desalojados, doentes e desesperados.
Fala-se de um "renascimento" africano e da possibilidade do ano 2000 anunciar a chegada do "século africano." À luz do que teve lugar anteriormente, não compartilho desse optimismo. Limito-me a repetir as palavras de Wole Soynka, o eminente autor nigeriano, laureado com o Prémio Nobel da Literatura, em 1986, que afirmou em 1999: "lá não podemos falar de guerras no continente, mas apenas de arenas onde se desenrola uma verdadeira competição de atrocidades."
Há uma pergunta inevitável: que estou eu ainda a fazer em África? Já agora, que tenho quase 72 anos e estou à espera de Deus, posso aguardar mais um pouco para ver se surge algo de realmente novo em África. Espero para ver se a África e o mundo deixarão alguma vez de manipularem a verdade e encararão os factos a respeito da corrupção, da ganância e na inépcia ao mais alto nível. Espero para ver se a África alguma vez começará à procura de soluções com uma base sustentável no interior do continente, e se livra de uma mentalidade que cria um complexo de dependência em relação aos dadores estrangeiros e às condições que estes impõem. Espero para ver se a África começa a limpar a podridão nas fileiras da sua liderança e inicia o longo e difícil caminho para uma autodependência básica.
Espero para assistir à exposição das hienas humanas do oportunismo que estão a destruir África a partir do interior. Espero para ver se a África começa a libertar-se das grilhetas e a caminhar sobre os seus próprios pés. Espero para ver esgotar a fossa dos maléficos interesse pessoais e assistir à emergência sem medo de um cada vez maior número de filhos e filhas de África, honestos e talentosos, que ajudarão a arrastar o continente para fora deste esterco velho. Espero um fim para os argumentos cediços a respeito da África ser sempre a vítima impotente e o estrangeiro ser sempre o explorador culpado de tudo.
Embora não acredite que as AK-47 sejam derretidas e transformadas em arados, ou que o leão venha deitar-se ao lado da gazela - pelo menos durante os tempos mais próximos, não deixa de haver um clarão de esperança. Nelson Mandela, que não tem par em toda a África no que toca à autoridade moral e ao respeito internacional de que goza, afastou-se do discurso que preparara para o dia 6 de Maio de 2000 em Joanesburgo, durante o lançamento do Fundo de Parceria Global das Nações Unidas para as Crianças. Fez uma clara referência aos déspotas de África e declarou: "Os tiranos de hoje podem ser destruídos por vós (o povo)... temos de ser impiedosos na denúncia desses líderes."
Embora logo no dia seguinte alguns africanos tivessem denunciado Mandela nos meios de comunicação com sendo um "não africano", o seu apelo para um maior respeito pelos direitos humanos e por tudo o que eles implicam não deixou de passar. O Bispo Desmond Tutu, o internacionalmente respeitado Prémio Nobel da Paz sul-africano, também levantou a forte voz numa condenação aos líderes africanos corruptos. As sementes da política multipartidária estão a germinar em África. A liberdade de imprensa é agora maior do que era há uma mera década, as pessoas começam a ter menos medo de falar, e de manifestar o seu direito a uma vida melhor e a serem governadas por líderes mais transparentes e responsáveis.. Os jovens estão cada vez mais bem informados a respeito do que se passa noutros lugares do mundo mundo e a era da tecnologia da informação faz com que seja muito mais difícil que os tiranos passem desapercebidos e sem serem controlados. Tudo o que ajude a estabilizar a situação so-ciopolitica em África beneficiará os esforços para a estabilização e conservação do que resta da herança africana no campo da vida selvagem.
Muitos líderes africanos foram denunciados publicamente e estão agora sob investigação por causa das suas gordas contas bancárias offshore, obtidas à custa do saque dos cofres nacionais enquanto os seus povos sofrem. Os países dadores desenvolvidos começaram a revelar sinais de cansaço no que se refere às infindáveis tragédias que tem lugar em África, à quase incapacidade desta para lidar com as crises, à corrupção e ao constante abuso a que as ajudas são sujeitas. É posta uma cada vez maior ênfase na necessidade de governos africanos mais responsáveis que comecem a cultivar as suas próprias capacidades com mais vigor para poderem sobreviver e progredir. Só poderemos falar num renascimento quando a África, como um todo, se tornar mais auto-sustentada.
Agora que estou a chegar ao fim da picada, depois de uma vida cheia e aventurosa, compreendo com mais clareza que foi a minha geração, sem qualquer dúvida, que experimentou o melhor de África e da sua incomparável vida selvagem.
A verdadeira luta pela regeneração política, económica e moral de África só agora começou.
Edição em Português de Abril de 2002
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