REPORTAGEM
Separadas por 350 metros, na zona do Chiado, em Lisboa, duas concentrações com objectivos opostos mobilizaram várias centenas de pessoas. Umas defendendo a política de esquerda no poder, outras clamando contra o assalto de Costa ao poder. Prometem ser assim os próximos meses na política portuguesa.
O molho de nabos veio da Guarda e tinha como primeiro destino o Palácio de Belém. Serviriam para avivar a memória ao Presidente da República, “para se lembrar que deve cumprir e fazer cumprir a Constituição”. Sim, porque comer nabo faz bem à memória, insiste num cerrado sotaque beirão António Machado. Mostra uns enormes nabos ainda meios sujos de terra e com as folhas um pouco murchas de estarem toda a tarde nas mãos calejadas do agricultor de 87 anos, barrete preto de lã grossa e borla a cair sobre o ombro, casaca de xadrez com punhos, bolso e punhos com renda preta. Criados “sem adubos nem químicos”, garante António Machado, que é também o presidente da Associação Distrital dos Agricultores da Guarda há quase três décadas.
Enquanto pedia aos organizadores da concentração da CGTP no Largo de Camões, em Lisboa, para entregarem os nabos a Arménio Carlos – “é um desperdício voltarem para casa, tenho lá muitos” -, o beirão franzino dava uma lição de economia em poucos minutos. “Oitenta por cento do cereal que estamos a importar podíamos nós produzir. Não podemos produzir 100%, claro, mas fazíamos mais e importávamos menos. Mesmo que isso nos custasse mais 5 ou 10 cêntimos por quilo, fica mais barato do que comprarmos. Sabe porquê?” “Porque escusávamos de comprar”, responde um jovem da CGTP, por detrás das barreiras metálicas. “Porque tínhamos a nossa gente a trabalhar. Temos que pôr o país a produtir”, diz o idoso, de dedo em riste, mandando logo a seguir um amigo calar-se enquanto ele tenta explicar-se. “Na minha terra quando um burro fala, o outro baixa as orelhas!” E lá vai dizendo que quem se sentou na cadeira no Terreiro do Paço nestes anos todos não percebia nada de agricultura. “Essa senhora que lá esteve agora… o que aprendeu ela de agricultura no curso que fez? Ainda se a colocassem na Justiça, eu não piava. Agora… na agricultura?!?”
“Fazem-nos crer que somos um país pobrezinho… A Guarda produzia milhares de toneladas de batata; agora está tudo a monte. Temos o maior mar da Europa e temos que comprar a sardinha a 10 euros aos espanhóis”, vai enumerando. “O primeiro-ministro que começou a afundar o país é agora Presidente”, acusa António Machado enquanto espreita a ver se Arménio Carlos aparece a agradecer os nabos.
Antes, houve música e discursos. A concentração “Cumprir a Constituição, Mudar de política, Resolver os problemas dos trabalhadores e do país” foi marcada para Belém, mas o Presidente deu posse a António Costa e a CGTP mudou o local. Também se fez em Braga e no Porto. No Chiado, Arménio Carlos exultou a luta dos trabalhadores que obrigou o Presidente a dar posse a um Governo PS, mas defendeu ser preciso mais. É preciso cumprir de facto a Constituição, "revogar a legislação anti-laboral e anti-social da direita" e "mudar efectivamente de políticas". Avisou que a CGTP, os sindicatos e os trabalhadores “irão exigir respostas aos seus problemas”, colocando pressão sobre os socialistas.
