Foi na semana passada e era a minha primeira vez na vida a ler aquela palavra e, por ironia do destino, ali mesmo nos lavabos da Faculdade. Aquelas frases soltas que se lêem nas paredes daqueles espaços fechados onde as pessoas entram para fazer necessidades, em lugares públicos. Dizia mais ou menos o seguinte: "e vocês serão também cobardes e se manterão como donzelas à espera do seu príncipe arrebatador, tal e qual os SEBASTIANISTAS?!"... Quando aliviei-me do que ali fora fazer, fui logo à correr para o Google e procurei o termo. Basicamente, o Sebastianismo é uma espécie de mito português, surgido nos finais do século XVI, após o desaparecimento do Rei D. Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Porque, na altura, o Rei D. Sebastião não tinha sucessores directos para o substituirem no trono, Portugal acabou sob domínio estrangeiro (de um rei espanhol qualquer). Os tais sebastianistas não acreditavam que o seu rei tinha morrido na batalha, mas sim que tinha simplesmente desaparecido estrategicamente e que, a qualquer momento, retornaria para salvar Portugal e o libertar da dominação estrangeira.
Como eu gosto de pensar sempre por analogia, sorri sorrateiramente quando me lembrei de Moçambique. Precisamente também no final da semana passada, a OJM (Organização da Juventude Moçambicana, braço juvenil do partido no poder, a Frelimo), esteve reunida no seu primeiro congresso. Soube que estavam a deliberar sobre algumas teses (que eles julgam ser decisivas para o seu fortalecimento e afirmação no seio do seu partido e na agenda nacional), bem como a eleger os seus membros de direcção para os próximos anos. Nada do meu interesse, claramente. Entretanto, e porque também na semana passada eu estava a apresentar um trabalho sobre o associativismo juvenil em Moçambique para os meus colegas portugueses, algumas cenas germinaram na horta da minha cabeça. Tive de falar da OJM sim, mas mais propriamente daquela OJM que emergiu no tempo imediatamente a seguir à independência nacional, no contexto da Frelimo como partido-Estado, e que funcionava como suposto instrumento de construção da nova nação moçambicana. Até se chamavam aos jovens de então de "seiva da nação" ou e à própria OJM de "viveiro de quadros"... soube-se depois, porque a história como ciência é sempre infalível, que aqueles jovens todos não eram mais do que uma estratégia muito bem sucedida das elites directivas do partido-Estado de os tornarem, liminarmente, seus capangas ideológicos e fonte de trabalho braçal para a sua defesa e sobrevivência. Há pano para debate aqui, obviamente. Há quem possa dizer, legitimamente ou não, que a OJM de então contribuiu com capital humano para as tarefas do processo revolucionário (marcadamente recreativas e culturais) e para o apetrechamento do aparelho de Estado, mas há quem também sustente que muitos jovens de então (predominantemente filhos de Zé Ninguéns) acabaram indo para a tropa e para a guerra contra a Renamo como carne de canhão sem saberem exactamente porquê... Outros (muito poucos) se deram claramente bem, fruto do seu silêncio estratégico e alinhamento vigoroso com o discurso do dia, do seu obrigatório ritual de gratidão aos libertadores, da ilustre disciplina partidária e de filiações sanguíneas derivadas, etc, e tiveram como recompensa importantes colocações na estrutura partidária e no Estado. Portanto, exactamente o que tem estado a acontecer hoje.
Onde é que eu quero chegar, afinal? Muito simples. Esta manhã estava a debater com uma ilustre amiga, aqui nas redes sociais, sobre a razão de muitos jovens estarem a mostrar inusitado interesse para com os desbodramentos actuais da OJM, mesmo não estando filiados às suas estruturas. Eu não só disse que o que acontece na OJM é claramente de interesse público porque eles são também jovens moçambicanos (como qualquer um dos que não faz parte daquela organização), como também que o que eles fazem ou deixam de fazer tem impacto directo na vida social de todos (afinal, eles estão filiados ao partido que está actualmente no poder e alguns deles são os nossos dirigentes públicos actuais e futuros, pelo menos nos próximos 4 anos). Ora, a questão fundamental está aqui mesmo: o que eles têm actualmente feito para o país, em geral, e para nós, em particular? Muito difícil de quantificar e de qualificar. Dá a impressão de a sua lógica de funcionamento estar ainda a ser teleguiada pelas elites directivas da Frelimo (os libertadores) e de a sua agenda estar a ser ainda altamente influenciada pela incondicional subordinação política aos pais e avós do partido. Portanto, a OJM ainda pensa e age dentro do paradigma de instrumentalização da juventude, típica da herança do regime de partido único, funcionando como plataforma de projecção de um e outro jovem, em função do ajoelhamento tácito da sua consciência aos ditames das gerações mais velhas em troca de cargos político-administrativos no Estado, nas empresas públicas e no todo-o-poderoso "sector privado" que sobrevive e se alimenta mais dos nossos impostos do que de efectivo trabalho e produtividade. Por conseguinte, não serão estes jovens por fora do partido e do seu braço juvenil (e que hoje os criticam vigorosamente) os tais "sebastianistas", reféns de referências que os possam mobilizar e engajar bem como de alternativas a qualquer "desvio revolucionário" que caracteriza a nossa história recente como país?
Eu sou um desses jovens que é mas que não quer continuar a ser "sebastianista". Espero, obviamente, que surja alguém (personalidade ou coletividade) para tirar-nos do marasmo e da desgraça, bem como da incompetência e do compadrio largamente institucionalizados no nosso país. É isso, muito provavelmente, o que me faz ser um "sebastianista" moçambicano. Mas não quero, igualmente, passar a vida indiferente aos eventos e aos assuntos do meu país, venham de onde vierem. Vou citar um exemplo, muito actual, e que tem a ver com a depreciação acentuada da nossa moeda nacional, o Metical, sob o olhar inaceitavelmente passivo (e altamente suspeito) das nossas autoridades. Há dias tenho estado a ler um livro, e graças à Deus por ter sido de carácter obrigatório para as aulas, que altamente recomendo a todos vocês. Intitula-se "Dead Aid" e é da economista zambiana Dambisa Moyo (está disponível na Internet em versão inglesa). Ela lança, no livro, uma vigorosa crítica à ajuda externa que tem sido alocada ao continente africano nas últimas décadas e o efeito perverso que ela tem tido nas suas economias e sociedades. Resumidamente, ela diz que a ajuda externa à África (estimada em centenas de biliões de dólares por ano, na altura em que lançou o livro) tem sido altamente nociva ao seu desenvolvimento porque ela acaba invariavelmente por parar nas mãos corruptas das elites dirigentes africanas. Aqui é só somar um mais um, no contexto moçambicano: quantos biliões de dólares a China concedeu à Moçambique, nos últimos anos? O que foi feito ou tem sido feito com esse dinheiro? Supondo que ainda não está a ser usado ou que foi usado apenas parte dele, onde está o resto desse dinheiro? Os jovens da OJM não nos vão responder a isso, obviamente. Mas, e os "sebastianistas" moçambicanos... estão a fazer estas perguntas? Ou ainda estão sentados por cima do muro, à espera do final de semana chegar para, uma vez mais, ir beber cerveja (que parece ser o actual rei D. Sebastião dos nossos problemas). Aliás, essa tal cerveja também vai aumentar de preço por causa das consequências do endividamento irresponsável e do desvio de aplicação da tal ajuda externa de que Dambisa Moyo fala.
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