No largo cheio de gente, há algumas bandeiras de Portugal e muitas vermelhas da CGTP no ar e placards com folhas A4 que dizem “Cumprir a Constituição”, “Serviços públicos sim! Privatizações não!”, “Aumento dos salários”, “Trabalho! Salários! Direitos!”; uma faixa enorme pede “1% do PIB para a cultura”. Acabaram-se as palavras de ordem que mandavam o Governo para a rua ou lhe chamavam ladrão, gatuno ou mentiroso. “Os fascistas já foram para a rua mas temos que estar com o olho aberto”, dizia um homem quando o hino nacional terminou e virava as costas ao palco improvisado na carrinha da CGTP. São quase cinco da tarde, há encontrões no Largo de Camões, no Chiado, em Lisboa, e para algumas centenas de activistas da CGTP é tempo de regressar aos autocarros que os trouxeram para mais uma concentração.
Uma coroa de flores para a democracia enlutada
Cerca de 350 metros para nascente, num largo lisboeta mais icónico do que o Camões, activistas de direita promoveram a primeira concentração contra o Governo de António Costa, apenas 48 horas depois de ser empossado. "Fraude eleitoral envergonha Portugal", "Isto não é o fim e não vai ficar assim", "Costa p'rá rua, a casa não é tua" e "Costa, golpista, tu és um vigarista", gritou-se por um megafone.
Todas as árvores do Largo do Carmo – o mesmo onde a coligação começou a sua descida do Chiado no final da campanha de Outubro - estavam ligadas por faixas vermelhas e verdes e tinham agrafada no tronco uma folha amarela com a palavra democracia. Quase toda a gente tinha uma bandeira de Portugal na mão, e contavam-se apenas duas da coligação Portugal à Frente, assim como lenços da coligação num ou noutro pescoço. No pedestal de um candeeiro estava uma coroa de flores em forma de D com uma larga fita negra. É a democracia que está de luto e a intenção de Mário Gonçalves, organizador, era enviá-la ao presidente da Assembleia da República com uma carta, mas acabaria por ser deposta à porta do convento – o mesmo que viu nascer a democracia, faz-lhe agora o luto.
Seriam quase 200 pessoas, entre quem se concentrava, em pé, junto ao chafariz do largo ou estava sentado nas esplanadas com bandeiras de Portugal ao lado e no colo. Mas mais gente era esperada: várias dezenas de bandeiras amontoavam-se junto ao chafariz. Ainda assim, Mário Gonçalves, professor de música e presidente da concelhia do CDS de Monforte, mostrava-se contente. “Os portugueses estão indignados contra a indigitação de António Costa, e não são só as pessoas de direita. Há aqui pessoas de esquerda que não concordam com o que o PS está a fazer”, garante. Tanto PSD como CDS foram contactados, diz, mas não se quiseram envolver. “Há 40 anos que a direita não saía à rua. Vamos continuar a fazê-lo até o Governo de Costa vir abaixo”, promete.
Um grupo de três amigas não tem dúvidas: o Presidente “não tinha alternativa” porque a Constituição está “desactualizada”, argumenta Margarida Leal, desempregada e antiga empresária do sector da educação, e Isabel Costa diz que Portugal parece um “país do terceiro mundo”. Contestam o “oportunismo e a sede de protagonismo” de Costa, como acusa Mafalda Seia. Estão “muito descontentes” com o rumo político – tanto que até vêm para a rua ralhar quantas vezes forem precisas - e, mais do que elogiar a direita, criticam a forma como Costa chegou ao poder. “Isto agora é só facilidades: o Governo vai dar, dar, dar, até isto estoirar por si”, diz Margarida, que gostava que Cavaco Silva “deitasse o Governo abaixo antes de sair”.
Carlos Nunes é um dos que se junta à conversa. Diz ter votado CDU “contra António Costa”. “Sinto-me espoliado”, vinca. Veio ao Carmo por ser um “espaço de liberdade, democrático” e estar contra a “fraude e a vigarice”. Tem uma teoria rebuscada: “Costa chegou ao poder no PS ajudado pela direcção do Bloco e uma parte da direcção do PCP liderada pelo João Oliveira. Isto já estava a ser cozinhado há muito. Por isso é que Jerónimo de Sousa, ligado aos conservadores do PCP que não queriam nada com o PS, não pôs os pés na tomada de posse…”
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